Mudou o São João ou mudamos nós? Lembrando verso de Machado de Assis (Soneto de Natal), “Mudaria o Natal ou mudei eu?”. Penso que mudou o São João. E mudamos todos nós, com ele. Este ano nem São João tivemos. Por conta dessa pandemia que insiste em não nos deixar. Mas há algum tempo a festa já não é a mesma. E a culpa é da globalização. Que encurta distâncias, relativiza o tempo, simplifica rotinas. Ruim é que também descaracteriza valores. Inclusive os regionais. É o que está acontecendo com essa que é a principal festa do calendário nordestino.
Saudades do tempo em que cada rua fazia sua própria festa. Com bandeirinhas, balões coloridos, fogueiras, fogos, forrós, adivinhações: “Introduza uma faca virgem numa bananeira. No outro dia, aparecerá na faca a inicial do noivo ou da noiva. Se não tiver nada, paciência, não vai ter casamento”. O ponto alto era a quadrilha, com origem nas danças palacianas francesas que abriam os bailes das cortes, trazida ao Brasil pela aristocracia portuguesa, no início do século XIX. E mesmo se tornando, fundamentalmente, uma dança popular, ainda conserva, em sua marcação, o francês estilizado do anavantús (en avant tous) e anarriês (en arrier). A dança era ensaiada por semanas. Meninos com camisas xadrez, chapeis de palha e lenços no pescoço. Meninas com vestidos de chita enfeitados com sianinhas, fitas coloridas, rendas, babados. E comidas típicas dessa época, feitas com receitas passadas de mãe para filha – angu, bolo (de milho, fubá, macaxeira, pé de moleque), canjica, cuscuz, milho (assado ou cozido), mungunzá, pamonha. Sem esquecer o Quentão – feito com cachaça, açúcar, canela, casca de limão e gengibre. Servido sempre em canequinhas.
Agora, tudo parece ter se transformado em um grande negócio. Espaços públicos foram ocupados por empreendimentos privados. Divididos em camarotes. Com shows de artistas que fazem sucesso no Sul do país. Sem nenhuma ligação com a terra. Forrozeiros acabaram substituídos por sertanejos. Quadrilhas tradicionais, por danças estilizadas que nem de longe lembram as originais. E nossas comidas típicas estão perdendo espaço para produtos, quase sempre, industrializados e semiprontos. Que não requerem mão de obra especializada. Hoje vemos barraquinhas espalhadas por toda parte, com cachorro-quente, hambúrguer, pastel, pizza, refrigerantes, cerveja, whisky.
“Devolvam o nosso São João” – assim os forrozeiros denunciam a descaracterização das festas juninas no Nordeste. E com toda razão. Alcymar Monteiro lamenta: “A cultura é o que nos identifica como povo. Pensando assim, o forró é mais do que um ritmo. Mais do que nunca, hoje ele é uma música etnológica, que representa os mais de 50 milhões de nordestinos. Estão tentando transformar nosso São João em festa dos horrores. Querem apagar nossa fogueira, transformar nossa pamonha em crepe e nosso quentão em uísque do Paraguai”.
No Congresso Regionalista, em 1926, Gilberto Freyre chamava atenção para a importância de preservar nossas tradições regionais. Defender nossa cultura. Especialmente, valorizar esse que é um dos maiores patrimônios da região. Em nossa casa de Gravatá, procuramos fazer tudo isso. Todos os anos. Com duas fogueiras (uma pequena, para assar milho; outra grande, acesa mais tarde, para queimar a noite toda), balões pendurados no telhado, bandeirinhas por toda parte. Os netos vestidos a caráter. Com destaque, sobretudo, para a culinária. Só receitas típicas dessa época. Passei a véspera de São João preparando esses pratos, junto com filha, netas, nora. Infelizmente, esse ano, sem minha mãe e minha sogra. Deu muito trabalho. Mas, também, uma imensa alegria. Com a garantia de repetir todos os anos. Com os meninos de hoje assumindo, no futuro, nossos lugares. Para valorizar as tradições que lembram a importância de nossa história, de nosso passado, de nossa gente. E que só nos orgulham. Como nos versos do cantador (e compadre) Ivanildo Vila Nova, para ter sempre muito “orgulho de ser nordestino”.
Fonte: Folha PE
Autor: Letícia Cavalcante