- Gabriel Bonis
- De Berlim para a BBC News Brasil
Este texto foi originalmente publicado em dezembro de 2018 e republicado após atualização.
Em 24 de dezembro de 1818, o padre austríaco Joseph Mohr pediu ao amigo organista Franz Xaver Gruber que compusesse a melodia para um poema escrito por ele dois anos antes. Nascia assim Stille Nacht, heilige Nacht, uma das mais famosas canções natalinas, traduzida para mais de 300 idiomas e conhecida em português como Noite Feliz.
Naquela noite, Mohr e Gruber executaram a música pela primeira vez durante o serviço da igreja de São Nicolau em Oberndorf bei Salzburg, na Áustria. Hoje, a canção é quase onipresente no Natal, figurando desde 2011 na lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
O poema foi criado em um período difícil para Salzburgo. O então principado eclesiástico independente sofreu diversas ocupações durante as Guerras Napoleônicas. Os conflitos trouxeram caos e fome – em especial no Ano Sem Verão de 1816, quando temperaturas extremamente baixas destruíram plantações na Europa e América do Norte.
Naquele mesmo ano, Salzburgo perdeu sua independência e foi incorporada à Áustria. “As palavras deste cântico foram escritas nestas circunstâncias. Elas expressam uma ânsia por redenção e paz”, explica à BBC News Brasil Peter Husty, curador da exposição Silent Night 200 – The Story. The Message. The Present (“Noite Feliz 200 – A História. A Mensagem. O Presente”, em tradução livre), no Museu de Salzburgo.
O contexto local não impediu que a canção se tornasse um sucesso em todo mundo. Primeiro a música se espalhou em um manuscrito na região dos autores. Depois, o construtor de órgão Carl Mauracher a levou para Zillertal, um vale em Tirol, onde era cantada por corais. Dali, se alastrou pela Alemanha, Europa e Estados Unidos.
“O Cristianismo levou essa música para o mundo com missionários (protestantes e católicos). Ela virou acessível em muitas línguas e dialetos, tonando-se global”, afirma Thomas Hochradner, chefe do Departamento de Musicologia da Universidade Mozarteum, na Áustria, e idealizador da exposição Silent Night 200.
A exibição traz informações detalhadas sobre a canção – como o fato de que ela é cantada por 2 bilhões de pessoas no mundo -, além de objetos que ilustram o estilo de vida no tempo da composição, autógrafos de Mohr e Gruber, e o piano usado para tocar a música.
Uma infinidade de traduções e adaptações
A propagação de Stille Nacht em diversos idiomas resultou em traduções nada fiéis ao texto original. Muitas delas são, na verdade, adaptações. A versão em português, por exemplo, foi intitulada Noite Feliz, embora o título real seja algo como “Noite Silenciosa”.
A primeira estrofe também abriga a frase “pobrezinho nasceu em Belém”, inexistente no poema austríaco. “As chamadas traduções são novas poesias que tentam manter a mensagem do texto, mas precisam levar em conta o ritmo e as rimas (da língua)”, diz Hochradner.
Segundo Husty, geralmente as traduções buscam manter o sentido central da canção: o Natal como festa da redenção e sinal de paz. Mas nem sempre é o caso, como prova a Weihnachtsringsendung, a versão nazista do cântico.
O regime de Hitler tinha um problema óbvio com Natal: Jesus era judeu. E o antissemitismo estava no centro da existência da ditadura nazista. Por isso, sua equipe tentou remover todo o contexto religioso da celebração. Isso incluía reescrever canções natalinas sem referências a Deus, Cristo ou fé.
Na Alemanha nazista, o primeiro verso de Stille Nacht transformou-se em um louvor a Hitler. A letra dizia: “Tudo é calmo, tudo é esplendido / Apenas o Chanceler fica em guarda / O futuro da Alemanha para vigiar e proteger / Guiando nossa nação certamente.”
A música também não escapou do uso comercial em inúmeros filmes (a Forbes afirma que ela apareceu em 295 até 2015) e interpretações por cantores famosos, incluindo Sinead O’Connor, Elvis Presley, Etta James e Kelly Clarkson.
Os compositores
Mohr nasceu em 1792 em Salzburgo, onde estudou e foi ordenado padre. Em 1815, o religioso tornou-se curador na pequena municipalidade de Mariapfarr. No ano seguinte, escreveu o poema que o tornou conhecido.
Em 1817, Mohr foi transferido para Oberndorf bei Salzburg. Na cidade, o padre conheceu Gruber, nascido em Hochburg em 1787 e que tocava órgão na igreja local. Eles cultivaram uma amizade por toda a vida.
Os dois são tão famosos na Áustria que os locais onde nasceram, trabalharam e morreram possuem memoriais e museus em sua homenagem.
Para celebrar os 200 anos do hit natalino, Hochburg, Mariapfarr, Arnsdorf, Hallein, Oberndorf, Hintersee, Wagrain, Fügen e Salzburgo fizeram uma parceria para uma exposição nacional. “Os austríacos gostam e cantam a canção, principalmente em sua versão original, que difere um pouco daquela mais comum no mundo. É mais uma tradição do que orgulho”, afirma Hochradner.
Para Husty, Stille Nacht transcende a religião. “Ela conta a história do nascimento de Jesus. Então é um cântico religioso ao mesmo tempo em que é para a paz no mundo.”
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