- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
Nas últimas semanas, a série The Last of Us, da HBO, virou sucesso de público e crítica. Mas você sabia que a história foi inspirada num fungo que existe de verdade?
Ele até já foi retratado num dos episódios do documentário Planet Earth, da BBC Studios, narrado pelo naturalista britânico David Attenborough.
Na ficção, a história se passa num futuro pós-apocalíptico, em que a civilização entrou em colapso depois de uma pandemia causada por um fungo capaz de controlar a mente das pessoas e transformá-las em zumbis.
Na vida real, os gêneros Cordyceps e Ophiocordyceps são capazes de invadir o organismo de insetos, como algumas formigas, controlar o sistema nervoso deles e levá-los para um lugar mais alto, onde os esporos do microrganismo se espalham com facilidade.
As similaridades, porém, ficam por aí. Esse patógeno em específico não consegue fazer o mesmo com seres humanos — embora outros representantes do reino dos fungos estejam se tornando uma preocupação nas últimas décadas.
A origem da ideia
No trecho do documentário Planet Earth que inspirou a história, as cenas retratam formigas que estão numa situação complicada: elas tiveram contato com o fungo parasita Cordyceps, capaz de se infiltrar no sistema nervoso delas.
“O cérebro infectado direciona a formiga para cima. Então, totalmente desorientada, ela agarra um galho com a mandíbula”, narra Attenborough.
As formigas vítimas desse fungo são rapidamente identificadas pelas companheiras que compartilham o mesmo ninho. Na sequência, elas são expulsas da colônia.
“A atitude pode parecer extrema, mas há uma razão para isso. Como numa peça de ficção científica, o corpo frutífero do Cordyceps surge a partir da cabeça da formiga”, continua o naturalista.
“Ele pode demorar até três semanas para crescer. Quando finalizado, os esporos são liberados. Daí, qualquer formiga nas proximidades estará sob um grande risco de morte.”
O documentário ainda destaca que as formigas não são as únicas vítimas. Há vários tipos de Cordyceps, e cada um deles se especializou em atacar uma espécie de inseto em específico.
Embora essa ação pareça dramática, vale ressaltar que o papel desses fungos não é de todo mau: ao afetar alguns insetos, o patógeno garante um equilíbrio da natureza, de modo que nenhuma espécie ganhe vantagem sobre as outras.
Da realidade para a ficção
A série The Last of Us é inspirada numa franquia de jogos de videogames que foi lançada na última década pela produtora Naughty Dog.
Em entrevistas, os criadores da história, Bruce Straley e Neil Druckmann, disseram que esse episódio do documentário Planet Earth da BBC serviu de inspiração para o desenvolvimento do universo pós-apocalíptico.
Nos jogos e na série de ficção da HBO, porém, o Cordyceps sofreu uma mutação e passou a afetar seres humanos.
O problema, na trama, começou em setembro de 2013, a partir de alimentos contaminados com o fungo que vinham da América do Sul. Em poucos meses, mais de 60% da humanidade foi morta ou infectada.
No mundo da fantasia, a infecção pelo Cordyceps tem quatro estágios. No primeiro, logo após o contato com os esporos do fungo, a vítima perde o controle sobre o cérebro e fica super agressiva. Duas semanas depois, há uma perda da visão.
Se o indivíduo sobrevive, o fungo destrói a face (mais ou menos como acontece com as formigas).
Para compensar, o zumbi desenvolve um tipo de ecolocalização: ele é capaz de se guiar pelos barulhos e por pequenos cliques que emite — não à toa, esses seres são chamados de “clickers” pelos sobreviventes saudáveis.
Nessas fases, a mordida de um infectado é capaz de transmitir o patógeno adiante.
Na fase quatro, que pode demorar até uma década, o fungo mata o hospedeiro e libera os esporos, que podem infectar outras pessoas.
Da ficção para a realidade?
Com o sucesso da série, muitos fãs começaram a se perguntar: será que um cenário no estilo de The Last of Us pode acontecer de fato?
A resposta mais simples para essa pergunta é não, garantem os cientistas.
“Na série, você tem aquele quadro que coloca os infectados num estado de zumbis, como se o fungo tivesse tomado o controle do sistema nervoso deles”, contextualiza o microbiologista Marcio Lourenço Rodrigues, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) no Paraná.
“De fato, infecções do sistema nervoso central causadas por fungos existem, e podem até induzir alterações comportamentais nas pessoas”, continua.
“Mas a glamourização da série acontece quando o fungo toma controle das pessoas. Isso já é ficção científica mesmo”, completa o pesquisador.
O médico Flávio Telles, da Sociedade Brasileira de Infectologia, reforça o potencial de alguns fungos de invadir o sistema nervoso dos seres humanos.
“Os Cryptococcus, por exemplo, podem provocar uma neuromicose muito séria e com alta taxa de mortalidade”, diz.
“Mas eles só causam esses quadros em pacientes que estão com o sistema imunológico muito comprometido”, complementa o especialista, que também é pesquisador da Universidade Federal do Paraná.
Os Cordyceps, portanto, só são uma ameaça para formigas e alguns outros insetos — e não há nada indicando que eles se transformarão num perigo para outras espécies, como os próprios seres humanos.
No entanto, um fenômeno retratado na série é real e já acontece na prática com outros representantes desse reino de seres vivos: o desenvolvimento de uma resistência ao calor e aos remédios disponíveis hoje.
“A nossa temperatura corporal média, em torno de 37 graus, é uma barreira para os fungos, pois a maioria absoluta deles não consegue crescer nessas condições”, ensina Rodrigues.
“Mas a diversidade de espécies fúngicas na natureza é enorme, e vamos supor que todas se desenvolvam bem nos 30 graus. Agora, imagine que essa temperatura média aumente um pouco, como de fato vem ocorrendo. A grande maioria dos fungos vai sumir, mas aqueles que tiverem capacidade de resistir um pouquinho mais vão prevalecer e ter à disposição uma enorme quantidade de nutrientes”, continua.
“Ou seja, de pouco a pouco, os fungos resistentes ganhariam a capacidade de sobreviver a temperaturas cada vez mais próximas à do nosso corpo.”
Com isso, explica o pesquisador, um micro-organismo que não tinha um potencial patogênico passa a ser um problema.
Foi mais ou menos isso o que aconteceu com a Candida auris, hoje conhecida como um superfungo que sempre vira notícia quando aparece em algum hospital.
Para completar, muitos desses micro-organismos estão se tornando resistentes aos poucos medicamentos e produtos agrícolas que temos disponíveis para combatê-los — e criar novos compostos antifúngicos não é uma tarefa fácil.
“Isso é um problema gravíssimo, porque os fungos são seres muito parecidos com os animais e os vegetais. Com isso, é muito difícil desenvolver uma molécula que seja tóxica para eles e não provoque os mesmos efeitos em nós mesmos”, diz a farmacêutica Kelly Ishida, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.
Apesar das evidentes diferenças entre vida real e ficção, Rodrigues acredita que séries como The Last of Us jogam luz sobre um perigo pouco conhecido.
Ele é um dos autores de um trabalho que revela como as infecções por fungo são ao mesmo tempo comuns e negligenciadas.
“Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas ficam cegas todos os anos por causa de ceratite fúngica [uma infecção ocular]. Aproximadamente 1 bilhão de indivíduos têm micoses de pele, o que faz essa doença ser apenas um pouco menos comum do que a dor de cabeça e as cáries. Os esporos de fungos contribuem para o aparecimento de quadros respiratórios em 10 milhões de pacientes. No total, 300 milhões sofrem de infecções fúngicas sérias todos os anos no mundo. Desses, 1,5 milhão morrem”, calcula o texto.
“Mesmo assim, o apoio financeiro aos estudos sobre as doenças causadas por fungos é extremamente baixo em comparação com outras enfermidades que têm uma mesma mortalidade. Por exemplo, para cada indivíduo que morre por malária, US$ 1.315,00 são investidos em pesquisa e desenvolvimento. O valor fica em 334,00 para tuberculose, 276,00 para doenças diarreicas e apenas 31,00 para meningite provocada pelo Cryptococcus“, estimam os autores.
“Reportagens, documentários e séries ajudam a chamar a atenção para o problema e permitem reconhecer que os fungos têm um grande impacto na saúde pública”, opina Rodrigues.
“Uma pandemia por fungos é improvável, mas não impossível. Por isso, devemos estar sempre preparados”, conclui o pesquisador.
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