- Author, Amanda Ruggeri
- Role, Da BBC Future
A moda de pais que fazem “pegadinhas” com seus filhos nas redes sociais ignora um fato importante — crianças pequenas ainda não desenvolveram seu senso de humor o suficiente para conseguir achar a situação engraçada.
Uma das tendências mais recentes a viralizar em redes sociais é a de quebrar um ovo na cabeça de uma criança.
Em um dos vídeos, um garotinho usando uma camiseta de dinossauro é filmado em frente a uma tigela vazia e parece estar esperando por algo. Ao seu lado, há uma mulher — que aparentemente é sua responsável — segurando um ovo. Enquanto ele observa, ela quebra o ovo não na tigela, mas na testa do menino.
“Ai, isso dói”, diz ele, passando a mão na testa.
No dia 30 de agosto, a hashtag #eggcrackchallenge (desafio de quebrar o ovo, em inglês) tinha acumulado quase 75 milhões de visualizações no TikTok. A maioria das crianças nos vídeos parece ser jovem, com frequência em idade pré-escolar.
E embora cada uma tenha uma reação diferente ao ser vítima da pegadinha — algumas dizem que dói, outras parecem surpresas, algumas caem no choro ou até empurram ou batem nos pais — existe um comportamento comum. Quase todas não acham nada engraçado… enquanto os pais estão se acabando de rir.
Esse comportamento não é uma surpresa, dizem psicólogos, e há uma série de motivos para isso. Para começar, a maioria das crianças pequenas não conseguem entender o humor de pregar uma pegadinha em alguém. Quebrar um ovo é só o exemplo mais recente.
Além disso, há uma questão envolvendo o fato de que as crianças estão sendo filmadas e exibidas na internet sem o seu consentimento para audiências que às vezes chegam aos milhões de pessoas.
A verdade é que pregar “pegadinhas” ou fazer “trollagens” (como esse tipo de vídeo é com frequência chamado no Brasil), é uma brincadeira sem graça para as crianças e também pelo menos para uma parte dos adultos assistindo.
Existe um motivo para ficarmos desconfortáveis com esse tipo de brincadeira: existe uma linha tênue entre “pegadinha” e bullying, dizem os especialistas.
Isso é ainda mais verdade quando a vítima é menos poderosa do que quem está fazendo a pegadinha — por isso, uma regra implícita do humor é tirar sarro de quem está por cima, não de quem está na pior. E entre um adulto e uma criança, a criança sempre será a parte mais vulnerável.
É óbvio que, mesmo para adultos e adolescentes, ser vítima de uma pegadinha nem sempre é engraçado.
Se a brincadeira é engraçada, normalmente é porque a vítima imediatamente se dá conta do que está acontecendo, não foi ferida nem magoada de nenhuma forma e consegue rapidamente rir junto com quem pregou a peça, diz a psicóloga Rachel Melville-Thomas, porta-voz da Associação de Psicoterapeutas Infantis do Reino Unido.
“O que a gente quer é que as pessoas riam juntas. Rir junto cria coesão no grupo social”, diz ela.
“Se você é vítima de uma pegadinha, para ser engraçado, é preciso que você perceba rápido e pense ‘ah, que pegadinha bem elaborada’. É difícil isso acontecer se você está batendo na cabeça de alguém.”
E, para uma criança pequena, “pegar rápido” o tipo de humor envolvido em uma pegadinha é mais difícil por causa do estágio de desenvolvimento em que ela se encontra.
Na verdade, as crianças conseguem entender humor desde pequenas, mas não todos os tipos. Algumas pesquisas mostram que crianças de 5 e 6 anos já conseguem entender tipos mais sofisticados de humor — como sarcasmo e ironia — e algumas crianças de até 4 ou 3 anos já conseguem entender piadas.
Mas o tipo de humor envolvido em uma pegadinha é difícil para crianças pequenas porque a habilidade para entendê-lo é ligada à chamada “teoria da mente”.
Trata-se da habilidade de atribuir estados mentais tanto para si mesmo quanto para os outros. Isso nos permite entender que as pessoas podem pensar, sentir, e ter expectativas diferentes umas das outras.
Embora isso varie de criança para criança, essa habilidade costuma amadurecer entre 3,5 e 4,5 anos de idade (e continua se desenvolvendo durante a infância e a adolescência).
Mas mesmo que a criança tenha essa capacidade, há limites. E assim como qualquer outra habilidade, o humor não é algo que tem um botão de ligar e desligar.
Entender o humor de uma situação “é um processo complexo que envolve componentes cognitivos, comportamentais, emocionais, sociais e fisiológicos”, dizem pesquisas.
Alguns especialistas também se perguntam como, dada a violação física envolvida (e o fato, pelas reações de algumas crianças, de que a pegadinha parece tê-las machucado), algumas pessoas acham esse tipo de pegadinha especialmente engraçada.
Pesquisadores dizem que os vídeos de pegadinhas na internet, e particularmente aqueles que focam na resposta emocional e na dor da vítima, são o lado terrível da cultura de mídia social.
Uma teoria comumente aceita sobre o que torna algo engraçado é a quebra de expectativas. Teoriza-se que é por isso que muitas pessoas acham engraçado o humor pastelão, por exemplo.
Muito do humor inicial que as crianças desenvolvem deriva de um senso crescente de absurdo. “As crianças pequenas acham engraçadas coisas fora do lugar, como um elefante de chapéu”, diz Melville-Thomas.
“O problema com essa [brincadeira] é que ela é absolutamente inesperada. É ambientada em uma situação fofa do tipo ‘vamos cozinhar juntos com a mamãe’, e então você basicamente bate no seu filho.”
“É uma pegadinha, não uma piada”, diz a psicóloga. “Elas não apenas não são capazes de compreender cognitivamente o humor, mas também são alvo de piada. E há uma quebra de confiança.”
Quebra de confiança
Quando a pegadinha é feita pelos pais, avós ou responsáveis pela criança em geral, o que acaba marcando mais a criança é justamente essa quebra de confiança.
“Para uma criança com menos de cinco anos, os pais (ou responsáveis) são a base de segurança”, diz Melville-Thomas. “Os responsáveis são a rede de segurança, na qual a criança pode sempre confiar e saber que a pessoa não vai machucá-la”, diz ela.
Quebrar um ovo na testa de uma criança viola essa confiança.
“Os pais colocam a recompensa que receberão na internet — acessos, visualizações, curtidas ou algo assim — acima da preocupação sobre como o filho responderá àquela situação”, diz ela.
“Naquele momento, a necessidade ou desejo dos pais supera esmagadoramente a necessidade da criança, com consequências. Como mãe, as minhas próprias necessidades são mais importantes que as necessidades da criança em várias ocasiões, mas não de uma forma que prejudique o relacionamento que nós temos — que ela pode confiar em mim, eu não vou bater nela.”
A psicoterapeuta infantil diz que também se preocupa com o medo gerado, que a criança fique temerosa que aquela pegadinha aconteça novamente.
Mesmo entre adultos, as repetidas pegadinhas na internet entre casais podem ter um impacto negativo nos relacionamentos.
O que é particularmente interessante para especialistas como Melville-Thomas e Paige Davis, psicóloga do desenvolvimento na Universidade St. John em York, é que, quando as crianças nos vídeos respondem negativamente — como acontece frequentemente — os pais muitas vezes riem.
Isso mostra uma falta de sintonia, dizem eles, que é o oposto do que a maioria dos especialistas em desenvolvimento infantil hoje aconselham.
Nada disto quer dizer que um pai que participa de uma moda de pegadinha tenha arruinado a sua relação com o seu filho, diz Melville-Thomas. Nenhum pai é perfeito, nem deveria ser.
Mas, mesmo em situações como esta, um pedido de desculpas é importante — porque o que é crucial é o impacto que a pegadinha teve na criança, e não qual era a intenção do cuidador, dizem os especialistas.
“É melhor tentar falar sobre isso em vez de fingir que nada aconteceu”, diz Melville-Thomas.
“Você pode dizer: ‘Outro dia estávamos cozinhando e eu achei que seria engraçado te surpreender quebrando um ovo na sua cabeça, porque vi outras pessoas fazendo isso. Na verdade, doeu. Sinto muito’”, aconselha ela.
“Se fizer um pedido de desculpas, o pai realmente está dando uma explicação ao seu filho, dando um exemplo. O pai está dando o exemplo de como reparar coisas das quais ele se arrepende. E isso é ótimo.”
Fonte: BBC
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