- Laís Alegretti
- Da BBC News Brasil em Londres
Por onde passam os pedestres em uma cidade planejada para carros?
Uma série de imagens registradas em Brasília nos últimos dez anos pelo fotógrafo Diego Bresani retrata os trajetos inventados por quem anda a pé na cidade pensada para o trânsito de automóveis.
São caminhos formados geralmente na rota mais curta ou mais conveniente para o pedestre – rotas que o fotógrafo aprendeu com colegas da área de urbanismo a chamar de “linhas de desejo”.
No Plano Piloto (área central de Brasília), essas passagens improvisadas cruzam gramados, encostas e até margeiam vias que nem sequer oferecem calçadas.
“Essa é uma cidade em que, definitivamente, a pessoa que anda foi esquecida. Ela é monumental, é uma cidade bonita vista do carro, com certeza. Mas para quem anda nela, é uma cidade muito dura – você não tem calçadas, precisa criar seu caminho, precisa muitas vezes lutar por espaço com carros”, diz Bresani.
Símbolo da arquitetura modernista, a capital – Patrimônio Cultural da Humanidade, segundo a Unesco – é conhecida por características como vias expressas e poucos semáforos.
Nessas condições, o fotógrafo fala em “valentia” dos trabalhadores que cruzam os espaços da capital.
“Alguns lugares até têm uma proposta de calçada, mas essa proposta provavelmente é muito mais bonita de ser vista de cima. É visualmente bonita, mas não é prática”, diz. “As pessoas passam no meio, pela grama, porque, óbvio, assim você chega mais rápido à parada de ônibus. Então tem uma espécie de subversão, de transgressão dessa lógica (do planejamento inicial).”
A ideia do projeto fotográfico começou em 2013, depois que Bresani – que nasceu e cresceu no Plano Piloto – vendeu o carro e “virou pedestre”.
“Comecei a ver que existiam essas rotas criadas por pessoas na cidade de Brasília, que quem anda de carro não vê ou não presta muita atenção. Mas quem precisa se locomover sem carro precisa usar essas rotas ou criar novas.”
Brasiliense de 39 anos, ele diz que, por trás de seus trabalhos, está a inquietação de responder como existir em uma cidade inventada.
Ele, que também é diretor de teatro, interpreta esses caminhos como uma “segunda invenção” na cidade inventada.
As fotos, em preto e branco, são feitas em uma câmera analógica de grande formato, com chapas de filmes fotográficos que são reveladas em São Paulo.
Durante o processo, Bresani percebeu diferenças no resultado em diferentes épocas do ano. “Uma linha de desejo, no filme preto e branco, sai de diferentes formas. Na chuva, a terra fica molhada e sai mais escura, preta. Na seca, reflete mais luz, então sai branca.”
O fotógrafo também percebeu que esses caminhos são mais vivos do que parecem.
“Durante a pandemia, eu falei: agora será ótimo para fotografar porque não vai ter ninguém na rua – e eu não queria pegar muita gente na rua. Mas cheguei e: cadê os caminhos? Eles foram sumindo. Como não tinha pessoas andando, a grama ia crescendo e eles iam desaparecendo. Quando as pessoas foram voltando para o trabalho, eles foram sendo reconstruídos.”
E se algumas são rotas consolidadas, outras têm vida curta.
“É muito comum um caminho ser reconstruído, outros desaparecerem, porque, por exemplo, abriu uma parada de ônibus em outro lugar. É bem orgânico”, diz. “Tem uns que são bem consolidados, mas outros duram, sei lá, seis meses, que é o tempo que durou uma construção. Aí, depois que acabou a construção, ele some.”
Outra característica que ficou clara nesses anos em que o fotógrafo saiu nas primeiras horas da manhã para fotografar os caminhos – em um momento ainda sem muitos pedestres – foi o perfil do público que diariamente desenha esses caminhos.
“São as pessoas que trabalham em Brasília, não são as que moram no Plano Piloto. Então, essa subversão da lógica modernista é feita por pessoas que moram na periferia de Brasília, trabalhadores e trabalhadoras. Não por moradores do Plano Piloto, que, na sua grande maioria, usam carros.”
O próximo passo do projeto é exatamente fotografar as pessoas que passam por esses caminhos. E Bresani já identificou uma clara predominância de gêneros, dependendo do horário.
“Às 6h30 da manhã você encontra basicamente homens, que estão indo para construção civil. Se vai 7h30, 8h, você encontra mulheres que são cozinheiras, babás, empregadas domésticas.”
‘Caminhos da necessidade’
A arquiteta e urbanista Thaisa Comelli, formada pela Universidade de Brasília (UnB) e doutora em urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que “claramente existe uma divisão socioeconômica com recortes raciais e de gênero” nesse tema.
“Os ‘caminhos do desejo’, orgânicos, na realidade são ‘caminhos da necessidade’ para muitos – populações da periferia sem acesso a veículos automotivos – e, se ermos e pouco dotados de infraestrutura, podem ser perigosos para mulheres e outros grupos vulneráveis”, diz. “Infelizmente há pouca discussão ainda sobre como as pessoas experimentam a cidade de formas diferentes. Esses temas às vezes entram como pautas supérfluas, estéticas ou cotidianas, quando na verdade são janelas para questões mais sérias.”
Comelli também destaca a falta de acessibilidade. “Temos muitos avanços na legislação arquitetônica, mas na escala da cidade isso é menos pensado e reforçado. Brasília é um caso especialmente difícil. Imagine o trajeto de uma pessoa cadeirante que quer se deslocar da W3 para a L2? É uma jornada de obstáculos…”, diz, em referência a duas das principais vias de Brasília.
Na prática, o que faz de Brasília uma cidade “por vezes pouco sensível aos pedestres”, nas palavras da urbanista?
Comelli cita três características, que refletem paradigmas do urbanismo modernista:
- A escala da cidade, “que cria grandes distâncias entre pontos de interesse”
- O rodoviarismo, “infraestrutura focada nas necessidades de veículos motorizados, não de pessoas”
- A rigidez no desenho urbano, “que faz com que alguns desses problemas não sejam facilmente solucionados por meio de intervenções urbanísticas”
Antes de falar em soluções, Comelli destaca que “dentro de Brasília existem muitas Brasílias” e “cada ‘pedaço’ da cidade vai requer uma solução diferente”.
“A questão do tombamento gera restrições na escala da cidade, justamente porque o caráter rodoviário é protegido. Intervenções simples e baratas, como colocar um semáforo no Eixão, melhorariam muito a vida dos pedestres, mas são impopulares e consideradas ‘agressoras’ do desenho de Brasília”, diz.
Comelli considera, ainda, que “falta vontade política para enfrentar o problema” e menciona que já houve concursos de projeto para melhorar as passagens subterrâneas, por exemplo, mas diz que não houve avanço na implementação.
“Considerando esses impasses, o que resta para o brasiliense é apostar nas intervenções na escala de bairro – ou da quadra -, que podem melhorar um pouco a vida, mas que não solucionam questões estruturais da cidade”, diz. “Sombrear melhor as passagens já existentes – orgânicas – ou investir em pequenas intervenções comerciais ou de iluminação e mobiliário que deixem os caminhos mais vivos, alegres e seguros também ajuda. Mas o problema da mobilidade a longo prazo não se resolverá com esses pequenos gestos.”
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, Frederico Flósculo diz que, na questão da mobilidade associada com acessibilidade, “Brasília é uma das piores cidades do Brasil”. “As pessoas são muito mal tratadas”, diz.
“Se somos patrimônio cultural da humanidade modernista, é nesta cidade que os melhores experimentos de promoção de qualidade de vida deveriam ser feitos. E, paradoxalmente, é nesta cidade que os melhores experimentos de qualidade de vida não são feitos”, afirma o professor.
Para Flósculo, o equilíbrio entre automóveis e pedestres esteve presente no projeto do urbanista Lúcio Costa para o Plano Piloto, especialmente no sistema de circulação nas superquadras, que foram concebidas “de modo sinuoso, para dificultar a velocidade do automóvel e facilitar a circulação do pedestre por toda a periferia das quadras”.
O professor atribui algumas das dificuldades sentidas até hoje ao momento de execução do projeto. “Do sonho de Lúcio Costa à realidade da construção de Brasília, houve uma série enorme de ajustamentos feitos por Israel Pinheiro – engenheiro, responsável pela execução da cidade, presidente da Novacap (empresa do Governo do Distrito Federal)”.
“Israel Pinheiro economizou muito no capítulo pedestres”, diz ele, acrescentando que os caminhos alternativos criados por pedestres são vistos há décadas.
O grande problema, diz Flósculo, é que problemas antigos não tenham sido resolvidos mais de seis décadas depois. Historicamente, diz ele, “o governo é consistentemente insensível às necessidades da comunidade”.
“A gente compreende que Lúcio Costa tinha uma tarefa muito pragmática, de execução muito rápida. Mas isso aconteceu naqueles mil dias de execução de Brasília. Só que Brasília está para completar 63 anos de idade – e essa delicadeza já dava tempo de ter sido encarada e o governo não faz isso. Continuamos num modelo de abordagem grosseira, que se revela nos caminhos dos pedestres naquela cidade que deveria ser desenhada para os idosos, crianças, cadeirantes, pessoas com limitações.”
“O movimento modernista não considerava as fragilidades do cotidiano e a gente ainda não aprendeu isso”, diz.
O que diz o Governo do Distrito Federal
A BBC News Brasil procurou o Governo do Distrito Federal (GDF) para responder às críticas sobre falta de acessibilidade em Brasília e de uma política voltada para as necessidades dos pedestres.
A assessoria de imprensa da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação respondeu que, “em aproximadamente quatro anos, foram feitos cerca de 530 km de passeios, atendendo a pedestres das 33 regiões administrativas”.
Disse, ainda, que o projeto Rotas Acessíveis “tem mapeadas várias intervenções para melhorias pela capital” e que atualmente dois locais estão sendo atendidos – o Instituto Federal de Brasília (IFB) em São Sebastião e o entorno do Hospital Regional do Guará.
O projeto, segundo a assessoria, seleciona um ponto e, a partir dele, “desenvolve o projeto da rota tomando como base os pontos de ônibus mais próximos, estabelecendo trajetos contínuos, sinalizados e livres de obstáculos”.
A Secretaria de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal disse que está em andamento o Plano de Mobilidade Ativa (PMA), que “tem como foco melhorar as infraestruturas de mobilidade para a população, incentivar a migração dos usuários dos modos motorizados para os modos ativos de deslocamento e requalificar o espaço público para torná-los mais acessíveis e com deslocamentos mais seguro para os pedestres, ciclistas, idosos, cadeirantes e pessoas com deficiência”.
Segundo o órgão, foram executados projetos na W3, no Setor Hospitalar Sul, Setor de Rádio e TV Sul, na Praça do Povo, entre outros.
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