- Simone Machado
- De São José do Rio Preto (SP) para BBC News Brasil
Foi ainda na gestação que a mãe da maquiadora e modelo Raiza Bernardo Barbosa, de São Roque (São Paulo), descobriu que a filha nasceria com fissura labiopalatina, característica conhecida antigamente como lábio leporino.
Sem saber exatamente o que era essa malformação, a mulher foi encaminhada para acompanhamento no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho) da USP, em Bauru, onde Raiza, de 26 anos, faz reabilitação e tratamento até hoje. (Veja mais abaixo o que é a fissura labiopalatina e o tratamento oferecido no Brasil.)
“O meu diagnóstico foi uma surpresa, a minha mãe não sabia do que se tratava e na minha família não havia caso da fissura labiopalatina. Naquela época, não tinha internet, as informações eram mais escassas, minha mãe conta que teve que buscar informação tudo de forma manual, conversando com as pessoas e com os médicos”, conta a maquiadora.
Logo aos oito meses de vida, Raiza passou pela primeira cirurgia para corrigir o lábio. No total, ela já fez quatro procedimentos, incluindo um enxerto labial – os procedimentos fecharam a fissura no lábio, no céu da boca e repararam a malformação na gengiva. A fissura de Raiz é unilateral e afeta o nariz e a boca do lado esquerdo do rosto. Outras duas cirurgias ainda devem ser feitas.
“Também coloquei um aparelho interno no ouvido esquerdo – por causa da malformação, tive perda da audição. Para terminar meu tratamento, ainda falta fazer uma cirurgia para reparar o meu nariz e outra para deslocar a mandíbula”, acrescenta Raiza.
Já são mais de duas décadas de tratamento e acompanhamento com uma equipe multidisciplinar composta por diversos especialistas como fonoaudiólogo, dentistas, otorrinolaringologistas, psicólogos e cirurgiões plásticos.
Preconceito
Raiza afirma que os procedimentos cirúrgicos e a recuperação nunca foram um problema. Porém, lidar com os olhares das pessoas e o preconceito foi algo que a fez por muito tempo tentar se esconder do mundo.
Segundo a maquiadora, a adolescência foi a pior fase. Por ser vítima de bullying na escola, ela tentava cobrir a cicatriz e corrigir imperfeições causadas pela fissura labiopalatina com maquiagens e evitava até mesmo falar para que os outros alunos não fizessem piadas com sua voz, que tinha tom anasalado devido à malformação.
“A minha infância foi bem tranquila, eu brincava, sorria, não tinha muito entendimento da situação e, para mim, era tudo normal. Já na adolescência foi quando eu conheci o preconceito. Ter que ir para escola era muito difícil porque eu queria me enquadrar no meio dos outros alunos, mas nem sempre conseguia, então evitava sair, conversar e tive um bloqueio psicológico onde eu nunca falava sobre a minha fissura, o assunto me machucava bastante”, conta.
Exposição nas redes sociais
Foi aos 21 anos que a maquiadora conta que passou a se aceitar novamente e então decidiu começar a falar sobre o assunto nas redes sociais. Além do seu perfil pessoal, ela criou a página Beleza Fissurada no Instagram, dedicada totalmente ao tema.
Nas redes sociais, a maquiadora produz conteúdos sobre autoestima, empoderamento feminino e aborda a questão do padrão de beleza irreal imposto pela sociedade em geral. A maioria dos seguidores, cerca de 80%, são pessoas com fissura labiopalatina, e Raiza se tornou uma ativista da causa.
“Hoje a fissura, para mim, é um propósito. Quando eu era adolescente, nunca tive uma pessoa que fosse fissurada para eu me inspirar, então eu tive que ser a minha própria inspiração. Por isso, busco falar do assunto mostrando as dificuldades e também que é possível ter uma vida normal”, diz.
E foi justamente através das redes sociais que Raiza foi ganhando espaço e também passou a fazer palestras sobre o tema. Durante uma ação social que foi como convidada, ela conheceu a modelo Isabel Hickman, que tem um filho que nasceu com a fissura, e foi indicada para ser a primeira mulher com a condição a fazer um ensaio fotográfico para a revista Vogue de Portugal.
Após as fotos, publicadas na edição de dezembro, diversas portas se abriram para a maquiadora, que recebeu convites de marcas de maquiagem para propagandas, principalmente de batons.
“Representar a causa, para mim, tem sido um legado. A gente precisa trazer mais informações sobre o tema, ainda existe uma carência muito grande para essas pessoas. É preciso desmistificar o assunto, trazer a verdade e não romantizar os desafios”, finaliza.
O que é a fissura labiopalatina
A fissura labiopalatina é a malformação craniofacial mais comum no nascimento, atingindo um a cada 650 bebês no Brasil. Durante a gestação, podem ocorrer falhas na formação facial, levando ao aparecimento da fissura labial (lábio aberto) e da fissura palatina (“céu da boca aberto”).
Há dois tipos de fissuras e a distinção entre elas está ligada aos fatores que levam a sua ocorrência. As fissuras não sindrômicas – mais comuns, com 70% dos casos registrados -, têm origem multifatorial, ou seja, interações entre fatores ambientais e genéticos. Os fatores ambientais mais conhecidos que são de risco para as fissuras são: bebida alcoólica, cigarros e alguns medicamentos como corticoides e anticonvulsivantes, quando utilizados pela mãe no primeiro trimestre da gestação.
Já as fissuras sindrômicas podem ser causadas por mutações gênicas e por alterações cromossômicas.
“Já nos primeiros ultrassons, normalmente feitos aos três meses de gestação, é possível diagnosticar a presença das fissuras. Após o diagnóstico, a gestante precisa ser encaminhada para serviços especializados para receber a orientação de todos os cuidados que o bebê vai precisar receber após o nascimento”, explica Daniela Franco Bueno, cirurgiã dentista, membro do corpo clínico do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus e Hospital Sírio-Libanês.
O Hospital Municipal Infantil Menino Jesus (HMIMJ), gerido pelo Instituto de Responsabilidade Social Sírio Libanês, é referência para os pacientes nascidos com fissuras labiopalatinas na capital paulista. Por meio do programa Mãe Paulistana, os bebês de maternidades públicas da cidade de São Paulo que nascem com a malformação são encaminhados para o HMIMJ, onde fazem o tratamento com a equipe multidisciplinar gratuitamente.
Tratamento
O tratamento da fissura labiopalatina é complexo, envolve uma equipe multidisciplinar e se estende por grande parte da vida do paciente. Tudo é oferecido gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
O indicado é que logo nos primeiros meses de vida sejam colocados modeladores nasais e aparelhos ortopédicos funcionais intra-bucais, quando necessário, e então, entre 3 e 6 meses de idade, é realizada a cirurgia de queiloplastia (para fechar o lábio).
“O acompanhamento deve começar na gestação porque essas crianças vão ter alguma dificuldade de alimentação, principalmente no caso de fissuras mais amplas, e a depender da extensão, pode comprometer a amamentação e alimentação desse bebê”, explica o médico Cristiano Tonello, chefe do departamento Hospitalar do HRAC-USP (Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP), referência no tratamento da fissura labiopalatina, no interior de São Paulo. Atualmente, cerca de 50 mil pessoas fazem acompanhamento no hospital pelo SUS.
Com aproximadamente 18 meses, é realizada a palatoplastia (para fechar o palato) e, aproximadamente, entre 7 e 12 anos é realizado o enxerto ósseo alveolar – onde se tira o osso da crista ilíaca (bacia) e coloca para fechar o osso alveolar (osso embaixo da gengiva). Esse procedimento também pode ser realizado na fase adulta.
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