- Author, Nicholas Barber
- Role, BBC Culture
Entre as muitas estreias de peso no Festival de Cinema de Veneza deste ano estão O Palácio, uma farsa satírica de Roman Polanski, Dogman, drama sombrio de supervilões de Luc Besson, e Golpe de Sorte, thriller em francês de Woody Allen, exibido na segunda-feira (4/9).
São exatamente o tipo de filme que atrai manchetes na imprensa e interesse dos cinéfilos que se poderia esperar de um dos festivais de cinema mais prestigiados do mundo. Mas eles têm uma outra coisa em comum: os três diretores foram acusados de agressão sexual.
Isso levanta a questão: os filmes deles deveriam sequer ser exibidos em Veneza?
O festival está sinalizando sua aprovação a esses homens ao dar a eles tanta publicidade? E os jornalistas que escrevem sobre eles estão fazendo o mesmo?
Alguns críticos disseram à BBC Culture que se recusaram a resenhar qualquer um dos três filmes. Na estreia do filme de Allen na segunda-feira eclodiram brigas enquanto manifestantes gritavam “sem cultura do estupro” antes de serem retirados do local.
É importante observar as diferenças entre os casos.
Polanski fugiu dos EUA para a França em 1978, na véspera de receber sua sentença, tendo sido acusado de estuprar uma menina de 13 anos, e desde então foi acusado de agressão sexual por várias outras mulheres, o que ele nega.
Besson também foi acusado de estupro por várias mulheres: num caso foi inocentado de todas as acusações e nos outros, que ele nega, ninguém apresentou queixa.
Allen foi acusado de ter abusado da filha adotiva dele, Dylan Farrow, em 1992. O caso foi investigado, mas não gerou acusações criminais; as acusações, que Allen nega, ressurgem com frequência, mais recentemente em 2021, após um documentário exibido pela HBO.
As acusações contra os três diretores não deveriam ser tratadas como uma coisa só, mas as semelhanças fizeram delas um tema de debate em Veneza.
Mudança drástica
A inclusão destes filmes no festival poderia simplesmente marcar a diferença entre as atitudes dos EUA e da Europa em relação aos escândalos.
Até recentemente, os três diretores eram a “nata” de Hollywood.
Em 2003, Polanski ganhou o prêmio de melhor diretor no Oscar por O Pianista e, em 2014, Blue Jasmine, de Allen, foi indicado a três Oscars. Mas o clima mudou desde então.
Um ponto de virada importante ocorreu quando relatos sobre os abusos sexuais de Harvey Weinstein foram publicados no jornal The New York Times e na revista The New Yorker em 2017.
A hashtag #MeToo explodiu imediatamente depois. Polanski foi expulso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em 2018.
Johnny Depp, que foi acusado de violência doméstica por sua ex-esposa Amber Heard (ele perdeu um processo judicial relacionado ao caso e ganhou outro), foi retirado da franquia Animais Fantásticos em 2020. Mesmo assim, Jeanne Du Barry, um drama de época coestrelado por Depp no papel de Luís 15, foi o filme de abertura do Festival de Cannes em maio deste ano.
Thierry Fremaux, delegado-geral do Festival de Cannes, disse à época que não era sua função decidir sobre a culpa ou inocência de um ator.
Alberto Barbera, diretor artístico do Festival de Cinema de Veneza, adotou uma abordagem semelhante.
Questionado sobre os diretores em entrevista ao jornal The Guardian, ele defendeu sua posição. “Não sou um juiz a quem se pede um julgamento sobre o mau comportamento de alguém. Sou crítico de cinema, meu trabalho é julgar a qualidade dos filmes.”
Ele acrescentou que Polanski “pediu perdão à vítima, e a vítima o perdoou”, referindo-se a Samantha Geimer, a mulher que Polanski foi acusado de estuprar quando ela tinha 13 anos.
Sobre Allen e Besson, ele foi mais enfático. “Por que razão deveríamos proibir um filme de [qualquer um deles] quando eles não são culpados perante a Justiça? Por que deveríamos ser mais rigorosos contra eles? Precisamos acreditar no sistema de Justiça.”
Semelhanças dos dois lados do Atlântico
Dependendo de como se encara a questão, a postura de Barbera pode ser interpretada como uma desculpa conveniente para fugir da responsabilidade ou um compromisso corajoso com os princípios de que as pessoas podem mudar (no caso de Polanski) e que todos são inocentes até que se prove o contrário (nos casos de Allen e Besson).
Em todo caso, a abordagem dele não é o que se ouviria num festival americano.
Mas talvez as atitudes frente ao escândalo não sejam tão diferentes nos dois lados do Atlântico.
Ezra Miller foi acusado de conduta desordeira, assédio e roubo no ano passado, após anos de controvérsias, mas isso não impediu a Warner Bros de lançar The Flash, no qual ele teve não um, mas dois papéis principais.
O que levanta o questionamento: a rejeição do cinema americano a certas pessoas problemáticas tem tanto a ver com negócios quanto com ética?
Afinal, Polanski tem 90 anos e Allen tem 87, e Besson e Depp já não são tão lucrativos. Hollywood pode virar as costas para eles sem grande sacrifício.
Paradoxalmente, essa mesma percepção – de que estes homens outrora poderosos estão agora à beira da irrelevância – poderia ajudar a explicar sua presença em Veneza.
Vários jornalistas que falaram com a BBC Culture disseram sentir que os diretores já não estão fazendo filmes que teriam ampla audiência, com seus trabalhos mais recentes sendo exibidos a alguns milhares de cinéfilos exigentes em ambientes restritos.
No entanto, faixas anônimas de protesto apareceram na manhã de domingo na ilha do Lido, onde é realizado o festival de Veneza, segundo o The Hollywood Reporter. Elas criticavam a inclusão dos diretores no festival e foram seguidas por protestos na estreia de Golpe de Sorte na segunda-feira.
Embora o filme de Woody Allen tenha sido recebido de forma relativamente positiva pela crítica – a Rolling Stone chamou-o de “seu melhor filme em uma década” – alguns sugerem que exibir os filmes desses homens pode ser uma punição mais adequada do que não exibi-los, pois isso poderia confirmar sua crescente irrelevância.
O Palácio de Polanski, por exemplo, revelou-se uma bomba e foi mal avaliado por todos os críticos que assistiram ao filme.
Uma dessas críticas, Jo-Ann Titmarsh, do Evening Standard, disse à BBC Culture que O Palácio, de uma só tacada, tornou impossível que alguém continuasse a defender Polanski como um gênio com defeitos.
“Se você não gosta de Polanski”, disse ela, “Alberto Barbera te fez um favor ao exibir o filme dele em Veneza”.
Fonte: BBC
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