Um projeto de lei migratória do Reino Unido tem gerado não apenas debates políticos, como levou à suspensão do apresentador mais bem pago da BBC: o ex-jogador de futebol e comentarista Gary Lineker, há 24 anos na emissora e principal rosto do programa Match of the Day.
Lineker declarou no Twitter que o projeto era “horrível” e comparou o vocabulário usado pelo governo na questão dos refugiados com o que se via na Alemanha na década em que Adolf Hitler chegou ao poder.
O projeto de lei foi apresentado nos últimos dias pela ministra do Interior, Suella Braverman, como forma de combater o aumento no total de pessoas que tentam entrar no Reino Unido em barcos a partir da França pelo Canal da Mancha.
Segundo dados oficiais, mais de 45 mil pessoas entraram no Reino Unido irregularmente em botes e barcos no ano passado, contra 300 em 2018. Em resposta, Braverman e o governo do premiê conservador Rishi Sunak têm defendido um projeto de lei que prevê que pessoas detidas em rotas irregulares sejam imediatamente devolvidas a seus países (ou a terceiros países, como a França) e impedidos de pisar em solo britânico.
O argumento do governo britânico é de que a França não é um país que apresente riscos a potenciais refugiados e que, portanto, não haveria motivo para que essas pessoas tentassem atravessar o canal, em uma travessia arriscada. A maioria, segundo o governo britânico, seria formada por imigrantes econômicos e não refugiados.
Uma iniciativa do governo conservador que causou forte polêmica previa o envio desses migrantes a Ruanda, na África, para que eles fizessem lá – ou em terceiros países, a partir de lá – seus pedidos de status de refugiado.
Mas, assim como no caso de Ruanda, críticos têm questionado a moralidade do plano recém-anunciado pelo governo e colocado em xeque se ele cumpre com as normas das convenções europeia e da ONU em proteção direitos humanos e refugiados.
O tuíte de Lineker
Uma dessas críticas veio de Gary Lineker. Ao retuitar um vídeo de Suella Braverman em que ela dizia “precisamos impedir os barcos”, o apresentador comentou: “isto é além de horrível”.
“Não há um enorme fluxo. Recebemos bem menos refugiados do que outros grandes países europeus. Isso é apenas uma política imensamente cruel direcionada às pessoas mais vulneráveis com um linguajar que não difere do usado pela Alemanha nos anos 1930, e eu estou sendo inadequado?”, prosseguiu Lineker ao responder um comentário no Twitter.
A comparação com a Alemanha nos anos 1930, quando o país estava sob o regime nazista (Hitler chegou ao poder em 1933), gerou reações e debates sobre a fala de Lineker principalmente em dois aspectos: por um lado, comparar situações com o regime nazista e o Holocausto tende a gerar críticas por de certa forma diminuir os horrores do nazismo, quando 6 milhões de pessoas, principalmente judeus, foram executados pelo regime de Adolf Hitler. Por outro, o comentário pôs em xeque a forma como a BBC lida com a expressão pública em temas controversos feita por seu apresentador mais bem pago.
Suella Braverman afirmou que o comentário do apresentador da BBC “diminui a tragédia indescritível” promovida pelo governo alemão da época.
A suspensão da BBC
Por conta do comentário, Lineker foi suspenso da BBC, que afirmou, por meio de um comunicado, que o apresentador desrespeitou as regras de uso de redes sociais da emissora ao tuitar sobre a lei de imigração.
Por tratar a imparcialidade como um de seus pilares mais importantes, a BBC, uma emissora pública, tem regras rígidas a respeito do uso de redes sociais: principalmente jornalistas não devem emitir opiniões que comprometam os valores da empresa e a confiança recebida pelo público que financia a emissora.
“A BBC tem o compromisso em buscar a devida imparcialidade em todos os seus conteúdos. Esse compromisso é fundamental para nossa reputação, nossos valores e a confiança do público. O termo ‘devida’ significa que a imparcialidade deve ser adequada e apropriada ao conteúdo, levando em conta a expectativa do público e qualquer sinalização que possa influenciar essa expectativa”, diz o manual editorial da emissora.
No entanto, o caso de Lineker – como apresentador e comentarista esportivo, e não um jornalista – tem nuances. Em comunicado sobre o caso, a BBC disse que “nunca foi dito que Gary não pode emitir opiniões, ou que não pode ter opiniões a respeito de questões que importam para ele, mas sim que ele deve manter distância de tomar partido em questões partidárias ou controvérsias políticas”.
Essa posição se explica, principalmente, pela projeção de Gary Lineker, mas gerou críticas e questionamentos sobre como a medida poderia deixar a BBC do “lado errado” no debate sobre liberdade de expressão.
“Ficou decidido que ele se afastará da apresentação do Match of the Day até que concordemos em uma posição clara em seu uso de redes sociais”, prossegue o comunicado da BBC.
A decisão foi também alvo de críticas de que a BBC estaria cedendo à pressão do governo conservador britânico. Um dos ex-diretores-gerais da emissora, Greg Dyke, afirmou que a BBC minou sua própria credibilidade. Ele disse ainda que apresentadores esportivos não podem estar sujeitos às mesmas regras aplicadas à equipe de jornalismo.
Em solidariedade a Lineker, outros participantes do Match of the Day e até mesmo alguns jogadores de futebol anunciaram um boicote ao programa, que neste sábado (11/3) irá ao ar sem apresentadores.
Vários outros programas esportivos de rádio e TV da BBC precisaram ser tirados do ar no último minuto neste sábado, por conta de apresentadores que se abstiveram de participar, em demonstração de apoio a Lineker – que, com um salário anual de 1,3 milhão de libras, é o apresentador mais bem pago da emissora.
Ele disse a jornalistas que não se arrepende de seu tuíte.
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