- Author, Rafael Abuchaibe
- Role, Da BBC News Mundo
- Reporting from @RafaelAbuchaibe
Após um julgamento carregado de fortes emoções, Payton Grendon – um jovem americano de 19 anos – foi condenado à prisão perpétua por matar 10 pessoas em um supermercado na cidade de Buffalo, no Estado de Nova York, em 14 de maio de 2022.
Além de transmitir o ataque pela internet, Payton Gendron publicou um documento de 180 páginas onde explicou que seu objetivo era “assustar o maior número possível de pessoas não brancas e não cristãs” para que elas saíssem dos Estados Unidos.
Entre os muitos argumentos que usou como justificativa para seu crime, Gendron destacou um suposto plano arquitetado pelos “judeus para substituir a raça branca”.
Para o assassino, parte fundamental desse suposto plano é a “imposição do CRT” (sigla em inglês para a teoria crítica da raça, Critical Race Theory) nas escolas e universidades dos Estados Unidos.
A verdade é que a teoria crítica da raça se tornou nos últimos anos um dos temas de confronto preferidos de políticos e comentaristas conservadores no país norte-americano.
Figuras importantes, como o ex-presidente Donald Trump e o governador da Flórida, Ron DeSantis, culpam essa teoria por “criminalizar a população americana branca e aprofundar as divisões raciais.”
Mas o que realmente é a teoria crítica da raça? E, mais importante, por que ela se tornou uma questão tão polarizada nas escolas e universidades dos Estados Unidos?
O que é a teoria crítica da raça?
A teoria crítica da raça surgiu na segunda metade do século 20 como um modelo teórico que buscava explicar as desigualdades raciais nos Estados Unidos.
Nela, explica-se que a discriminação de uma pessoa por causa de sua raça não é um problema que existe apenas dentro do indivíduo, mas que foi transferido para as estruturas sociais em que vivemos, algo que se reflete nas instituições ou nas leis.
O modelo também se aplica a outros tipos de discriminação, seja de gênero, identidade sexual, etc.
O desenvolvimento acadêmico da teoria crítica da raça é atribuído a um grupo de professores – vistos como radicais no final dos anos 1980 – que adotaram muitas linhas de pensamento que viam o movimento pelos direitos civis dos anos 1960 como um “trabalho inacabado”.
Alguns de seus mais ferrenhos expoentes acreditam ser impossível eliminar as desigualdades com as estruturas existentes, exigindo uma reestruturação quase completa de instituições como a polícia ou instituições educacionais.
“Sejamos claros. A nação sempre teve uma explicação para a desigualdade”, disse Gloria Ladson-Billings, especialista em pedagogia e professora da Universidade de Stanford. Ela é uma das autoras responsáveis por adaptar a teoria crítica da raça para a educação.
“E de 1619 até meados do século 20, a explicação era biogenética: ‘Essas pessoas não são inteligentes o suficiente. Essas pessoas não são valiosas o suficiente. Essas pessoas não são morais o suficiente'”, acrescentou.
“Mas em algum momento no meio do século 20, na década de 1950, houve um interruptor que foi acionado e já estamos vendo que não é realmente genético, apenas alguns grupos não tiveram as mesmas oportunidades”.
Muitos dos avanços dos direitos civis ocorridos na década de 1960 – como o fim das leis de segregação racial e a igualdade perante a lei – foram baseados na ideia de que, historicamente, alguns grupos minoritários não tiveram as mesmas oportunidades que outros.
A controvérsia
Mas, para alguns comentaristas – especialmente de direita – a teoria racial crítica está no centro dos choques culturais nos Estados Unidos.
A teoria tem sido usada para explicar as desigualdades existentes entre gêneros ou entre identidades sexuais, e tem sido uma influência fundamental para movimentos como o #MeToo, sempre entendendo as desigualdades como problemas sistêmicos.
Nessa análise, esses problemas estruturais da sociedade precisam ser reformados “mesmo que (essa reforma) possa conflitar com direitos básicos da sociedade liberal como a liberdade de expressão”, conforme explicou a colunista americana Michelle Goldberg, no The New York Times, em 2021.
Essa “tensão” gerada quando o CRT afirma que direitos considerados fundamentais (como a liberdade de expressão) estão subordinados ao desmonte de estruturas racistas gera uma das maiores críticas feitas à teoria.
Essa crítica está no centro dos projetos de lei que tramitam nas casas legislativas de 16 Estados diferentes que buscam proibir o ensino da teoria nas escolas.
A legislatura estadual de Rhode Island, no nordeste do país, está debatendo, por exemplo, um projeto de lei que visa proibir o ensino de “qualquer conceito que sustente que os Estados Unidos são inerentemente racistas ou sexistas”.
O CRT recebeu críticas inclusive da Casa Branca em 2020, durante a presidência de Donald Trump.
Em um memorando, os órgãos federais foram proibidos de investir recursos em treinamento de CRT, por considerá-lo uma teoria “divisiva” e “antiamericana”.
“A propaganda polarizadora, falsa e denegridora do movimento da teoria racial crítica vai contra o que defendemos como americanos e não deveria ter lugar no governo federal”, afirma o documento.
O que dizem seus defensores?
Muitos acadêmicos insistem em esclarecer que a teoria crítica da raça é um modelo de pensamento, uma maneira de explicar a desigualdade racial e de gênero que existe em todas as escalas da vida nos EUA.
A professora Ladson-Billings, por exemplo, afirmou que, ao adaptar a teoria crítica racial para a educação, procurou explicar as razões por trás das desigualdades educacionais entre alunos negros e alunos brancos.
E afirmou que não adianta ensinar a teoria a alunos que não tenham pelo menos uma graduação.
“Primeiro, as crianças entre o jardim de infância e os 12 anos não precisam dessa teoria. Elas precisam de muitas experiências práticas. Portanto, não, não é ensinado nas escolas. Nunca ensinei a teoria a meus alunos de graduação na Universidade de Wisconsin”, disse.
Mas, além do mundo acadêmico, há quem diga que negar a teoria racial crítica significa negar que “o racismo está em todas as estruturas sociais”.
“O grande paradoxo de proibir (o ensino da CRT) é que isso confirma os argumentos básicos da teoria racial crítica”, diz Jesse Hagopian, membro do Black Lives Matter at School, durante um discurso em 2021 em Chicago.
“O racismo faz parte da lei, mesmo quando parece usar linguagem racialmente neutra, e que qualquer progresso em direção à justiça racial será recebido com uma reação da supremacia branca. Isso é o que estamos vendo”, disse o ativista.
Por que é um ponto de campanha republicana?
O Estado da Flórida é um bom exemplo para entender como a CRT se tornou uma batalha política, embora a discussão se repita no Texas, em Ohio e em outros Estados dominados por uma maioria republicana no legislativo.
Seu governador – e potencial candidato à presidência – Ron DeSantis se tornou o candidato republicano a ganhar o governo (no caso dele, a reeleição) pela maior margem sobre seu oponente democrata, Charlie Christ, na história da Flórida.
Muitos, inclusive, apontam DeSantis como o responsável por fazer a Flórida passar de um dos chamados “estados pêndulos” (aqueles que oscilam entre candidatos republicanos e democratas) para se consolidar como um reduto republicano.
Muitos comentaristas destacam o protagonismo que a guerra de DeSantis contra a CRT desempenhou como parte fundamental de seu sucesso, além de outros elementos de seu governo bem recebidos pelo eleitorado como a economia ou a gestão da pandemia de covid-19.
O governador entrou em seu segundo mandato dizendo que vai enfrentar atitudes no ensino superior que “imponham o conformismo ideológico” e “promovam o ativismo político”.
“Isso não é o que achamos apropriado no Estado da Flórida. Em vez disso, precisamos que nosso sistema educacional se concentre em promover a excelência acadêmica, a busca da verdade e dar aos alunos as ferramentas para pensar por si mesmos”, disse DeSantis, em uma entrevista coletiva à imprensa.
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