- Author, Vinícius Lemos
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @oviniciuslemos
Atenção: esta reportagem contém detalhes perturbadores
Na tarde de 21 de junho de 2022, a vendedora Grasiela Ramalho, de 37 anos, estava no trabalho quando soube das primeiras informações sobre um ataque a facadas em um ônibus no centro de Piracicaba, em São Paulo, cidade em que mora com a família.
A princípio, ela conta que não prestou atenção nas notícias sobre o caso, porque não acreditava que poderia conhecer alguma das vítimas. Ela não cogitava que a mãe, Roseli Ramalho Ferreira, de 55 anos, pudesse estar no ônibus.
“Meu pai tinha mudado de horário no serviço e deu certo de os dois quase sempre voltarem para casa juntos. Então ela só pegava ônibus às vezes”, diz à BBC News Brasil.
Com a repercussão do caso, no entanto, ela começou a se questionar se a mãe estava no veículo. “Surgiu um pensamento: meu Deus, será que ela estava no ônibus? Aquele era justamente o horário em que ela saía do serviço.”
“Comecei a sentir um aperto no coração, mas na hora a gente nunca acha que pode ser. Entrei no Facebook e em várias páginas de jornais locais”, diz Grasiela.
Naquele dia, Roseli havia pegado o ônibus sentido Centro-Vila Sônia ao fim do expediente. Enquanto o veículo passava pela região central, um homem atacou alguns passageiros com uma faca.
Grasiela mandou mensagens para a mãe, mas não obteve resposta. Também tentou contato com o pai, mas não conseguiu falar com ele, que estava no trabalho.
“Começaram a chegar várias mensagens em grupos de WhatsApp e eu comecei a ver os vídeos. Até então, só mostravam o lugar em que o ônibus foi atacado.”
“Mas quando compartilharam um outro vídeo, eu abri e mostrava um menino que foi esfaqueado, aí a câmera virou e mostrou uma mulher caída no chão (na calçada). Eu reconheci que era a minha mãe principalmente por causa do tênis que ela usava, que a gente tinha dado para ela pouco antes, no Dia das Mães”, conta.
Grasiela começou a passar mal e a gritar desesperadamente. Os trabalhadores de comércios próximos correram para ajudá-la. “Me perguntaram o que tinha acontecido, mas eu não conseguia falar nada, só gritava ‘a minha mãe, a minha mãe'”, relembra.
Hoje, além de lamentar a trágica morte da mãe, Grasiela também se revolta pela forma como descobriu o fato. “Foi uma situação horrível. Nunca imaginei descobrir a morte da minha mãe por uma filmagem do corpo dela ali. Nunca passou pela minha mente, isso não passa pela cabeça de ninguém”, desabafa.
Os vídeos nas redes
Assim como no caso do crime em Piracicaba, é cada vez mais comum que acidentes, crimes ou desastres naturais sejam filmados ou fotografados e logo sejam compartilhados nas redes.
Os registros dessas situações se tornaram comuns com a propagação dos smartphones e com o avanço das redes sociais e aplicativos de mensagens. Em razão disso, em alguns casos não é incomum essas imagens chegarem a parentes das vítimas.
A psicóloga Maria Júlia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, destaca que uma das possibilidades é que a descoberta de uma morte por meio de uma foto ou um vídeo na rede torne o início do processo de luto ainda mais difícil.
Ela aponta que o ideal em uma situação de perda de ente querido é que a notícia seja dada de forma “delicada e respeitosa” e pessoalmente.
“Se a gente pensa em um ser humano que acabou de perder alguém, com quem tem um vínculo, é importante que haja uma dimensão humana nessa comunicação, um encontro, uma preocupação com essa pessoa, um acolhimento que nem sempre as redes sociais oferecem”, pontua a especialista, que ajudou a fundar o Laboratório de Estudo Sobre a Morte na USP.
“Evidentemente, o risco nas redes sociais é sempre muito grande de devassar uma intimidade, uma privacidade, de expor o sofrimento ou escancarar uma série de situações complicadas”, diz a especialista.
Ela aponta que o apoio é importante porque pode ser que a pessoa que recebeu a notícia se coloque em risco.
“Principalmente quando é uma morte inesperada, como em um acidente. Ao dar a notícia, é preciso observar o que acontece com a pessoa e se oferecer para dar acolhimento, ver o que ela precisa, ter um copo d’água próximo e ir acompanhando a pessoa”, diz.
Ao mesmo tempo, a psicóloga comenta que as redes sociais também podem ter um papel positivo durante o período de luto.
“Elas podem dar essa possibilidade do acolhimento, da troca, depois, de dizer sobre sentimentos compartilhados. Então não vamos só demonizar. Mas, certamente, no momento de dar a notícia na rede social não é o melhor caminho”, diz.
O tenente Gilberto Algarra, da Polícia Militar de Piracicaba, considera que esse comportamento de gravar e compartilhar situações que mostram vítimas de acidentes ou crimes “expõe um lado obscuro” das pessoas.
“Outro dia, negociamos com um homem que queria pular da ponte. Enquanto isso, do outro lado passavam alguns veículos com pessoas gravando com o celular e gritando para ele pular. Perceba o nível da insanidade. Tivemos que interditar a ponte para facilitar a negociação com o homem, que por fim desistiu da ideia de saltar”, comenta o militar.
Algarra acompanhou o caso do ataque ao ônibus de Piracicaba e diz que outros familiares de vítimas do crime também souberam que elas haviam sido esfaqueadas ao ver alguns vídeos compartilhados na rede.
“Esse comportamento de as pessoas gravarem essas situações expõe um lado obscuro delas. A sensação de exclusividade na divulgação de notícias de tragédias move um número cada vez maior de pessoas que perdem a sensibilidade e fazem de tudo para obter uma imagem para divulgar nas redes sociais ou aplicativos de mensagens. Elas não se preocupam se isso pode ferir alguém. Isso é um absurdo”, diz o militar.
Como retirar da internet?
Para Grasiela, o compartilhamento do vídeo da mãe após ser esfaqueada foi uma crueldade. “É preciso saber que a família daquela pessoa pode ver. O ser humano é curioso, vai abrir o vídeo, como aconteceu comigo, para ver o que estava acontecendo. Mas é cruel quando você vê que é um ente querido seu ali. É bem duro, não é fácil”, diz.
As famílias que tiveram vídeos ou fotos dos parentes mortos compartilhados nas redes podem buscar formas de denunciar o vídeo na plataforma em que foi compartilhado e solicitar a retirada do conteúdo — ou até mesmo, caso necessário, buscar a Justiça para cobrar a exclusão dos registros.
“É possível buscar a retirada do conteúdo das redes sociais ou quaisquer outras mídias em que tenha sido divulgado. A retirada, no entanto, não é garantida. Tudo depende do contexto”, comenta o advogado Marcelo Crespo, especialista em Direito Digital e coordenador de Direito na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Segundo Crespo, se for um contexto “absolutamente exploratório da situação de vulnerabilidade da família ou para exposição do cadáver” pode ser mais fácil para conseguir deletar o conteúdo da rede.
Em nota à BBC News Brasil, o WhatsApp informa que não faz moderação de conteúdo porque usa criptografia de ponta a ponta como padrão, o que, segundo a plataforma, impede que tenha acesso ao conteúdo de mensagens trocadas entre os usuários.
“O WhatsApp incentiva os usuários a refletir cuidadosamente antes de compartilhar conteúdo com seus contatos. Além disso, nossos Termos de Serviço indicam atividades proibidas no uso do aplicativo e podemos banir usuários em caso de suspeita de violação desses termos”, diz comunicado da empresa à reportagem.
O aplicativo ainda ressalta na nota que incentiva que “comportamentos inapropriados, além de conteúdos ofensivos e ilegais, sejam denunciados às autoridades competentes e diretamente nas conversas no app, por meio da opção “denunciar” (menu > mais > denunciar) ou simplesmente pressionando uma mensagem por mais tempo e acessando menu > denunciar.”
‘Mesmo vendo o vídeo, não queria acreditar’
Os parentes de Roseli optaram por não buscar formas para excluir ou impedir a propagação do vídeo na plataforma de mensagens porque afirmam que o material em que ela aparecia morta não teve grande divulgação nos dias seguintes.
A filha conta que nunca mais assistiu ao vídeo, passou um período sem mexer no celular e logo depois trocou de aparelho. “Fiquei traumatizada”, diz.
“Se eu não tivesse visto o vídeo, nem saberia que era a minha mãe, talvez eu só soubesse quando a polícia ou algum familiar me procurasse. Eu poderia ter descoberto de outra forma”, comenta.
Mesmo após assistir ao vídeo, Grasiela diz que ainda não queria acreditar que a mãe dela estava morta. “Eu não queria aceitar que era a minha mãe deitada no chão com sangue. Eu pedi a Deus para que não fosse a minha mãezinha ali, mas infelizmente era”, diz.
Quando chegou com o pai ao local do crime, Grasiela viu que diversas pessoas continuavam registrando a cena. “Um policial acompanhou a gente e disse que ia colocar a gente numa viatura, porque tinha muita gente filmando a nossa dor e ele disse que não achava isso legal”.
Além de Roseli, outras duas pessoas também foram esfaqueadas no ônibus e morreram. Outras três pessoas foram feridas.
Segundo a Polícia Civil, o responsável pelo crime, identificado como José Antônio Santana Filho, de 52 anos, entrou no ônibus e escolheu as vítimas de modo aleatório. Conforme a investigação, não havia motivo para o ataque.
O homem permanece preso desde a data do crime. A defesa do acusado apresentou à Justiça um laudo psiquiátrico que atesta a insanidade mental dele para solicitar que ele seja internado em um manicômio judiciário. O pedido ainda não foi avaliado pela Justiça.
“Acredito que nos próximos dias teremos um posicionamento do judiciário”, diz o advogado Gustavo Chacur, responsável pela defesa do acusado.
A família de Roseli agora espera pelo julgamento do acusado – ainda sem previsão para ocorrer.
“A gente entregou nas mãos de Deus, porque só ele faz Justiça. É muita maldade matar três pessoas e arrasar com três famílias. Mas a gente já entregou nas mãos de Deus, porque esse homem já tirou a nossa joia rara da gente e isso não tem como trazer de volta”, diz Grasiela.
Você precisa fazer login para comentar.