- Author, Luiz Antônio Araujo
- Role, De Torres para a BBC News Brasil
A enchente que inundou bairros inteiros e provocou pane na iluminação pública e nos sistemas eletrônicos de vigilância levou moradores e voluntários de equipes de socorro a improvisarem esquemas alternativos de segurança em Porto Alegre (RS).
A escuridão à noite e a desocupação de imóveis fizeram de algumas regiões alvos preferenciais de bandidos. Episódios de saques a lojas e ataques a voluntários em bairros de Porto Alegre e Canoas foram confirmados por vítimas e autoridades.
A multiplicação de relatos de crimes acompanhou o avanço da água, que atingiu em primeiro lugar o Delta do Jacuí. A região, na qual o rio homônimo deságua no Lago Guaíba, é composta por 27 ilhas entremeadas de canais, banhados e várzeas. Desse total, 16 compõem o bairro Arquipélago, de Porto Alegre.
A área registra profunda desigualdade social, retratada no premiado documentário Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado.
De um lado, há luxuosas residências à beira do lago, com marinas nas quais reluzem barcos esportivos e jet-skis. De outro, comunidades de catadores de lixo, autônomos e assalariados de baixa qualificação. Palco frequente de inundações, a região costuma registrar mais crimes quando a água avança.
“A gente sempre tem esse problema [ondas de furtos e roubos durante enchentes], não só agora”, afirma o corretor de cereais e ex-velejador profissional Daniel Mueller, 56 anos, o “Monstro”, morador da Ilha Grande dos Marinheiros há mais de 20 anos.
Dono de uma escola de wakeboard, a Wake Point, Mueller acumula relatos de enfrentamento com criminosos. Chegou a trocar tiros com bandidos que tentaram invadir sua casa durante uma enchente em 2015.
“Toda noite, os bandidos vinham de barco para roubar as coisas”, relata.
Depois desse episódio, ele e alguns vizinhos passaram a recorrer ao que apelidou de “força tática”, grupo de cerca de 15 policiais de várias áreas contratados para vigiar a vizinhança.
Os agentes são remunerados pelos moradores para realizar o serviço. A prática é conhecida como “bico” na segurança pública do Rio Grande do Sul e serve para que os agentes complementem os vencimentos como servidores públicos.
Há alguns dias, um vizinho de Mueller interpelou um grupo de desconhecidos que circulava de barco diante de sua residência. Os homens teriam respondido com ameaças e o grupo de segurança foi acionado.
“Eles [os policiais] chegaram identificados, com colete à prova de balas, fuzil, metralhadora. Em princípio, resolveu porque o pessoal sentiu que a gente não estava para brincadeira. Senão eles [os criminosos] acham que isto aqui é uma freeway, que é só chegar e pegar”, diz o fundador da Wake Point.
Envolvido no socorro a vítimas da enchente, Mueller viu velejadores voluntários desistir do trabalho por razões de segurança nos últimos dias.
“Dois companheiros sofreram tentativa de assalto por pessoas que transitavam em barcos. Disseram: ‘Tchê, tô fora. Não quero mais’”.
Frustrado, o ex-velejador fez um desabafo em uma rede social: “Agora os bandidos têm barco, têm lancha e têm bote. Então eu aconselho quem tá chegando: sai em grupo, vai com uma escolta, vai com policial. Não tem luz em lugar nenhum, não tem câmeras de segurança. Então, pessoal, vamos se precaver, a gente é voluntário e a gente tá aí pra ajudar e não tomar ruim”.
‘O Menino Deus estava virando uma Gotham City’
Distante cerca de 10 km por rodovia da Ilha Grande dos Marinheiros, o Menino Deus é um bairro de classe média, com setores de comércio e serviços em expansão.
Fica próximo ao Estádio Beira-Rio, do Sport Club Internacional, e do Olímpico, antigo estádio do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, e conta com hospital, centros comerciais, praças e parques.
No domingo (05), depois de dois dias de socorro a vizinhos, Fernando Aranha, 35 anos, estranhou a atmosfera na área.
“Caía a noite, e basicamente o Menino Deus estava virando uma Gotham City, aquela cidade do Batman. A criminalidade começou a ir toda para o meu bairro”, diz o pecuarista graduado em Relações Internacionais.
Quem chamou a atenção de Aranha para o fenômeno foram os próprios moradores.
“Fiz alguns resgates à noite, e, quando voltei ao local, as pessoas que haviam permanecido nos prédios diziam: ‘Bah, não tem como pedir para ter um patrulhamento aqui? Ontem à noite, tinha um cara com uma serra tentando serrar uma grade’”, relata.
Segundo Aranha, o medo de roubos foi determinante para que muitos tenham relutado até o último momento em deixar seus lares. Ele próprio relata ter testemunhado uma tentativa de invasão de domicílio na noite de domingo, ao chegar ao prédio onde mora, na Rua José Francisco Duarte Júnior.
“Era por volta de 21h30min. Eu estava saindo de um resgate e me direcionando para minha casa, porque no meu apartamento eu só chegava de caiaque. Uma senhora tentou me avisar lá de cima: ‘Olha, ali tem um cara tentando arrombar’”, afirma.
A única iluminação existente no local era a da lanterna carregada por Aranha.
Ele direcionou o facho de luz na direção indicada pela vizinha e gritou: “Olha, eu sou polícia, tô armado e tal”.
Ele conta que viu um vulto pular na água e desaparecer na escuridão.
O blefe fez efeito: Aranha não faz parte de forças de segurança nem estava armado.
“Só queria correr [espantar] o cara, assustar, sei lá”, diz o voluntário.
Um casal de vizinhos do morador relatou que, na noite anterior, houve “tiro, porrada e bomba” no bairro.
Diante da situação, Aranha e outros envolvidos na ajuda a moradores decidiram incorporar o patrulhamento às tarefas de socorro.
“A gente coloca caixa de mantimentos no barco, passa pelos pontos que foram mapeados onde há pessoas que não quiseram sair e acaba fazendo as duas coisas: resgate e patrulhamento”, conta o morador.
Nos últimos dias, policiais civis e militares juntaram-se ao trabalho de patrulhamento ao lado dos voluntários.
Alguns moradores não notaram mudança significativa
O primeiro a se juntar ao grupo foi um policial civil que mora no bairro.
“Não foi uma operação autorizada pela Polícia Civil. Partiu dele [a iniciativa de] garantir a nossa segurança para que a gente fizesse um certo patrulhamento para evitar mais estresse de arrombamento”, revela.
“As pessoas já estão num nível de estresse muito alto: tiveram de sair de suas casas e deixar suas coisas, não têm de ficar se preocupando porque vão invadir [suas residências]”, descreve.
Nem Aranha nem os voluntários que não pertencem ao efetivo policial portavam armas durante as operações.
“Agora, temos mais assistência em relação à segurança. A polícia montou um QG na [esquina das avenidas] Getúlio Vargas com Ipiranga”, afirma.
Os policiais citados por Aranha não negaram ter participado dos patrulhamentos voluntários, mas não quiseram dar entrevista à BBC News Brasil.
O policial civil citado disse que estava em uma ação da corporação. Outro agente, da Brigada, recomendou que fosse procurada a assessoria de comunicação de seu comando.
Mas para outros moradores ouvidos pela BBC News Brasil, não houve aumento da insegurança depois da enchente.
O construtor civil Angelo Tarouco, 49 anos, síndico de um condomínio na divisa do Menino Deus e da Cidade Baixa, tomou o cuidado de instalar um cadeado no portão da garagem do prédio ao deixar o local na segunda-feira (06).
Mas em poucas horas, o nível da água ultrapassou a cerca externa do edifício, de cerca de 2 metros.
Apesar disso, o imóvel não ficou particularmente exposto, na opinião do síndico. O último morador deixou o local na tarde de quarta-feira (08).
Os condôminos foram beneficiados pela proximidade de duas unidades da Brigada, que montou um posto de comando nas imediações e passou a monitorar o trânsito de barcos.
“Quando saía um barco de resgate, os brigadianos não deixavam circular caiaques ou barcos a remo”, relata.
Na terça-feira (07), dois homens em um barco foram abordados pelos policiais e aconselhados a deixar o local.
Moradora da Cidade Baixa, vizinha ao Menino Deus, a advogada Silvana Moura desocupou a casa em uma das ruas mais atingidas pela enchente e transferiu-se para um apartamento próximo que mantém para aluguel.
Na madrugada de terça-feira, ela acordou com o barulho de vozes na rua em frente: eram policiais militares que abordavam transeuntes em motos.
“Quando o bairro começou a alagar, havia pessoas circulando que, claramente, não residiam lá. Mas não acredito em explosão de criminalidade. Se houve algo, foi obra de pequenos ladrões que também agem em tempos normais”, explica.
Brigada efetuou 56 prisões em uma semana de inundação
Embora a Brigada Militar e a Polícia Civil tenham suspendido folgas, férias e licenças, e até mesmo unidades táticas como o Batalhão de Operações Especiais (Bope) tenham reforçado o policiamento, os efetivos policiais estão sobrecarregados pelo trabalho de resgate, patrulhamento de ruas e guarda de postos de socorro e abrigos.
A assessoria de comunicação da Secretaria de Segurança Pública do Estado informou que foram efetuadas 56 prisões desde o início da inundação em Porto Alegre, no dia 2 de maio.
Desse total, 11 ocorreram em abrigos para desalojados pela enchente. Somente entre a noite do dia 6 e a tarde do dia 7, foram efetuadas 16 prisões em flagrante pela corporação.
Em entrevista coletiva nesta sexta (10), o governador do RS, Eduardo Leite, afirmou que haverá reforço na segurança com o programa Mais Efetivo, que convocará militares que entrararam para a reserva nos últimos dez anos.
‘Estou especialmente focado em acompanhar a situação dos abrigos e garantir a dignidade e a proteção das pessoas. Estamos reforçando a segurança dentro desses locais, inclusive com chamamento de policiais que estavam na reserva’, explicou Leite.
“A segurança é nossa prioridade. Não vamos dar espaço para criminosos. Estamos com força total para dar respostas, prendendo aqueles que pratiquem crimes, seja nos abrigos, seja nas ruas”, frisou o governador.
Até o fechamento desta reportagem, a Secretaria de Segurança Pública não havia emitido um posicionamento oficial, solicitado pela BBC News Brasil, sobre as iniciativas de moradores de se organizar de forma autônoma para fazer segurança de imóveis, ruas e bairros.
Fonte: BBC
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