• Author, Jean Mackenzie
  • Role, Correspondente da BBC em Seul

Há meses, a BBC se comunica em sigilo com três norte-coreanos que vivem no país. Eles expõem o desastre que se desenrola desde que o governo fechou as fronteiras há mais de três anos. Fome, repressões brutais e nenhuma chance de escapar.

Mudamos os nomes dos entrevistados para protegê-los.

Myong Suk se debruça sobre o telefone aflita, tentando fazer outra venda. Uma mulher de negócios inteligente, ela vende secretamente quantidades minúsculas de remédios contrabandeados para aqueles que precisam – para ela, o dinheiro é apenas o suficiente para que ela possa sobreviver àquele dia. Ela já foi pega uma vez e mal pôde pagar a propina para evitar a prisão.

Ela não pode se dar ao luxo de ser pega novamente, mas a qualquer momento pode haver uma batida em sua casa. Não é apenas a polícia que ela teme, mas também seus vizinhos. Agora não há quase ninguém em quem possa confiar.

Não era assim. O negócio de medicamente de Myong Suk costumava ser próspero.

Mas em 27 de janeiro de 2020, a Coreia do Norte fechou suas fronteiras em resposta à pandemia, impedindo não apenas pessoas, mas alimentos e mercadorias de entrar no país. Seus cidadãos, que já estavam proibidos de sair, foram confinados em suas cidades. Trabalhadores humanitários e diplomatas fizeram as malas e partiram. Os guardas estão sob ordem de atirar em qualquer um que se aproxime da fronteira. O país mais isolado do mundo se tornou um buraco negro de informação.

Sob o governo de Kim Jong Un, os norte-coreanos são proibidos de fazer contato com o mundo exterior. Mas com a ajuda da organização Daily NK, que opera uma rede de fontes dentro do país, a BBC conseguiu se comunicar com três cidadãos comuns.

Eles estão ansiosos para contar ao mundo sobre o preço catastrófico que o fechamento da fronteira causou em suas vidas. Eles entendem que, se o governo descobrir que estão falando com a imprensa, provavelmente serão mortos. Para protegê-los, podemos apenas revelar parte do que relataram, mas suas experiências oferecem uma visão exclusiva da situação que se desenrola dentro da Coreia do Norte.

Myong Suk

“Nossa situação alimentar nunca foi tão ruim”, diz Myong Suk. Como a maioria das mulheres na Coreia do Norte, ela é a principal provedora da família. Os magros salários que os homens ganham em seus empregos públicos compulsórios forçam as esposas a encontrarem maneiras criativas de ganhar a vida.

Antes do fechamento da fronteira, Myong Suk trazia da China os medicamentos que vendia em seu pequeno mercado.

Subornar os guardas de fronteira comia mais da metade de seus lucro, mas o esquema permitiu que ela vivesse uma vida confortável na sua cidade no norte do país, ao longo da vasta fronteira com a China.

A responsabilidade de sustentar sua família sempre lhe causou algum estresse, mas agora a consome. Tornou-se quase impossível conseguir produtos para vender. Certa vez, em desespero, ela mesma tentou contrabandear os remédios, mas foi pega e agora é monitorada constantemente.

Como alternativa, tentou vender medicamentos norte-coreanos, mas até isso se tornou difícil de encontrar hoje em dia, o que significa que seus ganhos caíram pela metade.

Agora, quando o marido e os filhos acordam, ela prepara um café da manhã com milho. Os dias em que podiam comer arroz puro ficaram para trás. Seus vizinhos famintos começaram a bater na porta pedindo comida, mas ela tem que mandá-los embora.

“Estamos vivendo no limite”, diz ela.

Chan Ho

Em uma cidade em outra parte na fronteira, Chan Ho, um trabalhador da construção civil, está tendo uma manhã frustrante.

“Quero que as pessoas saibam que eu sinto por ter nascido neste país”, desabafa.

Ele acorda cedo novamente para ajudar a esposa a se preparar para a feira antes de ir para o canteiro de obras. E desacarrega diligentemente os produtos na barraca, totalmente ciente de que o negócio dela é a única razão pela qual ainda está vivo.

Os 4 mil wons que ele ganha por dia – o equivalente a US$ 4 ou R$ 20 – não são mais suficientes para comprar um quilo de arroz, e já faz tanto tempo que sua família não recebe porções de alimentos do governo que ele até se esqueceu delas.

As feiras, onde a maioria dos norte-coreanos compra comida, agora estão quase vazias, diz ele, e o preço do arroz, milho e temperos disparou. Como a Coreia do Norte não produz alimentos suficientes para alimentar seu povo, depende de importações. Ao fechar a fronteira, o governo cortou suprimentos vitais de alimentos, juntamente com fertilizantes e maquinários necessários para o cultivo.

A princípio, Chan Ho teve medo de morrer de covid-19, mas, com o passar do tempo, começou a se preocupar em morrer de fome, especialmente ao observar as pessoas ao seu redor morrerem.

A primeira família em sua aldeia a sucumbir à fome foi uma mãe e seus filhos. Ela ficou muito doente e não conseguia mais trabalhar. Seus filhos a mantiveram viva o máximo que puderam, implorando por comida, mas no final os três morreram.

Em seguida foi a vez de uma mãe condenada a trabalhos forçados por violar as regras de quarentena. Ela e o filho morreram de fome.

Mais recentemente, um dos filhos de um conhecido foi dispensado do serviço militar por estar desnutrido. Chan Ho se lembra de seu rosto repentinamente inchado. Em uma semana ele havia morrido.

“Não consigo dormir quando penso em meus filhos, tendo que viver para sempre neste inferno sem esperança”, diz ele.

Ji Yeon

A centenas de quilômetros de distância, na relativa abundância da capital Pyongyang, onde blocos de prédios margeiam o rio que corta a cidade, Ji Yeon pega o metrô para trabalhar. Ela está exausta, depois de uma noite sem dormir.

Tem dois filhos e o marido para sustentar com os centavos que ganha trabalhando em uma mercearia. Ela costumava roubar frutas e legumes da loja para vender no mercado, junto com os cigarros que o marido recebia de propina dos colegas de trabalho.

Ela comprava arroz com o dinheiro. Agora, suas malas são minuciosamente revistadas quando sai e os subornos que o marido recebia pararam de chegar. Ninguém pode se dar ao luxo de perder nada.

“Eles tornaram impossível fazer qualquer dinheiro extra”, diz Ji Yeon, que agora passa o dia fingindo que comeu três refeições, quando na verdade fez apenas uma.

Fome ela pode suportar. É melhor do que as pessoas saberem que ela é pobre.

Ela ainda é assombrada pela semana em que foi forçada a comer puljuk – uma mistura de vegetais, plantas e grama moída em uma pasta semelhante a um mingau. A refeição é sinônimo da época mais sombria da história da Coreia do Norte, a fome devastadora que assolou o país na década de 1990, matando até 3 milhões de pessoas.

“Sobrevivemos pensando 10 dias à frente, depois outros 10, pensando que, se meu marido e eu morrermos de fome, pelo menos alimentaremos nossos filhos”, diz Ji Yeon.

Recentemente, ela passou dois dias sem comer.

“Achei que ia morrer dormindo e não acordar de manhã.”

Apesar de suas próprias dificuldades, Ji Yeon cuida dos que estão em situação pior. Há mais mendigos e, por isso, ela faz paradas para verificar se os que estão deitados no chão estão bem, mas geralmente descobre que estão mortos.

Um dia ela bateu na porta da vizinha para levar água, mas ninguém atendeu. Quando as autoridades entraram na casa três dias depois, descobriram que toda a família havia morrido de fome.

“É um desastre”, diz ela. “Sem suprimentos vindos da fronteira, as pessoas não sabem como ganhar a vida.”

Recentemente, ela ouviu falar de pessoas que se matam em casa, enquanto outras desaparecem nas montanhas para morrer.

“Mesmo que as pessoas morram na casa ao lado, você só pensa em si mesmo. É cruel.”

Crédito, NK News

Legenda da foto,

Foto tirada durante a pandemia mostra cidadãos esperando a passagem de um trem em um cruzamento em Pyongyang

Há meses circulam rumores de que pessoas estão morrendo de desnutrição, gerando temores de que a Coreia do Norte possa estar à beira de outra crise de fome. O economista Peter Ward, que estuda a Coreia do Norte, descreve esses relatos como “muito preocupantes”.

“Uma coisa é ouvir falar de pessoas morrendo de fome, mas quando você de fato conhece pessoas em sua vizinhança imediata que estão passando fome, percebe que a situação alimentar é muito séria – mais séria do que pensávamos e pior do que o país tem vivido desde a grande fome no final dos anos 1990”, diz ele.

A grande fome norte-coreana marcou uma virada na história relativamente curta do país, provocando um colapso em sua rígida ordem social. O Estado, incapaz de alimentar as pessoas, concedeu fragmentos de liberdade aos cidadãos para fazer o que precisavam para sobreviver.

Milhares fugiram do país e encontraram refúgio na Coreia do Sul, na Europa ou nos Estados Unidos. Enquanto isso, o comércio privado floresceu, pois as mulheres começaram a vender de tudo, desde soja a roupas usadas e eletrônicos chineses.

Nasceu uma economia informal e, com ela, toda uma geração de norte-coreanos que aprenderam a viver com pouca ajuda do Estado – capitalistas prosperando em um país comunista repressor.

Crédito, NK News

Legenda da foto,

Uma foto de uma criança faminta nos anos 1990 na Coreia do Norte

À medida que o mercado se esvazia durante o dia e Myong Suk conta seus poucos ganhos, ela teme que o Estado esteja vindo atrás dela e desta geração de “capitalistas”.

A pandemia, ela acredita, deu às autoridades a desculpa para exercer novamente um controle exacerbado sobre a vida das pessoas.

“Eles realmente querem reprimir o contrabando e impedir que as pessoas escapem. Agora, se você apenas se aproximar do rio que leva à China, recebe uma punição severa.”

Chan Ho, o trabalhador da construção civil, também está chegando ao limite. Este é o período mais difícil que ele já viveu. A grande fome foi difícil, diz ele, mas não havia as duras repressões e punições do momento atual.

“Se as pessoas quisessem fugir, o Estado não poderia fazer muito. Agora, um passo errado e você pode ser executado.”

O filho de seu amigo testemunhou recentemente várias execuções realizadas pelo Estado. Em cada caso, três a quatro pessoas foram mortas. O crime deles foi tentar escapar.

“Se eu viver de acordo com as regras, provavelmente morrerei de fome, mas apenas tentando sobreviver, temo que possa ser preso, marcado como traidor e morto”, Chan Ho diz. “Estamos presos aqui, esperando para morrer.”

Antes do fechamento da fronteira, mais de mil norte-coreados costumavam fugir para a Coreia do Sul todos os anos, mas desde então apenas alguns escaparam e conseguiram refúgio ao sul da fronteira.

Imagens de satélite analisadas pela ONG Human Rights Watch mostram que as autoridades passaram os últimos três anos construindo vários muros, cercas e postos de guarda para fortalecer a fronteira, tornando quase impossível a fuga.

O simples ato de tentar entrar em contato com pessoas fora do país é cada vez mais perigoso. No passado, os cidadãos que moravam perto da fronteira podiam fazer chamadas telefônicas secretas para o exterior conectando-se a redes móveis chinesas, usando telefones chineses contrabandeados para o país.

Agora, em todas as reuniões da comunidade, Chan Ho diz que qualquer um com um telefone chinês é instruído a se entregar.

Recentemente, um conhecido de Myong Suk foi pego conversando com alguém na China e foi enviado à prisão por vários anos.

Ao reprimir o contrabando e a conexão das pessoas com o mundo exterior, o Estado está privando seus cidadãos de sua capacidade de se defenderem sozinhos, diz Hanna Song, do Centro de Dados Norte-Coreano para Direitos Humanos (NKDB).

“Num momento em que a comida já está escassa, eles têm plena consciência dos estragos que isso vai causar”, afirma.

No entanto, esses controles extremos não conseguiram impedir a entrada do coronavírus. Em 12 de maio de 2022, após quase dois anos e meio de pandemia, a Coreia do Norte confirmou seu primeiro caso oficial. Sem meios para testar as pessoas, aqueles com febre foram, de fato, trancados em suas casas por 10 dias. Eles e toda a família foram proibidos de dar um único passo para fora. À medida que o surto se espalhava, cidades e ruas inteiras foram fechadas, em algumas ocasiões por mais de duas semanas.

Em Pyongyang, Ji Yeon observou de sua janela como alguns de seus vizinhos, que não tinham comida suficiente para enfrentar o lockdown, recebiam vegetais que eram colocados do lado de fora de suas portas dia sim, dia não. Mas mais longe, ao longo da fronteira, não havia tal ajuda.

Myong Suk entrou em pânico. Ela já estava vivendo um dia por vez, o que significava, na prática, que sua dispensa estava vazia. Foi assim que ela acabou vendendo ilegalmente remédios em segredo, convencida de que seria melhor ganhar dinheiro e se expor ao vírus do que arriscar morrer de fome.

Chan Ho diz que cinco famílias estavam “meio mortas” quando foram libertadas do lockdown. Eles só sobreviveram porque fizeram incursões noturnas para encontrar comida.

“Aquelas pessoas que ficaram totalmente em casa não sobreviveram”, diz ele.

“As pessoas clamavam, dizendo que iam morrer de fome, e por alguns dias o governo liberava um pouco de arroz de seus estoques de emergência”, diz ele.

Há relatos de que, em algumas áreas, os bloqueios foram cancelados mais cedo, quando ficou claro que as pessoas não sobreviveriam.

Aqueles que contraíram o vírus não podiam contar com os hospitais deteriorados do país para tratá-los. Até os remédios básicos acabaram. A recomendação oficial do governo era usar remédios populares para aliviar os sintomas. Quando a própria Ji Yeon ficou doente, ela ligou desesperadamente para seus amigos pedindo ajuda. Eles sugeriram que ela bebesse água fervente infundida com raízes de cebolinha.

De acordo com Ji Yeon, muitos idosos e crianças morreram de covid-19. Em um país onde cerca de 40% da população está desnutrida, segundo a ONU, especialistas em saúde dizem que faz sentido que, ao contrário do que aconteceu outros países, as crianças tenham sido mais infectadas.

Um dos médicos da cidade disse a Ji Yeon que, durante o surto, cerca de uma em cada 550 pessoas em Pyongyang morreu. Se extrapolado para o resto do país, isso equivaleria a mais de 45 mil mortes – centenas de vezes o número oficial de 74 mortes divulgado pelo governo. Todos os casos teriam recebido outra causa de morte no certificado de óbito, ainda segundo o relato, como tuberculose ou cirrose hepática.

Em agosto de 2022, três meses após o surto, o governo declarou vitória sobre o vírus, alegando que ele havia sido erradicado do país. No entanto, muitas das medidas e regras de quarentena ainda estão em vigor.

Quando Kim Jong Un fechou a fronteira de maneira tão extrema, ele surpreendeu a comunidade internacional. A Coreia do Norte é um dos países mais alvos de sanções devido à sua busca por armas nucleares.

Está proibida de vender seus recursos para o exterior e não pode importar o combustível de que precisa para operar. Por que, muitos perguntaram, um país já em decadência econômica infligiria tanta dor a si mesmo?

“Acho que os líderes decidiram que a covid-19 poderia matar muitas pessoas, ou pelo menos os tipos errados de pessoas, as pessoas que eles temiam que morressem”, diz Peter Ward, referindo-se aos militares e à elite que mantêm a família Kim no poder.

Com um dos piores sistemas de saúde do mundo e uma população desnutrida e não vacinada, era razoável supor que muitos morreriam.

Mas, de acordo com Hanna Song, do NKDB, a covid também apresentou a Kim Jong Un a oportunidade perfeita para voltar a exercer o controle sobre a vida das pessoas.

“Isso é o que ele secretamente queria fazer há muito tempo. Sua prioridade sempre foi isolar e controlar seu povo o máximo possível.”

Depois de preparar e comer seu magro jantar, Ji Yeon lava a louça e limpa sua casa com uma toalha úmida. Ela deita cedo na cama, torcendo por uma noite de sono melhor. Ela provavelmente terá mais horas de sono do que Chan Ho. Seu trabalho está tão ocupado agora que muitas vezes ele tem que dormir no seu canteiro de obras.

Mas na relativa tranquilidade de sua cidade fronteiriça, Myong Suk tira um momento para relaxar, sentando-se com sua família para assistir TV, usando uma bateria que eles carregaram durante o dia.

Ela gosta particularmente de dramas da TV sul-coreana, embora sejam proibidos. Os shows são contrabandeados através da fronteira em cartões de memória e vendidos em segredo. O lançamento mais recente que Myong Suk viu foi sobre uma estrela do K-pop que aparece na casa de uma família alegando ser seu filho há muito perdido.

Desde o fechamento da fronteira, quase nenhum programa novo chegou ao país, diz ela. Além disso, a repressão tem sido tão forte que as pessoas estão sendo mais cuidadosas.

Ela se refere à Lei de Rejeição à Ideologia e Cultura Reacionária, aprovada em dezembro de 2020. Segundo essa lei, quem contrabandear vídeos estrangeiros para o país e distribuí-los pode ser executado.

Chan Ho chama isso de “a nova lei mais assustadora de todas”. Simplesmente assistir aos vídeos pode levar a 10 anos de prisão. O objetivo da lei, segundo cópia do texto obtido pelo jornal Daily NK, é impedir a propagação de “uma ideologia podre que deprava nossa sociedade”.

A única coisa que Kim Jong Un teme acima de tudo é que seu povo aprenda sobre o mundo próspero e livre que existe fora de suas fronteiras e acorde para as mentiras que estão sendo vendidas.

Chan Ho diz que desde que a lei foi aprovada, os vídeos estrangeiros quase desapareceram. Apenas a geração mais jovem se atreve a assisti-los, causando imensa preocupação aos pais.

Ji Yeon relata um recente julgamento público em Pyongyang. Os líderes locais se reuniram para julgar um homem de 22 anos que compartilhava músicas e filmes sul-coreanos. Ele foi condenado a 10 anos e três meses de detenção em um campo de trabalhos forçados. Antes de 2020, Ji Yeon diz que este teria sido um julgamento tranquilo, com talvez um ano de prisão.

“As pessoas ficaram chocadas com o quão mais dura foi a punição. É tão assustador, a maneira como eles estão focando nos jovens.”

Ryu Hyun Woo, um ex-diplomata norte-coreano que desertou do governo em 2019, diz que a lei foi introduzida para garantir a lealdade dos jovens, porque eles cresceram com uma atitude muito diferente da de seus pais.

“Crescemos recebendo presentes do Estado, mas sob Kim Jong Un o país não deu nada às pessoas”, comenta.

Os jovens agora questionam o que o país já fez por eles.

Para fazer cumprir a lei, o governo criou grupos que reprimem “impiedosamente” qualquer coisa considerada antissocialista, diz Ji Yeon.

“As pessoas não confiam umas nas outras agora. O medo é grande.”

A própria Ji Yeon foi levada para interrogatório sob a nova lei. Desde seu interrogatório, ela nunca revela aos outros o que realmente pensa. Ela tem mais medo das pessoas agora.

Essa erosão da confiança preocupa o professor Andrei Lankov, que estuda a Coreia do Norte há 40 anos.

“Se as pessoas não confiam umas nas outras, não há ponto de partida para resistência. O que isso significa é que a Coreia do Norte pode se estabilizar e durar anos e décadas.”

Em janeiro de 2023, o governo aprovou mais uma lei, proibindo as pessoas de usar palavras associadas ao dialeto sul-coreano. A violação desta lei pode, nos casos mais extremos, resultar também em execução.

Ji Yeon diz que agora há muitas leis para lembrar que as pessoas estão sendo presar sem sequer saber o que supostamente violaram. Quando perguntam, os promotores simplesmente respondem dizendo: “Você não precisa saber qual lei você infringiu”.

“O que esses três norte-coreanos compartilharam apoia a incrível ideia de que a Coreia do Norte está ainda mais repressiva e totalitária do que nunca”, diz Sokeel Park, da organização Liberty in North Korea, que ajuda fugitivos norte-coreanos.

“Esta é uma tragédia devastadora que está se desenrolando.”

Recentemente, surgiram sinais de que as autoridades poderiam estar se preparando para abrir a fronteira.

Myong Suk e Chan Ho, que vivem ao longo da fronteira, dizem que a maioria das pessoas em suas cidades já foi vacinada contra covid – com uma vacina chinesa, eles presumem – enquanto em Pyongyang Ji Yeon diz que um bom número de pessoas recebeu duas doses.

Além disso, dados alfandegários mostram que o país está mais uma vez permitindo a entrada de alguns grãos e farinha da China na fronteira, possivelmente em uma tentativa de aliviar a escassez e evitar a tão temida grande fome.

Ji Yeon lembra quando Kim Jong Un se encontrou com o ex-presidente americano Donald Trump em 2018, para negociar o abandono de suas armas nucleares. Ela se lembra de ter ficado cheia de esperança e risos, pensando que talvez em breve pudesse viajar para países estrangeiros.

As negociações fracassaram e, desde então, Kim continuou a gastar suas limitadas finanças para melhorar seu arsenal nuclear, rejeitando todas as ofertas de diplomacia da comunidade internacional. Em 2022, ele conduziu um número recorde de testes de mísseis.

“Fomos enganados”, diz Ji Yeon. “Este fechamento de fronteira fez nossas vidas recuarem 20 anos. Sentimo-nos extremamente traídos.”

“O povo nunca quis esse desenvolvimento de armas sem fim, que traz dificuldades geração após geração.”

Chan Ho culpa a comunidade internacional.

“Os EUA e a ONU parecem estúpidos”, diz ele, questionando por que ainda se oferecem para negociar com Kim Jong Un, quando está tão claro que ele não desistirá de suas armas. Em vez disso, o trabalhador da construção deseja que os EUA ataquem seu país.

“Só com uma guerra, e livrando-nos de toda a liderança, podemos sobreviver”, diz ele. “Vamos acabar com isso de um jeito ou de outro.”

Myong Suk concorda.

“Se houvesse uma guerra, as pessoas dariam as costas ao nosso governo. Essa é a realidade.”

Mas Ji Yeon espera algo mais simples. Ela quer viver em uma sociedade onde as pessoas não passem fome, onde seus vizinhos estejam vivos e onde eles não precisem espionar uns aos outros. E ela quer comer três refeições de arroz por dia.

A última vez que ouvimos falar dela, ela não tinha o suficiente para alimentar seu filho.

Apresentamos nossas descobertas ao governo norte-coreano. Um representante da embaixada em Londres disse: “As informações coletadas não são inteiramente factuais, pois são derivadas de testemunhos forjados de forças contrárias à República Popular Democrática da Coreia. A RPDC sempre priorizou os interesses do povo, mesmo em tempos difíceis, e tem uma atitude inabalável de compromisso com o bem-estar das pessoas.

“O bem-estar das pessoas é nossa principal prioridade, mesmo diante de provações e desafios.”

A BBC gostaria de agradecer a Lee Sang-Yong e à equipe do Daily NK pela ajuda prestada para reunir essas entrevistas. Também gostaríamos de agradecer a Chung Seung-Yeon e à equipe da NK News por nos ajudar a verificar algumas de nossas descobertas e por fornecer fotos tiradas na Coreia do Norte.