- Author, Susana Girón
- Role, Da BBC News Mundo
Cientistas descobriram que os primeiros habitantes da Europa se estabeleceram em um local remoto de Granada, na Espanha, há aproximadamente 1,4 milhão de anos.
A cidade de Orce fica no coração do Altiplano de Granada, no sul de Espanha, tem 1,3 mil habitantes e está cercada por terrenos vastos, desfiladeiros profundos e reservatórios de águas cristalinas.
Poucos viajantes se aventuram neste canto remoto da Andaluzia, mas aqueles que o fazem têm acesso a um lado fascinante do passado da Europa.
Seguindo pela estrada sinuosa 140 quilômetros a nordeste de Granada, passando pelas cristas serrilhadas do Parque Sierra de Huétor e pelas áridas planícies estepes do Parque Sierra de Baza até Orce, chegamos rapidamente a esta modesta aldeia no topo de uma colina.
A vila guarda um segredo profundo: acredita-se que ela contenha os restos mortais dos primeiros humanos da Europa.
Na verdade, as descobertas arqueológicas nesta região rural não só revelam vestígios de onde vieram os europeus, mas também quão diferente era o mundo natural quando os humanos pisaram pela primeira vez no continente.
‘Pedras que parecem ossos’
Em 1976, um fazendeiro local chamado Tomás Serrano começou a encontrar o que pareciam ser fósseis nos seus campos.
Reconhecendo o potencial de importância de suas descobertas, ele as mostrou aos vizinhos e familiares, explicando que havia encontrado “pedras que parecem ossos”.
Quando contatou as autoridades locais, elas não deram muita importância às suas descobertas. Mas quando três membros do Instituto Catalão de Paleontologia viajaram ao local e examinaram as descobertas de Serrano, ele confirmaram que o seu palpite estava correto: não eram apenas pedras comuns.
A propriedade Serrano e seus arredores logo se tornaram um sítio arqueológico e, quando uma equipe de especialistas desceu perto de Orce nos anos seguintes, descobriu uma presença contínua de restos fossilizados de grandes mamíferos de aproximadamente 1,5 milhão a 1,6 milhão de anos.
Esta camada fóssil se formou em um ambiente de lagoas de água doce perto do antigo lago de Orce-Baza, onde os ossos foram depositados e enterrados na lama calcária que os cobria.
Descoberta surpreendente
Em 2002, os arqueólogos fizeram uma descoberta surpreendente em Barranco León, a cerca de 4 quilômetros da fazenda de Serrano.
Ali, enterrados na encosta oeste da ravina, 14 metros abaixo da superfície, a equipe encontrou os restos fossilizados de um dente de criança.
Após extensos métodos de testes (incluindo ressonância de spin eletrônico, paleomagnetismo e biocronologia), os especialistas confirmaram que o molar é de 1,4 milhão de anos — o fóssil do gênero Homo mais antigo do continente.
O dente, cuidadosamente escavado entre camadas de sedimentos, pertence a um menino que viveu em uma época em que se acredita que os humanos estavam apenas começando a fazer fogo.
Este pequeno artefato contem em si os vestígios de um mundo distante: o sorriso cheio de dentes de uma criança congelada no tempo, em uma época em que os nossos antepassados distantes caçavam e tentavam evitar ser caçados.
Uma Europa muito diferente
Um dos aspectos mais fascinantes dos achados fossilizados na região de Orce é que não apenas revelam vislumbres do passado distante dos humanos, mas também do antigo cenário do sul da Europa.
Há aproximadamente 1,6 milhão de anos, um importante lago conhecido como Orce-Baza dominava partes dessa região.
Quando recuou, a água doce subterrânea assumiu seu lugar, levando uma ampla variedade de criaturas que prosperavam aqui.
Mamutes, hienas, tigres-dente-de-sabre, hipopótamos e veados coexistiam neste antigo cenário, juntamente com os primeiros hominídeos do gênero Homo na Europa.
De acordo com Juan Manuel Jiménez Arenas, paleoantropólogo e diretor do Projeto ORCE, “a biodiversidade deste local só é comparável à encontrada nos grandes parques africanos atuais. E ao olhar para as terras quase desertas, é difícil imaginar que hipopótamos se divertiam aqui e que grandes hienas de cara curta descansavam sob azinheiras e carvalhos perto de lagoas de água doce”.
‘O Vale do Silício da pré-história’
À medida que as escavações continuaram nos anos seguintes, os arqueólogos fizeram descobertas adicionais que os surpreenderam: não apenas descobriram que Orce continha os restos humanos mais antigos da Europa, mas também que as pessoas que habitaram esta área cerca de 1,4 milhão de anos atrás pareciam ter utilizado técnicas altamente inovadoras na fabricação de suas ferramentas de pedra, técnicas que não seriam repetidas até 400.000 anos depois.
Isso levou os especialistas a declararem este local como o “Vale do Silício dos tempos pré-históricos”.
No cerne dessa descoberta estão bolas de pedra em forma esférica conhecidas como esferoides.
Essas intrigantes ferramentas de pedra calcária denotam altas capacidades cognitivas, conhecimento de geometria, bem como características físicas das matérias-primas utilizadas.
Para criar essas ferramentas talhadas, os primeiros humanos tiveram que procurar a matéria-prima adequada (pedra calcária de grão fino) e planejar cuidadosamente cada golpe com um objeto semelhante a um martelo.
Os especialistas acreditam que os entalhadores de Barranco León tinham uma ideia preconcebida do produto final, uma motricidade muito refinada e uma hierarquia nos gestos de entalhe.
Um autêntico museu ao ar livre
Graças à sua importância pré-histórica e sua notável riqueza geológica, a região de Orce foi reconhecida em 2020 como Geoparque Mundial pela Unesco.
Além disso, a área abriga vários museus dedicados à pré-história, incluindo o Museu dos Primeiros Povoadores da Europa em Orce.
Aqui, os visitantes podem se maravilhar com as inovadoras ferramentas de pedra utilizadas por nossos antepassados e os impressionantes ossos de mamutes.
Outro local notável é a Pedra do Letreiro, no próximo vilarejo de Huéscar, uma famosa caverna que contém pinturas elaboradas.
As representações em vermelho intenso de animais e figuras remontam a mais de 6.000 anos, oferecendo uma visão fascinante da antiguidade.
Existem também várias empresas que oferecem passeios guiados pelo planalto de Granada, desde os museus arqueológicos locais até as montanhas, permitindo que as pessoas sigam os passos dos primeiros habitantes da Europa.
Especialmente nos fins de semana, as terras baldias ao redor e as escarpadas montanhas de pedra calcária atraem numerosos ciclistas e excursionistas ansiosos para explorar este recanto escondido da Espanha.
Mesmo no inverno, quando o vento cortante e as baixas temperaturas começam, os entusiastas desafiam os elementos, antecipando a chegada da sempre bem-vinda neve.
Casas modernas
A oito quilômetros a oeste de Orce, a cidade de Galera surge como um fascinante testemunho do passado.
Aqui, milhares de casas-caverna, escavadas no leito de rocha e nas colinas, sussurram histórias de tempos passados. Essas casas, de origem troglodita e pré-histórica, acredita-se remontarem à época árabe (início em 711 d.C.).
Atualmente, essas cavernas não apenas servem como residências contemporâneas, mas também representam uma conexão viva com a história duradoura da região do Altiplano, tecendo um fio contínuo desde a antiguidade até os tempos modernos.
Para os viajantes aventureiros, essas cavernas proporcionam uma experiência cultural e de hospedagem imersiva.
Com vistas panorâmicas e interiores cuidadosamente decorados, cada casa-caverna conta uma história de resiliência e adaptação.
Além de sua importância arqueológica, as pequenas cidades da região encantam os visitantes com suas numerosas ruas de paralelepípedos, cafés pitorescos e mercados locais, oferecendo uma amostra da cultura tradicional espanhola.
Este é também um dos melhores lugares para degustar o famoso cordeiro segureño da região, uma ovelha local relacionada aos pastores desta área.
Os vestígios dos primeiros habitantes da Europa
Desde os iberos até os romanos e muçulmanos, onda após onda de diferentes povos e culturas finalmente seguiram os passos desses primeiros humanos até aqui.
Cada um deles encontrou um lar nessa paisagem acidentada e, ao mesmo tempo, deixou sua marca nela.
Uma maneira de compreender e vivenciar essa história em camadas em primeira mão é embarcar no Grande Caminho dos Primeiros Colonizadores Europeus: um itinerário de 143 km que permite aos viajantes percorrê-lo de carro, bicicleta ou a pé. A rota passa pelas localidades de Huéscar, Castril, Castilléjar, Galera, Orce e La Puebla de Don Fadrique.
A imponente montanha La Sagra (2.383 m) domina o horizonte do caminho, e a jornada em si é uma aventura cênica pelo campo andaluz tradicional.
Seja sobre duas rodas, quatro rodas ou a pé, esta é uma região que merece ser absorvida lentamente, permitindo desvios espontâneos para vilarejos centenários a fim de descobrir tesouros escondidos ao longo do caminho, muitos dos quais ainda estão sendo desenterrados.
Fonte: BBC
Você precisa fazer login para comentar.