- Author, Isabelle Gerretsen
- Role, BBC Future
“Esta é a câmera do meu celular“, mostra Bas van Abel. Ele segura no alto um pequeno componente eletrônico quadrado que acabou de retirar do seu smartphone com uma chave de fenda minúscula.
“Ao todo, são oito componentes que podem ser retirados e substituídos”, explica ele, enquanto desmonta cuidadosamente todo o seu smartphone, colocando a câmera ao lado da bateria, da porta USB, da tela e do alto-falante do aparelho.
Van Abel é um dos fundadores da empresa social Fairphone, que afirma ter criado “o smartphone mais sustentável do mundo”.
Mas até que ponto pode ser sustentável um produto tão complexo como, que utiliza componentes e metais raros de todas as partes do mundo?
Fundada em Amsterdã, na Holanda, em 2013, a Fairphone fabrica smartphones Android que podem ser facilmente substituídos, customizados e reparados pelos próprios proprietários. Ao permitir e incentivar as pessoas a consertar seus telefones celulares, em vez de se desfazer deles quando quebra algum componente, a Fairphone espera ajudar a reduzir o descarte de resíduos eletrônicos.
Números astronômicos
O lixo eletrônico é a fonte de resíduos que mais cresce no mundo. Estima-se que 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico sejam produzidas anualmente em todo o mundo – mais do que todos os aviões comerciais já fabricados até hoje, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). E apenas 20% desses resíduos são reciclados.
A montanha global de lixo eletrônico cresce proporcionalmente ao aumento da demanda por aparelhos portáteis e telefones celulares. A produção anual de lixo eletrônico deve mais do que dobrar até 2050, atingindo 120 milhões de toneladas, segundo o Fórum Econômico Mundial.
Somente em 2022, 5,3 bilhões de telefones celulares foram descartados, segundo estimativas da ONG belga The WEEE Forum, que analisa o lixo eletrônico. Nos Estados Unidos, as pessoas trocam de telefone celular, em média, a cada 18 meses, à medida que são lançados novos modelos com funções mais avançadas.
A maioria dos aparelhos agora são vendidos na forma de unidades lacradas, cujo reparo é extremamente difícil e caro. Alguns chegam até a gerar mensagens de erro quando componentes danificados são consertados.
A Fairphone quer interromper essa tendência, vendendo telefones com vida útil mais longa.
“Nós fabricamos telefones que podem ser consertados para que você possa utilizá-los por muito mais tempo”, afirmou van Abel à BBC, durante o Festival de Design para o Planeta, promovido pela organização britânica Design Council em Norwich, no Reino Unido.
“O cálculo é muito simples: se você usar o telefone pelo dobro do tempo, você produz a metade do número de aparelhos e a metade da quantidade de resíduos”, explica ele.
A ONG britânica The Restart Project estima que aumentar a vida útil dos telefones celulares em 33% pode eliminar emissões de carbono equivalentes ao total anual da Irlanda.
A sustentabilidade é um ponto central da missão da Fairphone. “Nós usamos plástico 100% reciclado em todos os nossos telefones, além de ouro e prata provenientes de comércio justo”, afirma van Abel.
Mas nem todos os materiais encontrados nos modelos da Fairphone são sustentáveis. O Fairphone 5, por exemplo, contém 40 materiais diferentes, mas apenas 14 deles (correspondentes a 42% do peso total do aparelho) têm fontes éticas e sustentáveis.
E, dessas 14 matérias-primas, apenas 70% vêm de fontes recicladas ou de comércio justo.
A mineração das terras raras empregadas pela Fairphone e pelas outras fábricas de telefones celulares causa impactos ambientais significativos e pode ocasionar contaminação do ar, da água e do solo.
Especialistas afirmam, em uma avaliação independente, que a Fairphone poderia aumentar seu nível de sustentabilidade buscando maior quantidade de materiais de fontes justas e certificadas, além de fabricar celulares que possam receber upgrades, além de serem consertados.
Van Abel afirma que a empresa já ampliou de oito para 14 o número de materiais oriundos de fontes éticas e sustentáveis e os planos são de aumentar ainda mais esse número. “Nós nos concentramos nos 14 materiais com maior necessidade de melhoria e maiores oportunidades de beneficiar as pessoas e o planeta”, explica ele.
Uma das ambições da Fairphone é melhorar as condições éticas de trabalho em toda a cadeia de fornecimento.
A empresa social começou pelo ativismo, com uma campanha em 2009, promovendo a consciência sobre os conflitos da mineração na República Democrática do Congo (RDC). Atualmente, a Fairphone compra estanho e tântalo certificados e livres de conflitos de minas na RDC e trabalha junto aos fabricantes para garantir condições justas de trabalho nas minas e nas fábricas, segundo van Abel. Ele também afirma que todos os trabalhadores recebem salários dignos.
Mas, apesar das ambições, a Fairphone ainda é um participante pequeno do mercado de telefones celulares.
Desde o seu lançamento, a empresa vendeu cerca de 550 mil aparelhos. Em termos de comparação, em 2022, foram vendidos em todo o mundo mais de 232 milhões de iPhones.
Mas van Abel afirma que a Fairphone está tentando provar que é possível para as companhias vender telefones celulares sustentáveis e ainda ter lucro.
Diferenças de custo
O preço da sustentabilidade é alto. O modelo mais recente da Fairphone custa 699 euros (cerca de R$ 3,7 mil). Um dos motivos é o fato de que a Fairphone precisa fabricar tudo sozinha, segundo van Abel.
“Nós mesmos fazemos todas as atualizações de software porque nenhuma empresa do mundo apoia telefones com longa vida útil”, ele conta. “É necessário muito investimento para podermos fazer o que queremos.”
Mas a assistência técnica do Fairphone é mais barata que a dos concorrentes. Uma bateria nova para o Fairphone 5 custa US$ 49 (cerca de R$ 240), em comparação com os US$ 99 (cerca de R$ 480) cobrados pela Apple para substituir a bateria de um iPhone 15 e os US$ 135 (cerca de R$ 660) da Samsung para o Galaxy S23.
Substituir a tela de um Fairphone custa US$ 112 (cerca de R$ 550), contra US$ 359 (cerca de R$ 1.750) da Apple e US$ 297 (cerca de R$ 1.450) da Samsung.
A Fairphone também mantém um programa de reciclagem para smartphones que não possam mais ser consertados. Mas, normalmente, apenas 30-50% dos materiais podem ser recuperados no processo de reciclagem. A empresa considera a reciclagem como o último recurso.
“Você quer reutilizar todos os componentes”, explica van Abel. “A última coisa que você quer fazer é reciclar… por isso, nós nos concentramos tanto na durabilidade.”
Como ocorre com muitos outros aparelhos eletrônicos modernos, a reciclagem dos smartphones é difícil porque eles contêm até 70 elementos diferentes. E também não é fácil separar, durante o processo de reciclagem, aparelhos finos e compactos que são colados.
“Nós temos a compreensão instintiva de que a tecnologia e os aparelhos eletrônicos não são [feitos] para quebrar… que eles são preciosos”, afirma Cat Drew, chefe de design do Design Council, no Reino Unido. Ela é também a líder da iniciativa de sustentabilidade Design for Planet.
“É por isso que muitos de nós nos apegamos a três ou quatro celulares antigos que poderiam muito bem estar em um museu”, prossegue Drew. “Não conseguimos nos desfazer deles porque sabemos que eles são valiosos.”
Uma estimativa do setor indica que até cinco bilhões de telefones celulares podem estar sem uso em gavetas de todo o mundo.
O design da maioria dos smartphones evita que as pessoas os consertem para usá-los pelo máximo de tempo possível, segundo Drew. Os telefones celulares não são projetados de forma modular, para que sejam desmontados facilmente. Além disso, as pessoas preferem aparelhos muito finos e compactos, de difícil separação.
O custo de reparo dos aparelhos eletrônicos também pode ser “proibitivo”. “Consertar a tela de um laptop pode sair mais caro do que comprar um aparelho novo”, segundo ela.
Mas fabricar smartphones que possam ser consertados não é um “desafio tecnológico”, segundo Joe Iles, da Fundação Ellen MacArthur, uma organização sem fins lucrativos que busca facilitar a transição para a economia circular, com a reutilização e reciclagem de produtos e materiais ao máximo possível.
Iles afirma que a tecnologia de produção de telefones celulares que podem ser consertados já existe e que as principais marcas estão começando a adotá-la.
É preciso mudar o modelo
O modelo atual de venda de aparelhos como smartphones tem como objetivo incentivar os clientes a atualizar seus aparelhos a cada dois anos, o que ocorre frequentemente muito antes da vida útil para a qual eles são projetados. Mas novas leis garantindo o direito à assistência técnica estão sendo criadas na Europa e nos Estados Unidos para mudar esta situação.
Em fevereiro de 2023, a Nokia lançou seu primeiro smartphone que pode ser consertado pelos próprios clientes, substituindo peças quebradas com orientações de conserto disponíveis online.
Já a Apple começou a publicar manuais de assistência técnica online e abriu uma loja de reparos por autoatendimento. Nela, os clientes podem comprar peças de reposição da Apple e alugar ou comprar ferramentas para ajudá-los a consertar aparelhos quebrados.
Mas o esquema de reparos da Apple foi criticado por ser muito restritivo. Os clientes precisam fornecer um número de série único que deve coincidir com a peça específica do aparelho. A peça só pode ser substituída se coincidir remotamente com o aparelho, utilizando software fornecido pelo fabricante.
O verdadeiro desafio é alterar o modelo comercial da indústria eletrônica, segundo Iles.
“A forma como fabricamos, vendemos e transportamos os produtos… essas cadeias de fornecimento passaram por décadas de otimização”, explica ele. “Romper [esse modelo comercial] ou fazer algo que o contradiga, às vezes, é difícil de imaginar e é incerto que as empresas realmente invistam nisso.”
Outro obstáculo é o marketing. “Todo o modelo comercial é baseado no crescimento e na venda de mais telefones”, afirma van Abel. “O marketing é muito bom para vender coisas de que, na realidade, não precisamos.”
“Muitas pessoas ainda ficam muito animadas com o lançamento de um novo telefone celular”, afirma Iles, “mas é um enorme desperdício comprar um novo todos os anos, só porque a câmera tem alguns megapixels a mais e o tamanho da tela é um pouco diferente.”
É preciso haver um modelo comercial que incentive as pessoas a consertar seus celulares, prossegue Iles. Ele acrescenta que isso poderia ser conseguido se as empresas oferecessem aos clientes garantias mais longas para os aparelhos eletrônicos ou fornecessem peças de reposição, como telas e baterias.
Adotar um modelo de assinatura de aparelhos eletrônicos também poderia incentivar as empresas de tecnologia a priorizar a sustentabilidade, segundo Drew. “Não é questão de vender cada vez mais, mas de projetar produtos que durem e possam ser consertados.”
Este modelo já é adotado para roupas, segundo ela, em referência ao grande número de plataformas de aluguel, que vem ajudando a indústria da moda na transição para uma economia mais circular.
“Imagine se fizéssemos isso para máquinas de lavar e para todo tipo de eletrodomésticos”, sugere Drew. Mas isso iria exigir novas leis e regulamentações para ajudar a “nivelar o campo de jogo” e garantir que as empresas continuem a ter lucro com a adoção de um modelo mais sustentável, segundo ela.
Legislação a caminho
Diversos países europeus já trabalham para combater a cultura do descarte, facilitando para os consumidores a escolha de produtos que possam ser consertados e o reparo dos aparelhos quebrados.
Em 2021, a França começou a rotular certos aparelhos eletrônicos – incluindo televisores, smartphones, máquinas de lavar, laptops e cortadores de grama – com uma avaliação da capacidade de reparo, com base em cinco critérios que determinam o preço e disponibilidade das peças de reposição e a facilidade para desmontar o aparelho.
Na Suécia, os consumidores recebem incentivos fiscais para consertar roupas e aparelhos como máquinas de lavar roupas e pratos, além de bicicletas. E também há incentivos para que os consumidores consertem seus aparelhos nos Estados Unidos.
O presidente norte-americano Joe Biden assinou recentemente um decreto destinado a oferecer aos consumidores dos Estados Unidos o direito de consertar seus próprios aparelhos eletrônicos. E os Estados da Califórnia, Nova York, Minnesota e Colorado criaram leis em 2023 que garantem o direito à assistência técnica.
As leis exigem que os fabricantes forneçam aos consumidores peças e ferramentas adequadas por sete anos após a fabricação dos produtos, para que os usuários possam consertar seus próprios aparelhos.
“Estão surgindo muitas leis que obrigam os fabricantes a mudar de comportamento”, destaca van Abel. E ele espera que a Fairphone possa inspirar outras mudanças na indústria de telefones celulares, mostrando o que pode ser realizado.
“Nosso principal objetivo é tornar toda a indústria de smartphones mais sustentável”, defende ele. “Estamos aumentando a consciência em torno dos problemas da cadeia de fornecimento e criando soluções.”
Fonte: BBC
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