Essa reportagem contém relatos que podem ser considerados perturbadores e causar gatilhos.
CENA 1
Sentadas na cama, mãe e filha folheiam juntas um pequeno livro.
Em uma das figuras, uma menina com rosto zangado cobre com as mãos a região das mamas e da vulva. Ela está vestida. Na mesma figura, também vestido, um menino cobre com as mãos a região do pênis.
- Author, Mônica Vasconcelos
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
A legenda diz: “Pessoas em quem confio podem tocar em mim, mas não nas minhas partes íntimas”.
Outra figura mostra uma mulher colocando uma toalha em volta do corpo de uma menina. Ao lado, vê-se uma banheira. A legenda diz: Posso precisar de ajuda para ir ao banheiro tomar banho e trocar de roupa.
Mais adiante, outra figura mostra uma menina entrando por uma porta. Com ar ressabiado, ela olha para um homem atrás dela.
Perigo, diz a legenda. Tenho cuidado se alguém quer entrar no banheiro, me chama para brincar de médico ou passa a mão no meu corpo.
Apontando para uma das figuras, a mãe diz:
“Está vendo aqui, filha? Ninguém pode tocar nas suas partes íntimas.”
E virando a página:
“E se alguém quiser entrar no banheiro, que nem está aqui nessa figura, você não deixa.”
A menina, uma adolescente com Síndrome de Down, tem dificuldade de fala. Com esforço, ela diz:
“Não pode? Papai faz.”
“Faz o quê?”, pergunta a mãe. “Mostra aqui no livro.”
Voltando para a primeira página, onde se vê uma menina de biquíni, com um “X” vermelho sobre a região genital, a menina aponta para a figura e diz:
“Ele põe a mão aqui.”
Apreensiva, a mãe pede:
“É mesmo, filha? Me mostra como ele faz.”
FIM DA CENA 1
Os nomes e outros dados pessoais foram omitidos, mas uma conversa muito parecida com essa realmente aconteceu. Foi assim que a mãe dessa adolescente descobriu que a filha estava sendo abusada sexualmente pelo padrasto.
O abuso pôde ser identificado graças a um livro fininho, com muitas ilustrações e pouco texto, que está se tornando um poderoso instrumento de prevenção ou, onde ela já ocorre, de detecção da violência contra crianças, inclusive a sexual.
Outro feito notável da revistinha, intitulada Eu Me Protejo, é sua aceitação por comunidades religiosas normalmente avessas a esse tipo de temática. E também por políticos conservadores e progressistas, entre eles, a ministra do Planejamento e Orçamento Simone Tebet, a deputada Celina Leão (PP), vice-governadora do Distrito Federal, o senador Romário (PL), a senadora Leila do Vôlei (PDT) e o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida.
Em dezembro de 2022, Eu Me Protejo foi ganhador do prêmio Pátria Voluntária, concedido por Michele Bolsonaro e pelo antigo ministério da senadora Damares Alves (PR), o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Nessa reportagem, as autoras do livro, a jornalista Patrícia Almeida e a psicóloga Neusa Maria da Costa Ribeiro apresentam a cartilha e explicam como ela funciona. Com exemplos, também revelam como o abuso acontece – em segredo e, na maioria dos casos, dentro da família.
Finalmente, fazem um apelo ao poder público:
“Eu vou lá, descubro a violência, a cartilha tem meios de descobrir. Mas depois, o que vou fazer com essas crianças, com esses adolescentes, com essas famílias? Se não tenho uma rede de apoio para tirar a criança das garras do abusador?”, pergunta Neusa Maria.
Como é a cartilha ‘Eu Me Protejo’?
O desenho dispensa explicações. Em primeiro plano, a palma de uma mão aberta, um gesto universal que quase grita: “Pare!”. A mão, em primeiro plano, parece gigante em contraste com sua dona, parada logo atrás e olhando direto para você, as sobrancelhas arqueadas sobre os olhos zangados. A menina, com vestidinho curto e cabelo afro, não está para brincadeira.
“Esse é o gesto que a gente ensina as crianças a fazerem, porque tem criança inclusive que não fala, então a gente ensina a botar a mão na frente – sai pra lá!”, diz Patrícia Almeida à BBC News Brasil, comentando a ilustração na capa de Eu Me Protejo.
“É inacreditável, mas 32 anos depois da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a gente ainda não foi capaz de ensinar às crianças que o corpo é delas”, diz Patrícia.
Mãe de uma adolescente que tem Síndrome de Down, a jornalista há muito se perguntava como melhor preparar a filha para enfrentar os desafios que viriam com a puberdade e a se proteger dos riscos de abuso sexual e outras violências.
“É um problema muito maior do que imaginamos”, diz.
“Se você é cega, surda, se você não fala, se você tem uma deficiência intelectual, você é muito mais vulnerável.”
“E se você precisa de ajuda para ir ao banheiro, até onde vai o cuidado e onde começa o abuso?”
Quando a filha entrou na adolescência, Patrícia entendeu que precisava fazer alguma coisa. A menina era totalmente ingênua, despreparada para conviver com outros adolescentes, ela conta.
“Tive a ideia de fazer o Eu Me Protejo.”
“Basicamente, são ilustrações e textos curtos dizendo, ‘essas são as partes do seu corpo, o corpo tem partes que são íntimas, ninguém pode tocar nas suas partes íntimas, se alguém quiser tocar nas suas partes íntimas, fale com alguém de confiança’.”
Ferramenta didática
Patrícia conta que, um dia, apresentou o livro em uma palestra no Distrito Federal para familiares de pessoas com deficiência.
“Aí, uma psicóloga com mais de vinte anos de experiência trabalhando com violência doméstica me falou, ‘nunca vi uma coisa tão fácil de entender’.”
A jornalista tinha feito o livro para a filha, mas se deu conta de que nenhuma criança estava tendo acesso àquele conteúdo.
Começa, então, uma parceria entre Patrícia Almeida e a psicóloga especializada em atender crianças Neusa Maria.
Neusa passa a utilizar a revistinha como ferramenta nos atendimentos e palestras que oferece a crianças e famílias em instituições de assistência, igrejas e escolas. Aos poucos, as próprias escolas começam a adotar a cartilha como instrumento didático.
“É difícil para o professor falar sobre certos assuntos”, comenta Neusa em entrevista à BBC News Brasil.
“Então, veio a cartilha Eu Me Protejo para instrumentalizar o professor para ensinar com livro, com música, com jogos”, diz.
“Ali tem uma forma lúdica de ensinar a criança a se proteger da violência.”
Mais adiante, veremos como a versão original da cartilha foi transformada com ajuda das próprias comunidades para que pudesse ser aceita em espaços onde, até então, esse assunto era proibido.
Mas antes, Neusa mostra, com dois exemplos, como a cartilha trabalha para identificar o abuso.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, 75,5% das vítimas de estupro no Brasil são vulneráveis (crianças, adolescentes, pessoas com deficiência ou incapazes de consentir).
E 76,5% dos estupros acontecem dentro de casa. 82,5% dos abusadores são conhecidos da vítima (pais, padrastos, irmãos, primos, avós ou outros parentes).
Um dado ainda mais preocupante, 10,5% dos vulneráveis estuprados eram crianças de 0 a 4 anos, 19,5% tinham entre cinco e nove anos e 31% tinham entre 10 e 13 anos.
“Sabemos que isso acontece, mas até a gente ter o Eu Me Protejo, não tínhamos como chegar (ao problema)”, diz Neusa.
“A nossa sociedade vai legitimando a violência sexual como um carinho.”
O caso da adolescente cuja história abre essa reportagem ilustra bem esse ponto.
Neusa conta que a mãe da criança veio conversar com ela após uma oficina.
“Eu estava explicando como os pais devem ensinar a criança a tomar banho”, lembra.
Ela ressalta que um dos objetivos de Eu Me Protejo é incentivar a autonomia e dar protagonismo à criança. “EU me protejo”, ela diz, enfatizando a palavra “eu”.
“Mas a mãe me relatou que o padrasto da criança era muito cuidadoso, tinha muito ciúme, amava muito a criança.”
“Ele dizia que a menina não conseguia se limpar direito e que podia pegar alguma infecção.”
Neusa conta que achou aquilo estranho. A menina tinha Síndrome de Down, mas já era uma adolescente. O natural seria que o padrasto encorajasse a menina a ser mais independente, aconselhou Neusa.
“A mãe ficou atenta”, lembra a psicóloga. “Ela levou o livro para casa para ler com a filha.”
E descobriu que o marido estava na verdade usando a deficiência da enteada como um subterfúgio. Seu objetivo era abusar dela.
“Não era amor, era abuso”, diz Neusa.
A adolescente nessa história tinha dificuldade de fala por causa da Síndrome de Down. As ilustrações da cartilha permitiram que ela se comunicasse de outra maneira.
A menina emudecera, mas apontava insistentemente para uma figura
No caso a seguir, veremos como o livro permitiu que uma criança pequena que não tinha deficiência pedisse socorro.
CENA 2
Na sala de atendimento, psicóloga e menina de 4 anos folheiam juntas um livro. Apesar de saber falar, a criança se mantém calada há vários meses.
A menina aponta para uma figura mostrando uma criança sentada no colo de um homem.
“Quem é essa aqui?”, pergunta a psicóloga. “E esse?”
Mas a menina não responde, apenas aponta insistentemente.
Intrigada, a psicóloga convida a criança a desenhar. Ela observa que, em todos os desenhos, figuras humanas, adultos e crianças, aparecem curvadas.
Dias depois, a menina chega ao atendimento com febre e pequenas feridas na boca. Exames revelam que a criança tem uma doença sexualmente transmissível.
FIM DA CENA 2
Novamente, dados pessoais foram omitidos ou alterados para proteger a privacidade da criança. Uma situação muito parecida com a descrita acima, no entanto, realmente aconteceu.
“Ela falava pouco, não porque não conseguia falar. Havia se calado. Isso são aspectos psicológicos da violência pela qual passava”, explica a psicóloga.
A equipe demorou para entender o que a criança estava tentando dizer, mas depois tudo ficou claro.
A criança no colo do homem era ela. E o homem, seu padrasto.
“Ela contou que ele a colocava no colo e ela sentia algo duro, espetando.”
E as figuras curvadas nos desenhos também eram uma referência ao que ela vivia.
“Ela fazia sexo oral (no padrasto) e achava que aquilo era normal, então desenhava todo mundo curvado porque achava que todo mundo fazia”, relata a psicóloga.
Quando trabalha a cartilha com famílias, Neusa explica que pais não devem forçar a criança a beijar, abraçar ou sentar no colo de adultos.
“A criança é tão espontânea. Se ela quiser, vai cumprimentar esse adulto.”
Neusa ensina os pais a ficar atentos.
“O abusador vai observar a criança para cometer a violência. Mas nós vamos, com a ajuda da cartilha, observar a criança para evitar a violência”, diz.
“Então, se eu observar, em uma festinha, que uma criança de cinco anos que normalmente não fica no colo está no colo desse adulto, eu vou dizer, ‘olha, aqui é conversa de adulto, criança têm que ficar com criança, então vai brincar’.”
Como contar à sociedade uma história que ela não quer ouvir?
Especialistas ressaltam que o índice de subnotificação do abuso sexual de crianças é altíssimo.
Somente os casos mais graves, onde médicos, policiais ou equipes de assistência são envolvidos, entram nas estatísticas.
Dados sobre violência sexual contra crianças e adolescentes com deficiência são ainda mais escassos, diz Patrícia.
“Na delegacia, se você sofre estupro, não tem lugar no boletim de ocorrência para você indicar que a pessoa tem deficiência.”
Mas um estudo global publicado em março de 2022 pela revista científica The Lancet Child and Adolescent Health nos oferece uma pista.
A pesquisa, com 17 milhões de menores em 25 países, envolvendo equipes de universidades na Grã-Bretanha, Estados Unidos e China, concluiu que, no mundo, uma em cada três crianças (com idades entre 0 e 18 anos) com deficiência foram alvo de violência – física, sexual, emocional ou negligência – em suas vidas.
Quando uniram forças em sua missão de prevenir e detectar o abuso sexual infantil no Brasil, Patrícia e Neusa sabiam que seu grande desafio era contar aos brasileiros uma história que ninguém quer ouvir.
Então, pediram ajuda a diversos profissionais dentro e fora do Brasil. Entre eles, pediatras, psicólogos, assistentes sociais, policiais, uma delegada e advogados.
Crucialmente, elas explicam, decidiram pedir ajuda também para a própria população.
Sem causar ofensa – A transformação da cartilha Eu Me Protejo
Neusa conta que quando viu pela primeira vez o livrinho que Patrícia tinha feito para a filha, percebeu imediatamente o potencial daquilo – mas sabia que seriam necessárias algumas mudanças.
É que nas comunidades onde trabalha, falar de certos assuntos é proibido. E falar deles com crianças, impensável, explica.
Então, nas mãos da psicóloga, a cartilha vai ter seu conteúdo transformado, delicadamente negociado em um processo de diálogo contínuo com a população que ela atende.
Por exemplo, na versão original havia desenhos de crianças sem roupa.
“Os pais ficaram indignados”, ela lembra. “‘Doutora Neusa, isso aqui não dá. Que absurdo é esse?’, diziam.”
A terminologia também teve de ser alterada. Sai o termo “educação sexual”.
“Muita gente pensa que isso quer dizer ensinar a criança a fazer sexo”, diz Neusa.
“Ninguém aceitou. Os padres não aceitaram, as igrejas (evangélicas) não aceitaram. Então, a gente fala de violência sem falar em sexualidade, nem sexo, e sem mostrar corpos nus.”
Esse processo de consulta ao público chama-se validação. Para as autoras, a chave que permitiu a entrada de Eu Me Protejo nesses ambientes.
“Na validação a gente pergunta, a pessoa conseguiu entender? A imagem está fácil de entender? Ou está ofensiva?”, explica Patrícia.
Muitos talvez se incomodem com a ideia de que a imagem de uma criança nua seja ofensiva.
“É mais importante proteger as criancas do que botar a criança pelada na capa”, pondera a jornalista.
Pedido de socorro
Em seus depoimentos, Patrícia e Neusa expressam total confiança na ferramenta que criaram. Mas também deixam claro que só isso não basta.
“Não aguento mais sair com essa cartilha e descobrir coisas”, diz Neusa.
“Posso te falar da minha angústia porque estou na linha de frente. Vou para a periferia, faço o atendimento, identifico o abuso.”
“Em quatro anos do projeto, nunca vi ação efetiva e concreta onde, após identificarmos o abuso por meio da cartilha, a rede de apoio conseguiu proporcionar para essa criança uma garantia de direito”, diz Neusa, a voz revelando grande emoção.
“Sei o que precisa ser feito, mas sei que, na maioria dos casos, a criança vai continuar inserida na situação de violência.”
Diante desse cenário sem esperança, a repórter se desculpa, mas faz a pergunta que talvez esteja na mente de muitos leitores:
Se a criança continua a sofrer nas garras do abusador, de que vale ela saber que está sendo abusada?
“Você me pergunta, é melhor ela não saber? É melhor saber”, responde.
“Porque se eu sei, eu tenho de pensar em alguma estratégia para sair. E eu sei que aquela responsabilidade não é mais minha, aquela culpa eu não vou carregar sozinha.”
Ela prossegue:
“Mesmo sendo crianca, ela começa a identificar esses processos. Porque até então, ela sofria duas vezes.
Sofria a violência e sofria pela culpa da violência.”
“E quando ela tem alguém na escuta, você precisa ver a diferença que faz, poder falar sobre isso.”
“Saber, e falar, também é bom para a psicóloga, para a jornalista e a sociedade”, diz Neusa Maria.
“Ninguém vai passar incólume por essa entrevista.”
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