- Author, Mariana Alvim*
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Uma combinação de fatores relacionados à chuva, ao vento e ao mar fizeram do litoral norte de São Paulo o alvo de um “evento absolutamente extremo e histórico” no último fim de semana, nas palavras do meteorologista Marcelo Seluchi, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
Inundações e deslizamentos na região deixaram ao menos 40 mortos, 1.730 desalojados e 766 desabrigados, segundo o governo estadual — que, no domingo (19), decretou estado de calamidade pública nas cidades de São Sebastião, Caraguatatuba, Ubatuba, Ilhabela e Bertioga.
“Foi uma frente fria, só que com características muito particulares”, resume Seluchi, doutor em ciências meteorológicas.
“Primeiro, foi uma frente fria muito intensa, a ponto de levar a temperaturas muito baixas na região sul do Brasil e em países vizinhos. Quando passou essa frente pela Argentina, se falou na frente fria mais intensa dos últimos 54 anos. Não era qualquer frente fria.”
“Mas houve um outro elemento muito importante, porque formou-se uma pequena área de baixa pressão, que teve papel também muito importante para piorar a situação.”
De acordo com o meteorologista, a formação de áreas de baixa pressão atmosférica — que, em linhas gerais, costumam propiciar a formação de nuvens — em uma região relativamente pequena, entre os municípios de Santos e Ubatuba, fez aumentar as chuvas. Mas não foi só isso.
“Essa baixa pressão também provocou o aumento do vento vindo do mar. Então, esse evento arrastou umidade e aumentou o nível do mar. Subindo o nível do mar, houve muito mais dificuldade de escoar a água de chuva.”
Todos esses fatores acarretaram um volume de chuvas recorde registrado em um dia no Brasil: municípios como São Sebastião e Bertioga ultrapassaram os 600 mm de chuva em 24 horas.
Segundo levantamento do portal G1, o recorde de chuvas em um dia registrado pelo Cemaden tinha sido em Petrópolis, no ano passado: 534,4 mm. Já o recorde diário registrado pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) havia sido de 404,8 mm, em 1991, em Florianópolis.
Como mostrou a BBC News Brasil, em São Sebastião, o volume de chuva registrado no fim de semana (640 mm de chuva em 24 horas) foi três vezes maior do que o evento mais extremo documentado na cidade até então — em 2014, quando choveu 179 mm em dez horas.
Entrevistado pela reportagem, Fabrício Araújo Mirandola, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), afirmou que a média de chuvas para o mês de fevereiro inteiro na região é de 225 mm — ou seja, em um dia choveu três vezes mais do que o esperado para 28 dias.
Avisos prévios
“Destaque e atenção para o Litoral Norte que pode registrar acumulado de até 250mm”, diz o texto.
Não foi apenas esse o aviso de que algo atípico — embora subestimado diante do que realmente ocorreu — poderia acontecer no fim de semana carnavalesco no turístico litoral norte.
O Cemaden emitiu boletins falando do alto risco de “eventos hidrológicos” na região pelo menos desde o dia 13. Em nota, o instituto afirmou que também fez alertas sobre o risco de “chuvas muito intensas com potencial para provocar desastres na porção leste do Estado de SP” em reuniões no dia 16 com o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad) e no dia 17 com a Defesa Civil de São Paulo.
“Somente no dia 18/02 mais de 60 alertas foram emitidos, entre eles para Ubatuba, Ilhabela, Caraguatatuba e São Sebastião; portanto, desde o dia 16/02 a região litorânea de SP estava sob atenção”, disse o Cemaden.
Marcelo Seluchi, que é meteorologista da instituição, afirma que o episódio foi “bem previsto e avisado” aos órgãos competentes e aos governos locais, mas reconhece que a dimensão do desastre não era tão previsível.
“Quando fazemos uma previsão meteorológica, sabemos que o mais difícil é prever exatamente quanto vai chover. Mas nós sabíamos que se tratava de uma chuva muito intensa com potencial de desastres extremos.”
Sobre o papel das autoridades no desastre, Seluchi diz que ainda é cedo para avaliar.
“Sabemos que é uma região muito muito difícil, muito vulnerável. Uma grande proporção da população da região mora em áreas de risco — seja nas encostas ou nas pequenas planícies nas partes baixas, que estão sujeitas a receber os sedimentos que descem da serra”, diz o especialista.
“Vamos precisar avaliar depois, com mais calma, quais foram as medidas de preparação da Defesa Civil, considerando que o Cemaden avisou com antecedência.”
A BBC News Brasil pediu mas não recebeu posicionamentos da prefeitura de São Sebastião e do governo estadual de São Paulo.
O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional afirmou que o governo federal tem o papel de comunicar alertas aos governos locais e à população e de coordenar ações de preparação.
“No entanto, quem possui a capacidade e competência de avaliar as ações necessárias e que serão mais eficientes em cada localidade, são as autoridades locais. Estas ações, sejam de preparação, sejam de resposta, devem estar previstas no Plano de Contingência local”, escreveu a assessoria de imprensa do ministério.
“Não nos cabe, nem por competência, nem por capacidade de conhecimento da realidade local, esse tipo de determinação.”
Mudanças climáticas?
Além do papel das autoridades, ainda é preciso tempo — e estudos científicos — para saber o papel das mudanças climáticas no desastre do fim de semana.
Marcelo Seluchi explica que é difícil determinar a causalidade entre eventos extremos e as mudanças climáticas, mas afirma acreditar que possa haver alguma relação.
“Primeiro, porque a frente fria que provocou toda essa chuva foi muito intensa. A Argentina teve recordes de baixa temperatura e neve em lugares muito pouco frequentes — e em fevereiro (também verão no país vizinho), o que é muito estranho”, diz o meteorologista.
“Segundo, tem uma lei da termodinâmica que diz que o vapor mantido no ar depende da temperatura. Um aumento da temperatura traz um aumento de vapor. Ou seja, para países tropicais como o Brasil, uma mudança de 1ºC significa muito mais vapor do que aumentar 1ºC na Antártica ou na Patagônia.”
“Então, você torna o clima tropical mais úmido, mais quente e mais instável. Uma mesma frente fria consegue provocar hoje mais chuva do que há 100, 200 anos. E para piorar, as frentes frias estão ficando mais intensas em algumas circunstâncias.”
“Não é uma situação normal, e justamente as mudanças climáticas determinam um novo normal, né?”, conclui Seluchi.
*Colaboraram Leandro Prazeres, da BBC News Brasil em Brasília, e Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil em São Paulo
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