Apesar de muito comum, ninguém deseja entrar num relacionamento abusivo ou violento. De quem se conhece, em qualquer circunstância, seja para amizade, namoro ou outra relação afetiva, não se espera nada além de atenção, respeito, compreensão e, também, a possibilidade de vivenciar experiências positivas: encontros, festas, viagens etc.
E se a relação envolve um contato mais íntimo, a aparência pode ser outro fator importante, assim como a personalidade. O(A) “crush” é bonito(a)? É atraente? É uma pessoa legal, “presença”, que atrai e transmite confiança?
Todas essas questões, certamente, passam pela cabeça de quem se arvora na diversidade de gente que o mundo oferece, como numa vitrine, nos aplicativos de relacionamento exibidos nos bilhões de telas de celulares, tablets e computadores por aí afora. E, diante de tantas opções, é bom demais quando se encontra alguém que se encaixa, ao menos em parte, nos principais focos dos nossos desejos e valores.
Mas aí é que mora o perigo, como alerta a letra da música “Arranhão”, gravada no ano passado pela dupla sertaneja Henrique e Juliano.
“Golpe do amor”
Farsantes sempre existiram, mas, na internet, fica ainda mais fácil se passar por algo que não se é. É o que mostra o filme “O Golpista do Tinder”, documentário lançado em fevereiro pela Netflix sobre o israelense Shimon Hayut, acusado de usar um perfil no aplicativo, apresentando-se como um rico empresário do setor de diamantes, chamado Simon Leviev, para seduzir mulheres e pedir-lhes dinheiro sob o pretexto de que estava sendo ameaçado por “inimigos” em um negócio arriscado. Em vez disso, os valores transferidos pelas vítimas eram gastos em festas e viagens pela Europa.
Mas não é só no exterior que acontece esse tipo de fraude. Na Região Metropolitana do Recife, a estudante de direito Fernanda Karla Nunes, de 41 anos, sofreu com isso na pele depois que conheceu um homem em um site de relacionamento, em dezembro. “Ele curtiu meu perfil e eu, o dele, até porque tinha muitas coisas relacionadas ao direito e ao Ministério Público e foto do broche da Defensoria [Pública]”, conta.
Também chamou atenção a curiosidade e o jeito despachado do desconhecido, que se apresentava como guarda municipal de Olinda e assessor de uma juíza. “Ele disse que queria se lançar para vereador e foi conversando, [falou que] tinha amigos em comum e era próximo de pessoas que eu queria conhecer”, diz a universitária.
Simon Leviev, no documentário “O Golpista do Tinder” (Foto: Reprodução)
Atitudes suspeitas
Após esse primeiro contato, Fernanda foi visitar parentes em Nazaré da Mata, e o “novo amigo” insistiu em se encontrar com ela na cidade.
“Chegou lá num táxi, com terno, gravata, um broche do Ministério Público e carteira de juiz de paz, dizendo que tudo tinha sido dado pela juíza. Depois de uns dias, veio a história de que ele estava com uma filha na UTI, na Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, que ela tinha nascido com uma doença congênita e necessitava passar por uma cirurgia cardíaca. Por isso, precisava levantar R$ 47 mil”, detalha.
Era tudo mentira. Embora tivesse uma filha no Sudeste, a menina não estava doente e, muito menos, em estado terminal. Também não trabalhava para a magistrada, que nem o conhecia, nem era guarda municipal de Olinda ou de qualquer outro município.
Inimigo íntimo
O homem teve acesso à casa onde Fernanda mora, em São Lourenço da Mata, e furtou todo o dinheiro que a vítima guardava, substituindo as cédulas por pedras. Além disso, começou a pedir empréstimo a agiotas no nome dela. A estudante só descobriu o golpe quando ele procurou uma de suas melhores amigas para “indicar um agiota e ajudar Fernanda com a faculdade”. Chegou a denunciá-lo na Delegacia de Camaragibe, mas, sem flagrante, o suspeito foi liberado. Fernanda tratou de juntar todas as informações possíveis sobre o falsário para prestar uma nova queixa.
“Fiz uma investigação por minha conta. Olhei as redes sociais, as curtidas. Fiz um texto enorme e postei no Instagram e no Facebook. De 24 de janeiro até a Quarta-Feira de Cinzas (2 de março), não pensava em outra coisa. Eu só queria justiça, porque o dinheiro, eu sei que não vou reaver. Agora é que estou voltando a ser o que era”, desabafa. O homem, identificado como Lamartine Reis Uchôa Cavalcanti, de idade não divulgada, acabou sendo preso no início deste mês.
Caso de polícia
De tão comuns, esses relatos recebem uma atenção crescente não só nas mídias digitais como na esfera judicial. Segundo explica o delegado de Crimes Cibernéticos, Eronides Meneses, a polícia possui mecanismos para identificar os golpistas, mas, diante da facilidade cada vez maior para abrir contas e fazer transações bancárias na internet, a chance de a vítima recuperar o que perdeu é pequena. Por isso, é fundamental se cercar de cuidados ao conhecer alguém em site ou aplicativo (veja no infográfico).
“O pessoal procura a delegacia, faz o boletim de ocorrência, traz os prints das conversas. Os comprovantes das transferências são indispensáveis, e o perfil [fraudulento] tem que estar bem identificado”, orienta Meneses, ponderando que a melhor forma de encontrar o criminoso é investigando o “caminho do dinheiro”, visto que pode haver dificuldades para achar o usuário falso, principalmente se for internacional.
“O dinheiro some em questão de minutos. Assim que é feito o Pix, ele tem outras dez contas, fazendo transferências seguidas. Além disso, no Brasil, não é efeito da condenação penal a restituição do valor. A pessoa é condenada a uma pena de até oito anos e multa, caso possa pagar. Mas é possível processar o dono da conta bancária e a instituição financeira que recebeu para que ela prove que a conta foi aberta de forma legítima. Aí o banco pode ser condenado a indenizar a vítima por permitir a prática do crime”, recorda.
Na internet, fica mais fácil fingir ser algo que não é (Foto: Marconi Meireles/Folha de Pernambuco)
Público ou privado?
A exposição pessoal, proporcionada pelas redes sociais, permite que as práticas de violência do mundo real se expressem no virtual. E, nesse cenário, grupos historicamente desfavorecidos das esferas de poder, como as mulheres e a população LGBTQ , são os mais vulneráveis.
“A nossa vida privada agora está exposta. Você consegue saber muito facilmente onde a pessoa mora, do que ela gosta, os lugares que frequenta. E todas essas informações também estão disponíveis para pessoas com más intenções. E é muito mais fácil você construir um perfil que se encaixe perfeitamente naquilo que determinada pessoa vai gostar”, analisa o professor Gustavo Gomes, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Professor Gustavo Gomes (Foto: Cortesia)
Na definição do sociólogo, o golpista é um sujeito que tem facilidade em compreender os “códigos sociais”. “Ele consegue identificar aquilo que é valorizado: a riqueza, o status, uma certa postura empreendedora, engajada politicamente em certas questões. Você tem toda uma persona que tem um físico atraente, que ‘cuida da saúde’. [Os estelionatários] são pessoas que identificam esses valores e sabem se aproveitar deles”, observa Gomes.
Para o psicanalista Bruno Severo Gomes, professor do Departamento de Psicologia da UFPE, a web potencializa as necessidades que muitos usuários têm de expor as próprias conquistas e vitórias, publicizando o que consideram ser uma “vida perfeita”.
“Existe uma grande dificuldade na sociedade atual em que há uma pressão de sempre mostrar o melhor. Tem que ser o celular mais moderno, o carro de última geração, computador… E a principal vitrine para exibir isso é a rede social, que vai servir como uma fuga da realidade. Por isso, esse padrão de vida [ostentado por golpistas para atrair vítimas] é tão sedutor”, reflete.
Seguindo esse raciocínio, o golpista se veste de “príncipe” ou “princesa”, como define o professor de psicologia. “As pessoas vão se sentir acolhidas e amadas. E tem o lado também de querer ajudar quando a gente se importa. Aquele ‘par perfeito’ com promessas, declaração de amor e até [proposta de] casamento. A vítima fica encantada por uma vida diferente, brilhante, e vai se deixando envolver”, descreve o pesquisador.
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