- André Biernath – @andre_biernath
- Da BBC News Brasil em Londres
“Terra arrasada”, “legado de destruição” e “caos” foram alguns dos termos usados por integrantes dos Grupos de Trabalho (GT) do governo de transição e por especialistas independentes para descrever a situação do Ministério da Saúde após o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Na avaliação deles, o panorama da saúde pública brasileira vai exigir ações imediatas nos primeiros 100 dias do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O principal desafio da ministra Nísia Trindade Lima e sua equipe, avaliam as fontes ouvidas pela BBC News Brasil, é cumprir tudo o que precisa ser feito com um orçamento bastante apertado.
“O novo governo recebe um legado de destruição. O Ministério da Saúde foi destruído”, opina o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
“A recomposição do orçamento da saúde em R$ 23 bilhões, como anunciado, serve para recuperar um pouco da capacidade de vacinação, para impedir o fim do programa Farmácia Popular… Mas há uma série de ações que não custam tanto assim, como organizar as filas de exames e cirurgias ou melhorar os sistemas de tecnologia da informação e de telemedicina”, sugere o pesquisador.
O senador Humberto Costa (PT-PE), que foi ministro da Saúde no primeiro governo Lula e fez parte do GT do governo de transição recentemente, concorda.
“Vamos receber uma situação de terra arrasada, com crise de abastecimento no Sistema Único de Saúde (SUS) e a falta de vacinas e medicamentos”, descreve.
“Isso é algo que precisará ser resolvido rapidamente e envolve uma grande articulação entre Governo Federal, Estados, municípios, empresas…”, propõe.
A BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde do governo Bolsonaro, e pediu um posicionamento a respeito das críticas e das questões apontadas pelos entrevistados.
Em nota, o Governo Federal afirmou que, durante a pandemia, “atuou de forma célere e transparente para agilizar as medidas de prevenção, proteção e cuidado da população brasileira”.
“A pasta apostou na compra diversificada de vacinas, garantindo mais de 700 milhões de doses com um investimento de mais de R$ 37 bilhões. Destas, mais de 570 milhões de doses já foram distribuídas a todos os Estados e Distrito Federal”, diz o texto.
Após uma série de reuniões e debates desde o fim das eleições, o GT de Saúde do governo de transição elaborou um documento com dez ações prioritárias nos 100 primeiros dias de governo Lula — a lista foi confirmada por fontes ouvidas pela reportagem.
Conheça a seguir que medidas urgentes na saúde estão planejadas para o início do próximo governo e qual a importância delas.
1. Fortalecer a gestão e a coordenação do SUS
Vecina Neto explica que a saúde pública brasileira depende de um tripé para funcionar bem.
“Metade dos recursos vem do Governo Federal. Os Estados e os municípios são responsáveis por prover os outros 50%”, calcula.
A chamada “gestão tripartite do SUS” vai muito além do dinheiro: o Ministério da Saúde é o grande responsável por estabelecer as políticas. Mas quem as executa na prática são as equipes de saúde mantidas pelas prefeituras.
Pense na vacinação: o Governo Federal é quem costuma comprar as doses, definir quais são os públicos-alvo da campanha e distribuir a quantidade adequada para cada lugar.
Mas quem aplica de fato o imunizante no braço dos cidadãos lá na outra ponta dessa cadeia são os funcionários dos postos de saúde, nos bairros e nas cidades.
Portanto, para funcionar bem, essa relação entre Governo Federal, Estados, regiões da saúde e municípios precisa estar bem azeitada.
“E o governo Bolsonaro ignorou a gestão tripartite do SUS”, avalia Vecina Neto.
Na visão de Costa, a própria pandemia de covid-19 foi um exemplo disso: sem a coordenação do Ministério da Saúde, Estados e municípios criaram regras próprias para lidar com a alta de casos e hospitalizações ou definiram critérios diferentes sobre quem seria vacinado com as doses disponíveis.
“Um monte de gente que não tinha experiência no assunto foi colocada no ministério e o resultado disso é um sistema que não funciona. Tudo isso é problema de gestão”, pontua.
“É urgente acabar com o caos administrativo instalado na saúde”, acredita o médico Arthur Chioro, coordenador do GT em saúde do governo de transição e ex-ministro da Saúde.
O novo governo propõe como a primeira medida de todas na área da saúde o restabelecimento do tripé que mantém o SUS em funcionamento.
2. Reestruturar o Programa Nacional de Imunização e recuperar as altas coberturas vacinais
O Brasil sempre foi exemplo mundial quando o tema é vacinação. Porém, nos últimos anos, a cobertura de vários imunizantes despencou, como mostram os números do Ministério da Saúde.
Em 2021, apenas 60% do público-alvo de todas as campanhas de vacinação realizadas foi até os postos de saúde para tomar as doses preconizadas.
Em 2015, 95% das pessoas foram vacinadas adequadamente. A partir dali, essa taxa caiu de forma brusca em 2016 (50%) e seguiu abaixo das metas em 2017 (72%), 2018 (77%), 2019 (73%), 2020 (68%) e 2021 (60%) — os números de 2022 ainda não estão fechados.
“É inacreditável pensar que, em pleno 2022, estamos discutindo como recuperar uma política de vacinação que foi bem sucedida por 40 anos”, lamenta Chioro, que também é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Os especialistas também chamam a atenção para a situação de vacinas específicas, como aquelas que protegem contra a poliomielite ou o sarampo.
A pólio, uma doença que causa paralisia e morte de crianças, está eliminada das Américas desde 1994.
Mas a baixa cobertura vacinal aumenta o risco da volta de casos no Brasil a qualquer momento. Em 2015, mais de 98% do público-alvo recebeu as doses necessárias — esse índice caiu para 70% no ano passado.
Um exemplo de enfermidade que foi controlada, mas retornou logo depois, é o sarampo. O Brasil recebeu o certificado de eliminação desse vírus em 2016.
Dois anos depois, porém, esse status caiu por terra com um grave surto que se espalhou por vários Estados.
E por trás dessa recaída estão justamente as falhas na vacinação: em 2015, 96% do público-alvo tomou a primeira dose da tríplice viral (que protege contra sarampo, caxumba e rubéola). Em 2021, esse número ficou em 74%.
3. Fortalecer a resposta à covid-19 e às outras emergências de saúde pública e desastres nacionais
Embora o número de casos, hospitalizações e mortes por covid-19 tenha caído consideravelmente ao longo de 2022, o governo de transição entende que o coronavírus continuará a representar um desafio nos próximos anos.
“Até o momento, a vacinação contra a covid não aconteceu de forma integral, e vimos muitos problemas, especialmente com as doses de reforço”, avalia Costa.
“Com a chegada de novas variantes do coronavírus, a tendência é que enfrentemos um período de alta de casos nos próximos meses. Precisamos estar preparados para lidar com isso”, complementa.
O senador acredita que uma das medidas mais urgentes é a de garantir a chegada das vacinas bivalentes — que protegem contra algumas das linhagens mais recentes da ômicron.
“É necessário aplicar essas doses de reforço, especialmente nos idosos e na população mais vulnerável à covid”, clama.
Em nota enviada à reportagem no final de 2022, o Ministério da Saúde, ainda comandado por Marcelo Queiroga, afirmou que, “para reforçar o enfrentamento à covid-19 no país, o Brasil recebeu [em dezembro] cerca de 5,8 milhões de doses de vacinas bivalentes. Mais 13,8 milhões de doses estão previstas para chegar ao país”.
“A estratégia de vacinação para o próximo ano está em discussão pelo Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde. Vale destacar que os contratos firmados entre a pasta e os fornecedores garantem a continuidade da imunização da população contra a covid-19”, conclui o texto.
Costa também vê a necessidade de lidar com a covid longa, ou as sequelas prolongadas da infecção. “Temos pessoas que desenvolveram problemas sérios. Será necessário estudar melhor essas sequelas e ajudar na reabilitação da saúde desses indivíduos”, propõe.
Ainda neste tópico, vale destacar que o GT de saúde do governo de transição também fala em “outras emergências de saúde pública e desastres nacionais”.
Isso tem a ver com o histórico recente do mundo e do país. Além da própria covid, o Brasil respondeu a várias outras emergências sanitárias nos últimos anos.
Só na década mais recente, tivemos problemas sérios com chikungunya (2014), zika (2015), febre amarela (2016), sarampo (2018) e mpox (2022) no país. E isso sem contar os agentes infecciosos que causam problemas históricos e recorrentes, como o influenza e a dengue.
4. Reduzir filas para atender especialidades, como consultas, exames, procedimentos, saúde mental, etc.
“A péssima condução da pandemia no Brasil levou a um represamento de diagnósticos e tratamentos de várias outras doenças”, opina a médica sanitarista Lucia Souto, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde e integrante do GT de saúde do governo de transição.
“E essa é uma das demandas que o governo Lula também deverá enfrentar”, antevê a especialista.
Um exemplo disso é o câncer. Por conta das restrições da pandemia, muitos pacientes deixaram de ir ao médico ou de fazer os exames de rastreamento, que tentam detectar a doença em seus estágios iniciais, quando o tratamento costuma ser mais simples e barato.
A realização de mamografias de rotina, que diagnosticam tumores nas mamas, caiu 40% em 2020 e 18% em 2021, mostram os dados oficiais.
Agora, imagina o que acontece com essas mulheres que estão com câncer e não sabem disso: a doença delas vai evoluir aos poucos e, quando os primeiros sintomas surgirem numa fase mais tardia, o tratamento tende a ser bem mais caro e menos efetivo.
E esse acúmulo de casos graves, por sua vez, representa uma carga ainda maior para o sistema de saúde.
Tudo indica, portanto, que o governo Lula precisará lidar com essa demanda reprimida dos últimos dois ou três anos logo nos primeiros meses de 2023.
“Além disso, teremos que dar mais atenção a algumas áreas específicas, como a saúde mental”, pontua Chioro.
5. Fortalecer a Política Nacional de Atenção Básica e provimento de profissionais da saúde
Se, por um lado, lidar com as especialidades e as doenças mais graves é algo urgente e prioritário, por outro, muitas queixas de saúde podem ser prevenidas — ou resolvidas — bem antes.
O primeiro contato dos cidadãos com o SUS acontece numa área chamada “atenção básica”, que reúne médicos de família, agentes comunitários de saúde e Unidades Básicas de Saúde (UBS).
É essa equipe que acompanha as pessoas de uma determinada região, avalia parâmetros básicos de saúde (peso, pressão arterial, glicemia, febre…) e indica mudanças de estilo de vida que evitam várias doenças.
Só quando o caso é mais sério que o indivíduo acaba encaminhado para clínicas e hospitais especializados naquela enfermidade.
“A atenção básica é responsável por diagnosticar e tratar grande parte das doenças que as pessoas têm. A maioria das enfermidades crônicas e degenerativas, como hipertensão, diabetes e síndromes dolorosas, são acompanhadas nessa esfera do SUS”, resume Vecina Neto.
“Atualmente, cerca de 60% da população brasileira tem acesso à atenção básica em saúde, mas precisamos que esse número chegue a pelo menos 90%”, estipula o médico.
Nessa seara, uma das principais barreiras do próximo governo pode estar no provimento de profissionais de saúde, principalmente para as regiões mais carentes do país.
Uma das principais saídas para lidar com essa questão durante os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff foi o Programa Mais Médicos, alvo de muitas críticas e protestos de entidades representativas do setor, como o Conselho Federal de Medicina.
Será que esse programa poderá ser reeditado no novo governo Lula?
Chioro aponta que sim, e esclarece que o Mais Médicos tinha três componentes principais: investimento em infraestrutura das UBS, expansão das bolsas de residência nas faculdades de medicina e provimento de profissionais de saúde para as regiões com menos acesso.
“As vagas eram oferecidas primeiro para médicos brasileiros e para quem tinha o Revalida [o exame que certifica diplomas de medicina obtidos no exterior], só depois para os estrangeiros”, esclarece.
“Não estamos mais em 2013 e tivemos uma ampliação da quantidade de médicos formados no país nos últimos anos. A tendência, portanto, é que consigamos preencher as vagas com o nosso pessoal mesmo”, acrescenta.
6. Fortalecer a saúde da mulher, dos adolescentes e das crianças
Vecina Neto lembra que, antes de qualquer política específica de saúde, o governo precisará controlar de novo a fome.
Um estudo publicado em 2022 apontou que 33,1 milhões de brasileiros não têm garantias do que vão comer. Mais da metade da população (58,7%) convive com a insegurança alimentar em algum grau (leve, moderado ou grave).
“No ano passado, voltamos a internar crianças com desnutrição aguda, em estado de marasmo e torpor. São indivíduos seriamente prejudicados, pois a falta de nutrientes nessa fase tem consequências para a vida toda”, lembra o médico sanitarista.
“Portanto, a principal ação que o governo petista pode tomar é combater a fome por meio da distribuição de renda. Com isso resolvido, poderemos pensar nas demais prioridades sanitárias”, entende.
Segundo as propostas encaminhadas pelo GT de saúde do governo de transição, lidar com os desafios específicos da saúde das crianças, dos adolescentes e das mulheres — que envolvem não apenas a desnutrição, mas também programas de vacinação, prevenção de doenças mais frequentes nesses públicos e campanhas de conscientização — também deverá ser uma prioridade.
7. Fortalecer a Política de Saúde Indígena
Desde 2010, o Ministério da Saúde possui a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que coordena e executa as políticas específicas para essa população.
O setor conta com 22 mil profissionais (52% deles indígenas), atua na atenção primária e nas ações de saneamento e acompanha mais de 762 mil indivíduos aldeados em todo o Brasil.
Durante a campanha, Lula deixou claro que a questão indígena teria uma atenção especial de seu governo.
E uma das primeiras ações nesse sentido foi a anunciada criação do Ministério dos Povos Originários, cujo comando foi entregue a Sonia Guajajara (PSOL). Com a pasta ficará também o comando da Sesai.
“Nos últimos anos, a saúde indígena foi profundamente afetada e alguns povos estão numa situação limítrofe”, constata Souto, que também integra a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).
8. Resgatar a Farmácia Popular e a assistência farmacêutica no SUS
Nos últimos meses do governo Bolsonaro, os cortes de bilhões de reais do orçamento impactaram vários setores da saúde.
Um dos mais afetados, segundo notícias divulgadas à época, foi o Programa Farmácia Popular, que disponibiliza medicamentos de graça, ou com parte do valor subsidiado, em redes de drogarias privadas.
Os fármacos disponíveis são justamente aqueles usados na atenção básica e servem para controlar as doenças crônicas mais comuns, como diabetes, asma, hipertensão, colesterol alto, rinite, doença de Parkinson, osteoporose e glaucoma.
O programa também disponibiliza anticoncepcionais e fraldas geriátricas.
O objetivo dessa política, segundo o próprio Ministério da Saúde, é complementar o serviço de assistência farmacêutica que já existe no próprio SUS.
“O Programa Farmácia Popular foi esvaziado nesses últimos anos”, acusa Costa.
“A recomposição do orçamento de saúde para 2023, na casa dos R$ 23 bilhões, ajudará justamente a comprar medicamentos, além de vacinas e insumos, entre outras ações”, destaca Chioro.
9. Restabelecer o desenvolvimento do complexo econômico e industrial da saúde
“O complexo industrial e econômico da saúde é aquele que produz os insumos e os medicamentos que precisamos”, explica Costa.
O senador entende que, nos últimos anos, o Brasil adotou políticas que deixaram o país sem autonomia e autossuficiência para obter os materiais usados em consultórios, clínicas e hospitais públicos.
“Um exemplo disso foram os ventiladores necessários para manter a respiração dos pacientes internados com casos graves de covid. Há alguns anos, nós mesmos produzimos esses equipamentos. Agora, temos que importá-los”, lembra.
Segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é primordial que o próximo governo entenda que o controle desses insumos é estratégico para a gestão da saúde pública.
“Precisamos voltar a fabricar essas coisas, estimular a iniciativa privada, capacitar os laboratórios públicos, desenvolver pesquisas científicas inovadoras…”, lista Costa.
“O setor de saúde representa 9% do PIB [Produto Interno Bruto] e 15% da mão de obra qualificada do país. Com pequenos estímulos, o governo pode ajudar a desenvolver essa área rapidamente”, acredita.
10. Criar ou melhorar o acesso à informação e à saúde digital
O último ponto da lista tem a ver com os dados dos cidadãos.
Membros do governo de transição relataram que o acesso à informação do Ministério da Saúde foi um dos principais entraves aos trabalhos conduzidos no final de 2022.
Chioro revela que o grupo fez 38 audiências com diversos representantes do setor de saúde, como a indústria farmacêutica, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), diversas associações de trabalhadores…
“Dessas, em 37 reuniões as pessoas apontaram a falta de informações como um problema”, calcula.
O chamado “apagão” também é mencionado em relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) compartilhados com a equipe de transição, que mencionam até um possível “cenário insustentável” para o Sistema Único de Saúde (SUS).
“Será necessário organizar essa área de informação em saúde, que foi muito afetada no último governo”, complementa Chioro.
O Ministério da Saúde do governo Bolsonaro nega essas acusações de apagão, e diz que todos os dados estão disponíveis.
Ter sistemas bem organizados é fundamental para definir as políticas públicas e entender o impacto que as decisões têm na qualidade de vida e no bem-estar das pessoas.
“Parte do orçamento deverá ser investida nessa tecnologia da informação e também para organizar a telemedicina no país”, antevê Vecina Neto.
Souto avalia que essa é “uma área que pode ser turbinada nos próximos anos”.
“Necessitamos de bases de dados sincronizadas, que permitam saber o histórico daquele paciente desde que ele entrou no SUS”, conclui a médica sanitarista.
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