- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Ele fugia do fascismo italiano, planejava se fixar em Buenos Aires e, sem querer, acabou ficando em São Paulo. Há cem anos, em 1923, o artista Galileo Ugo Emendabili (1898-1974) tornava-se “ítalo-brasileiro”. A partir de então, suas obras em espaços públicos, como o Obelisco do Ibirapuera e o Monumento a Ramos de Azevedo, tornariam-se indissociáveis da paisagem urbana da maior cidade da América do Sul, a São Paulo que completa 469 anos nesta quarta-feira (25/1).
“Meu pai foi um grande artista ítalo-brasileiro. Ele se dizia ítalo-brasileiro-paulista, porque adorava São Paulo”, conta sua filha, a advogada Fiammetta Emendabili, que anos atrás catalogou toda a obra de mais de mil esculturas do pai — incluindo sete monumentos em praças públicas paulistanas.
“Ele foi um homem de sensibilidade muito grande. Sua obra não se parece com a de ninguém: é o Emendabili, é do Emendabili”, derrete-se ela.
Nascido em Ancona, na região das Marcas, centro da Itália, ele era um dos dez filhos de um artesão que fazia móveis. Aos 8 anos, Emendabili passou a entalhar madeira. Prodígio, com 11 foi surpreendido pelo capelão da igreja de sua cidade esculpindo uma Nossa Senhora em fragmento de pedra.
Esse talento inato motivou a família. Em 1915, Emendabili foi matriculado na Real Academia de Belas Artes de Urbino, na mesma região das Marcas. Na instituição, graduou-se em escultura cinco anos mais tarde.
Ele então abriu um ateliê em Ancona, onde passou a se dedicar a esculturas artísticas e trabalhos correlatos. A partir de 1921, com a ascensão do fascismo na Itália, seu trabalho e seus posicionamentos fizeram com que ele fosse enquadrado como intelectual de oposição.
Em 1923, recém-casado com sua conterrânea Malvina Malfrini, temendo consequências da chegada de Benito Mussolini (1883-1945) ao poder, decide imigrar para Buenos Aires, na Argentina. “Ele se mudou por causa do fascismo. Como ele não era fascista, ele entrava nos concursos públicos para monumentos na Itália, ganhava, mas era preterido. Então ficou muito desgostoso e decidiu vir embora, com minha mãe”, conta a filha.
De acordo com o longo currículo de 118 páginas preparado pela sua família — ao qual a BBC News Brasil teve acesso —, aqui o fortuito deu um golpe que selaria seu futuro.
O que teria acontecido foi que, durante o trajeto, o comandante da embarcação soube que alguns viajantes fascistas estavam tramando seu assassinato, pois ele havia sido reconhecido como opositor de Mussolini. Avisado do risco que sofria, decidiu descer de vez em Santos, no Brasil. Dali, fixou-se em São Paulo, onde, a partir de 3 de julho de 1923, recomeçaria a vida.
No início, precisou arrumar um trabalho como ganha-pão. Tornou-se vendedor de tintas. Poucos meses depois, foi contratado pelo Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo como entalhador. Ainda não era um trabalho autoral, mas pelo menos envolvia suas especialidades artísticas.
Depois de um ano na cidade, Emendabili abriu seu primeiro ateliê, na Rua das Flores, mais ou menos onde hoje fica a Praça Clóvis Bevilacqua, na região central. Aos poucos, vai construindo uma clientela fiel, principalmente nas chamadas famílias quatrocentonas paulistas. Emendabili aceita diversas encomendas para arte tumular e, por isso, há dezenas de obras suas hoje nos cemitérios mais tradicionais da cidade, como o Araçá, o da Consolação e o São Paulo.
A arte funerária de Emendabili tornou-se, mais do que um nicho, uma categoria relevante a ser analisada. ‘Ausência’, obra de sua autoria feita em 1944 para a mausoléu da Família Forte, por exemplo, é das mais pungentes já vistas: traz uma mesa simples, em que um homem triste, arqueado, tem a companhia de um menino, choroso sobre os próprios braços; no centro da mesa, um pão espera ser fatiado; o detalhe que dói: são três bancos, um deles desocupado.
Mas o que tornou Emendabili um ícone da paisagem paulistana foram os monumentos em espaços públicos. Ele venceu importantes concursos e conquistou o direito de ter sua obra em pontos realmente importantes da cidade. Destaca-se outro mausoléu, mas não um particular que homenageia uma família específica; sim, o Obelisco Mausoléu dos Heróis de 32, mais conhecido como Obelisco do Ibirapuera.
Localizado na região do Parque do Ibirapuera, trata-se de um monumento em homenagem a todos os que lutaram no episódio conhecido como Movimento Constitucionalista de 1932. De quebra, uma cripta, também projetada por ele e repleta de obras de sua autoria, guarda os restos mortais de centenas dos soldados que morreram em combate durante as batalhas havidas naquele ano.
Outra obra bastante relevante dessa cepa foi o Monumento a Ramos de Azevedo. Emendabili venceu um certame internacional para fazer essa obra, em homenagem ao famoso arquiteto paulistano Francisco Ramos de Azevedo (1851-1928) – o monumento primeiro foi instalado na Avenida Tiradentes, depois removido e, mais tarde, colocado na Cidade Universitária.
Nessa época, o artista já trabalhava em um outro ateliê, mais bem-equipado, localizado na Rua Bela Cintra.
Mais para o fim da vida, segundo conta sua filha Fiammetta, Emendabili teve um espaço criativo dentro do Parque do Ibirapuera. “A lembrança que tenho é dele levantando-se cedo, ainda de madrugada, tomando um rápido café da manhã e indo urgentemente, a pé, para seu ateliê”, recorda ela, dizendo que era um espaço “maravilhoso”.
“Ele trabalhava o dia todo. Interrompia na hora do almoço, ao meio-dia. Comia e dormia uma horinha. Então voltava a trabalhar, umas 14h, até 18h30, 19h… Todos os dias, inclusive sábados e domingos. Meu pai não tinha hora para descansar, ele só trabalhou, até o fim da vida.”
Fiammetta diz que seu pai era “um homem da família e da arte”.
Influência italiana e contexto local propício
Professora de história da arte, a arquiteta Marcia Iabutti pontua que é possível “observar a evolução da obra de Galileo Emendabili ao longo do tempo”. “No início de sua carreira, são muito claras as influências da escultura clássica italiana em suas obras, tanto nas composições como na execução das figuras”, diz ela.
A filha Fiammetta diz se lembrar de como o pai apreciava a arte de seu país natal, principalmente aquela pré-Renascimento. “Ele carregava as lembranças dos anos 1300, adorava as pinturas do Giotto [di Bondone (1267-1337)], o primitivismo italiano… Ele adorava essa arte espontânea e se reportava muito a essas lembranças, sempre com sua sensibilidade artística muito apurada”, comenta.
“Aos poucos, suas esculturas foram se soltando da rigidez clássica e passaram a se alinhar a uma estética moderna, passando pela geometrização das figuras, típicas do estilo art deco dos anos 1930 e 1940, até chegar a uma eventual deformação dos corpos e das composições, que foram ficando alongadas livres e soltas”, acrescenta Iabutti.
Mestre em estética, historiografia e crítica pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o arquiteto e urbanista Henrique de Carvalho, fundador do Ateliê Tanta Arquitetura, classifica o trabalho de Emendabili como ao que se assemelhava “ao de muitos arquitetos modernos, que faziam obras ecléticas e modernas, simultaneamente, com uma certa tendência para a expressão da modernidade nascente com o passar dos anos”.
“Em geral, por mais que ele dominasse a técnica clássica das Belas Artes, vemos claramente a vocação para certa limpeza dos traços e até deformações muito propositais, típicas dos primeiros modernos”, analisa Carvalho.
Se por um lado sua genialidade explica o sucesso, por outro é preciso ressaltar que ele foi um artista muito alinhado à necessidade de seu tempo. O contexto urbanístico de São Paulo, naquela primeira metade do século 20, era um ambiente muito profícuo para esse tipo de escultura monumental.
Para o arquiteto e urbanista Valter Caldana, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, são quatro os fatores que, juntos, explicam a maneira como a carreira de Emendabili se desenvolveu bem no Brasil. Em primeiro lugar, sua origem italiana, muito bem-vinda culturalmente à São Paulo daquele momento. Em seguida, sua formação. “Além disso, o momento em que se situava a arte no mundo e no Brasil e, claro, por fim, o momento que vivia a cidade de São Paulo”, elenca ele.
“Foi a conjunção produtiva desses momentos que fez com que Emendabili, mas não apenas ele, pudessem ter uma produção bastante significativa na cidade de São Paulo, seja em quantidade, seja em qualidade”, afirma o professor, lembrando de outros nomes importantes do mesmo período, como o também ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1895-1955).
“O momento da cidade de São Paulo em especial era muito propício [para obra assim]”, prossegue Caldana. Segundo ele, três condições eram vivenciadas naquele contexto. “De um lado, a autoestima do cidadão paulistano e a construção de seu sentimento de pertencimento à cidade estavam em alta”, comenta. “Por outro, a cidade tinha um projeto claro, e não estou aqui entrando no mérito qualitativo deste projeto, que foi assumido por sua elite econômica, por sua elite política e também, e sobretudo, pela sociedade como um todo.”
Por fim, o arquiteto lembra que “não coincidentemente, uma atividade econômica fortíssima” havia, como causa e efeito “dos fatores anteriores”. “A efervescência econômica e cultural paulista e paulistana deste período é de reconhecimento mundial”, frisa.
Carvalho ressalta que a atuação de Emendabili ocorre em um período extenso em que “há um fio condutor comum na política e nas artes”. “É a preocupação em construir e afirmar uma imagem de Brasil que seja mítica, quase como um período de formulação de nossos mitos fundadores”, afirma ele. “Sua produção acompanha uma São Paulo que se moderniza e industrializa a passos largos, o que traz consigo um reforço nesse impulso afirmativo nacionalista. Foi um período muito fértil para todos os artistas, que formavam um núcleo não muito grande e trocavam ideias constantemente.”
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