- Mariana Schreiber – @marischreiber
- Da BBC News Brasil em Brasília
Eleito numa vitória apertada contra o agora ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) toma posse para seu terceiro mandato neste domingo (01/01) com desafios importantes pela frente.
Na economia, ele terá a missão de conciliar mais gastos sociais e investimentos com o equilíbrio das contas públicas.
No Congresso, vai precisar construir uma base de apoio para aprovar suas propostas e deve enfrentar uma oposição mais dura que em seus dois primeiros mandatos, devido às bancadas bolsonaristas eleitas na Câmara e no Senado.
Mas a forte polarização não está apenas dentro do Congresso. Outro desafio de Lula será governar em uma sociedade fortemente dividida e com segmentos radicalizados, que não aceitaram sua eleição.
Uma quarta fonte de preocupação é a relação com as Forças Armadas, que tiveram papel de destaque no governo Bolsonaro. Para estudiosos do tema, isso enfraqueceu a democracia brasileira e o governo Lula precisa afastar os militares da política.
Entenda melhor a seguir cada um desses quatro desafios.
1) Equilibrismo fiscal
Um dos maiores desafios do novo governo é cumprir suas promessas eleitorais, de mais gastos sociais e investimentos, ao mesmo tempo que reorganiza as contas públicas.
Esse desafio não é novo. Em 2016, na tentativa de segurar as despesas, o Congresso aprovou o chamado Teto de Gastos. O problema é que essa regra tem sido descumprida ano a ano — no governo Bolsonaro, foram gastos R$ 796 bilhões acima do limite constitucional, segundo cálculo do economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).
Com Lula não será diferente. A pedido do novo presidente, o Congresso aprovou em dezembro uma autorização para o governo gastar R$ 167,9 bilhões acima do teto em 2023. Com esse dinheiro, haverá mais recursos para obras, o Bolsa Família e outros gastos sociais como o programa Farmácia Popular.
Essa autorização foi aprovada pelo Congresso por meio de uma emenda constitucional, a chamada PEC da Transição. Ela também prevê que até agosto o governo envie ao Congresso uma nova proposta de regime fiscal para substituir o Teto de Gastos. A ideia é ter novas regras que regulem o aumento das despesas, já que o teto se mostrou ineficiente na prática.
Para Bráulio Borges, o conjunto da PEC da Transição não foi uma boa sinalização para o rumo das contas públicas. Na sua avaliação, o problema não está no aumento de gastos isoladamente, mas no fato de até agora o governo não ter indicado como vai elevar as receitas para cobrir as novas despesas.
Sem isso, os gastos serão pagos com mais endividamento público. E quando a dívida aumenta costuma subir também a taxa básica de juros da economia (Selic), o que dificulta o crescimento e a geração de emprego.
Para Borges, uma forma do governo dar uma sinalização rápida de compromisso com o equilíbrio fiscal seria rever cortes de impostos adotados por Bolsonaro, como a redução do IPI de diversos produtos industrializados e os cortes de PIS/Cofins sobre combustíveis.
Ele estima que a reversão dessas duas medidas significaria uma receita anual de cerca de R$ 80 bilhões.
O economista da FGV acredita que medidas como essa podem melhorar a confiança do mercado e da sociedade na capacidade do governo pagar sua dívida, o que ajudaria a reduzir a cotação do dólar, que está perto de R$ 5,30. E um recuo na taxa de câmbio traria alívio para a inflação, baratando itens como combustíveis e alimentos, cujos preços são impactados pela cotação internacional do petróleo e de commodities.
“A incerteza com relação à sustentabilidade fiscal tem impactos econômicos nocivos já hoje. E a gente vê isso de maneira muito concreta na taxa de câmbio. Não fosse toda essa discussão da PEC da transição, a taxa de câmbio já poderia estar em R$ 4,80, R$ 4,90. Haveria um alívio da inflação praticamente imediato”, argumenta Borges.
Mas a volta de alguns impostos proposta pelo pesquisador da FGV também traz riscos para o governo. No curtíssimo prazo, tirar o subsídio que Bolsonaro adotou para baratear os combustíveis vai ter como efeito uma subida imediata de preços. Isso costuma desagradar os caminhoneiros que, em várias ocasiões, reagiram com paralisações em todo país. Em 2018, uma mobilização desse tipo gerou retração econômica.
Sem detalhar, o novo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prometeu adotar medidas para melhorar as contas públicas já no início do governo, em entrevista ao jornal O Globo.
“Arrumar a casa é o item um. Rever desonerações, benesses que foram dadas eleitoralmente, sem base técnica alguma. Isso é uma sinalização que os atores vão responder a ela, o Banco Central, os investidores estrangeiros. Tem que ter uma arrumação inicial”, respondeu, em referência aos cortes de impostos adotados por Bolsonaro no ano eleitoral.
Já a economista Clara Marinho, que integrou a equipe de transição do governo eleito e é analista de planejamento e orçamento do Ministério do Planejamento, considera que um desafio importante para o governo é como garantir que as despesas públicas de fato sejam eficientes em atender os grupos mais pobres e historicamente excluídos.
Ela cita como exemplo o esperado reajuste de bolsas para pesquisadores. Na sua visão, não adianta apenas aumentar essa verba sem pensar também em como garantir que pesquisadores negros serão atendidos, já que esse grupo costuma enfrentar mais obstáculos na sua qualificação profissional.
“Eu vejo esse como o desafio fundamental: de ao mesmo tempo que fazer a recomposição de gastos de políticas públicas que afetam a qualidade de vida das pessoas, que afetam a estrutura de oportunidade e de usufruto de direitos, permitir que haja um desenho que garanta que essas pessoas não estarão excluídas depois de um ciclo de quatro anos de governo”, destaca.
Construir uma base no Senado e na Câmara dos deputados é fundamental para qualquer presidente governar, pois muitas das políticas propostas pelo governo precisam de aprovação do Parlamento. E também é importante para barrar eventuais tentativas de processo de impeachment.
Lula já enfrentou esse desafio em seus dois primeiros governos. O escândalo do mensalão, que estourou em 2005, estava relacionado à distribuição ilegal de recursos entre partidos aliados para garantir apoio no Congresso. Essa foi a conclusão do Supremo Tribunal Federal quando julgou o caso e condenou políticos do PT e de partidos da base aliada de Lula.
Cientistas políticos avaliam que hoje o cenário é ainda mais desafiador. Segundo Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington, o Congresso Nacional se fortaleceu na relação com o Poder Executivo, em especial a partir do governo de Dilma Rousseff, presidente que acabou derrubada por um processo de impeachment.
Já no governo Bolsonaro, o Parlamento passou a gerenciar dezenas de bilhões do Orçamento federal por meio das emendas do relator-geral, que ficaram conhecidas como Orçamento Secreto. Foi esse arranjo que garantiu uma base forte para Bolsonaro a partir de 2020, na medida em que o Planalto é que gerenciava o ritmo de liberação dessas verbas, negociando assim apoio a suas pautas no Congresso.
Em dezembro, o STF acabou com o Orçamento Secreto, pois considerou inconstitucional a destinação desses recursos de forma pouco transparente por parlamentares.
Com isso, o Congresso redistribuiu os R$ 19,4 bilhões que estavam previstos para essas despesas em 2023. Metade foi para as emendas individuais, por meio das quais o recurso é distribuído de forma transparente e igualitária entre os congressistas. E a outra metade voltou para gestão dos ministérios. Essa parte deve servir para negociar apoio no Congresso, na medida em que o governo poderá usar a verba dos ministérios para atender pedidos dos parlamentares.
Ou seja, no Orçamento Secreto era o Congresso que decidia sozinho onde os recursos seriam aplicados, enquanto o governo só ditava o ritmo de liberação do dinheiro. Nessa outra modalidade, o governo vai ter a palavra final sobre como será gasto o dinheiro.
Para Beatriz Rey, esse mecanismo será importante para Lula formar sua base no Congresso. Assim como a nomeação de aliados políticos para o comando de ministérios e outros cargos da máquina federal.
O presidente cedeu pastas importantes para siglas da centro-direita, como PSD, União Brasil e MDB.
Além de o Congresso ter se fortalecido nos últimos anos, outro fator que torna o cenário mais desafiador é a composição do Parlamento. Apesar da derrota para Lula, Bolsonaro conseguiu eleger muitos aliados para o Legislativo. Em especial, o Senado terá uma forte bancada de oposição ao novo governo, com ex-integrantes da gestão Bolsonaro, como Damares Alves (Republicanos/DF), Hamilton Mourão (Republicanos/RS), Sergio Moro (União Brasil/PR) e Marcos Pontes (PL-SP).
“Realmente (a relação com o Congresso) é um dos maiores desafios, se não for o maior desafio que o governo Lula vai ter. Isso porque a gente sai do governo Bolsonaro com o Congresso mais fortalecido, mas também porque a composição ideológica desse Congresso pende para a direita, e este governo pende para a esquerda”, observa Rey.
Pedro Abramovay, que nos primeiros governos de Lula atuou na liderança do PT no Senado e no Ministério da Justiça, também acredita que a relação com o Congresso será mais difícil agora.
Hoje diretor executivo para América Latina e Caribe da Open Society Foundations, ele nota que o Parlamento eleito em 2022 é reflexo de uma sociedade mais polarizada, o que significará uma oposição mais dura do que Lula enfrentou há vinte anos, quando PSDB e o então PFL lideravam esse campo.
“O Lula foi minoritário no Congresso várias vezes (em seus dois primeiros mandatos). Tinha um pedaço de uma oposição dura que era o PSDB, o PFL, mas mesmo com esses tinha diálogo. A hora que se discutia um projeto de lei de reforma do Código de Processo Penal se sentava, se dava os argumentos. Noventa porcento do que era votado, era votado em acordos. Isso pode ser que não tenha mais”, comparou Abramovay.
3) Sociedade partida
Assim como o Congresso mais polarizado, Lula terá que lidar com uma sociedade profundamente divida e com segmentos radicalizados.
A eleição de 2022 viu algo inédito: uma parte dos eleitores de Bolsonaro que não aceitou a derrota bloqueou rodovias e acampou em frente a quartéis pedindo um golpe militar. Houve até episódios graves de vandalismo em Brasília, além de ameaças de bomba dias antes da posse.
O novo ministro da Justiça, Flavio Dino, já deu declarações prometendo ações duras de repressão contra os envolvidos no que ele chamou de “terrorismo político”. Além disso, já anunciou como prioridade reverter medidas do governo Bolsonaro que facilitaram o acesso a armas.
Além da repressão a grupos violentos, estudiosos do bolsonarismo dizem que Lula deveria buscar reduzir a resistência dos segmentos mais conservadores da sociedade ao novo governo.
Para o professor da USP Pablo Ortellado, isso precisa ser feito para enfraquecer forças autoritárias na sociedade, ligadas ao bolsonarismo.
“O bolsonarismo é uma força política com traços muito autoritários e antidemocráticos. O desafio desse governo é desarmar essa bomba que foi armada pelo bolsonarismo. Precisa aproveitar esses quatro anos de respiro que o Bolsonaro vai estar sem a máquina pública, sem dinheiro, sem o controle do Estado, para afastar esse perigo, que a gente viveu nesses quatro anos”, defende Ortellado.
Para fazer isso, Ortellado diz que o governo deveria evitar algumas “cascas de banana” que mobilizam muito os bolsonaristas, como a relação histórica do PT com alguns governos autoritários.
Na sua visão, seria importante o presidente adotar uma postura mais crítica com governos de Cuba e Venezuela, como tem feito outra liderança de esquerda da região, o presidente do Chile, Gabriel Boric.
Além disso, Ortellado defende que o governo Lula desenvolva políticas públicas com uma abordagem mais técnica, sem uma carga simbólica que dispare reações conservadoras em temas sensíveis, como pautas feministas e LGBT.
Para a cientista política Nara Pavão, também é fundamental para reduzir a forte polarização da sociedade que o governo mantenha o espírito de frente ampla que o elegeu e que marcou a composição inicial do ministério, abrigando diferentes forças políticas, para além da esquerda.
“Ou seja, se descolar da ideia que predomina na direita extremista de que o PT é um partido de extrema esquerda, e que Lula vai implantar o comunismo. Então, o que o governo pode fazer é tentar apaziguar os ânimos dos grupos que estão polarizados, sem obviamente alienar o grupo que o elegeu. Lula tem de fato o apoio da esquerda, mas ele vai tentar costurar mais ao centro”, analisa Pavão.
4) Tirar as Forças Armadas da política
Outro desafio importante é reduzir a influência das Forças Armadas na política. Os militares ganharam um poder enorme no governo Bolsonaro, como não se via desde a Ditadura Militar, que acabou em 1985.
O agora ex-presidente, que é capitão reformado do Exército, nomeou militares para comandar ministérios-chave como Casa Civil e Saúde, e para ocupar outros milhares de postos civis na máquina federal.
Também envolveu de forma inédita os militares na fiscalização das eleições. E, depois da derrota, nem Bolsonaro nem o comando das Forças Armadas deram declarações rechaçando os movimentos golpistas nas portas dos quartéis.
Para estudiosos do assunto, essas ações enfraqueceram a democracia brasileira. Segundo esses especialistas, os militares, por serem o braço armado do Estado, devem ter um papel neutro na política, cuidando apenas da proteção do país frente a ameaças externas.
Lula escolheu para ministro da Defesa José Múcio, primeiro civil a comandar a pasta em cinco anos. Ele pode ser considerado um outsider da Defesa, porque não fez carreira na área. Foi escolhido por dialogar bem com civis e militares, conservadores e progressistas. É um político experiente e, inclusive, foi ministro da Secretaria de Relações Institucionais de Lula em seu segundo mandato.
Estudioso das Forças Armadas, o professor da Universidade de Brasília Juliano Cortinhas considera positiva a volta de um Civil ao comando da Defesa. Segundo ele, a função da pasta não é representar os interesses das Forças Armadas no governo, mas justamente o contrário: impor às Forças Armadas a vontade política do governo eleito na área de Defesa.
O professor, porém, criticou os nomes escolhidos para comandar as três Forças: Exército, Marinha e Aeronáutica. Lula e Múcio optaram por manter a tradição de priorizar os oficiais-generais mais antigos, num gesto visto como um aceno aos militares.
“Claramente as Forças Armadas estão usando esses pedidos (por intervenção militar), usando os acampamento, como uma forma de se posicionar no jogo político. E se colocando politicamente desse modo, elas estão ganhando espaço. Tanto que conseguiram a nomeação dos comandantes de Força que queriam. O Lula nomeou os mais antigos, quando, na minha opinião, deveria ter nomeado aqueles mais comprometidos com a volta aos quartéis, com a saída da política”, argumenta Cortinhas.
Outros especialistas, porém, avaliam que Lula está em terreno delicado e precisa agir com cautela. Nesse sentido, a escolha por antiguidade dos novos comandantes seria um caminho mais seguro para retomar o diálogo com as Forças Armadas.
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