- Megha Mohan
- Repórter de identidade e gênero, BBC News
Uma atriz cisgênero e ex-Miss Universo, Sushmita Sen, fará o papel principal em um filme de Bollywood sobre uma ativista transgênero. A decisão dividiu as opiniões entre a comunidade trans da Índia. Parte da comunidade argumenta que o papel deveria ter sido concedido a uma das muitas atrizes trans que aguardam a oportunidade de crescer na carreira. como Navya Singh.
Navya Singh saiu-se bem no teste e foi aprovada para o papel de melhor amiga da personagem principal.
A atriz interpretou o texto com confiança, sem sinais de arrogância. Ela foi amistosa com um leve toque de sensualidade, sem roubar a cena. E, o mais importante, ela havia decorado todas as falas.
Mas, assim que ela terminou, a sala ficou em silêncio por mais tempo que o normal.
Até que um dos diretores finalmente perguntou a Singh: “mas o que é você, mulher ou homem?”
“Senti meu coração afundar até os pés”, ela conta. “Era o tipo de comentário vulgar a que eu tinha me acostumado no meu trabalho como atriz em Bollywood. Mas nunca foi fácil.”
Com 18 anos de idade, Singh mudou-se da região rural de Bihar, no leste do país, para Mumbai, o centro de Bollywood, a indústria cinematográfica da Índia, onde ela surgiu como mulher trans.
Ao chegar a Mumbai, ela começou a conhecer dançarinos, modelos, designers e atores LGBTQIA . Alguns eram nomes conhecidos no país, por sua participação nos filmes e campanhas publicitárias mais famosas. Mas outros enfrentavam dificuldades, especialmente os membros trans da comunidade.
Diversas pessoas que ela conhecia haviam se tornado profissionais do sexo para sobreviver entre os trabalhos no cinema, na dança e como modelos.
“Existe pouco trabalho para as pessoas trans em Bollywood”, afirma ela. “Você faz um teste para filmes ou desfiles de moda, mas raramente tem retorno. Os próprios produtores gays ou designers gays de moda não abrem as portas para nós.”
Mas algum trabalho acabou surgindo. Singh chegou às passarelas em desfiles de moda e trabalhou como modelo para a revista italiana Grazia. Ela foi finalista do concurso Miss Trans Queen Índia, o maior concurso de beleza para pessoas transgênero no país, e embaixadora da marca do concurso.
Até que, sete anos depois de mudar-se para Mumbai, ela conseguiu um papel regular como mulher trans em uma série policial, Savdhaan India. Singh rapidamente atraiu mais de 100 mil seguidores no Instagram.
Depois que o primeiro episódio foi ao ar, seus pais telefonaram para ela. Eles não haviam falado com Singh desde que ela saiu de Bihar.
“Eles disseram, ‘mil desculpas, nós simplesmente não entendíamos o que queria dizer ser transgênero, mas, ao ver você na TV, entendemos. Você é nossa filha'”, conta ela.
Singh ficou feliz por tê-los de volta à sua vida. Tudo estava melhorando.
No início de 2022, a comunidade LGBTQIA em Mumbai vibrava com a notícia de uma nova série de TV, chamada Taali. A série se concentraria na vida de Gauri Sawant, ativista transgênero de Mumbai que adotou a filha de uma trabalhadora do sexo que havia morrido com Aids.
Em 2014, Sawant tornou-se a primeira pessoa transgênero a pedir à Corte Suprema da Índia o direito de adotar uma criança. Ela foi amplamente elogiada por mostrar um tipo diferente de família.
“Ficamos animados quando soubemos de Taali, porque isso significava que haveria um papel principal de uma heroína que era uma pessoa transgênero”, afirma Singh. “Foi uma grande vitória para a comunidade. E era um papel que todos nós compreendíamos – era sobre alguém da nossa comunidade.”
Mas, em outubro, foi anunciado que a atriz cisgênero (que não é trans) Sushmita Sen, um dos ídolos de Singh em Bollywood, faria o papel de Gauri Sawant.
“Fiquei muito triste ao ouvir que o papel de Gauri havia sido atribuído a uma atriz cisgênero”, afirma ela. “E não fui a única.”
De fato, diversas pessoas foram às redes sociais para criticar a decisão.
“Por que uma mulher cis heterossexual está representando uma personagem trans?”, diz um tuíte. “Em que ano estamos? 1995? Deem papéis trans para atores trans!”
Outro usuário do Twitter comentou: “posso literalmente oferecer uma longa lista de atores transgêneros que fizeram trabalhos exemplares. Mas, enfim, o que podemos esperar de Bollywood?”
“A questão é que não existem papéis diversos e complexos suficientes para as pessoas transgêneros”, declarou à BBC a atriz transgênero Kalki Subramaniam.
“Os papéis que nos são oferecidos são estereotipados: a trabalhadora sexual, a personagem secundária que abençoa um casamento, a pessoa que fala alto e xinga”, afirma ela. “Isso está mudando em alguns setores do cinema indiano, como a indústria cinematográfica do sul da Índia. Mas não em Bollywood.”
‘Grande honra para minha comunidade’
Uma das atrizes transgêneros mais conhecidas da Índia é Anjali Ameer, que estrelou o filme em idioma tâmil Peranbu, aclamado pela crítica. Ela interpretou a pessoa (trans) de interesse amoroso do personagem masculino principal, Mammooty. Ameer é a primeira mulher transgênero a representar um papel principal no cinema indiano.
Os críticos elogiaram o papel por romper com os estereótipos do cinema LGBTQIA . A personagem de Ameer essencialmente “salva” o personagem masculino principal e sua filha com deficiência de uma vida isolada e os três formam uma família amorosa.
Mas Anjali Ameer apoia totalmente a escalação de Sushmita Sen para o papel de Gauri Sawant.
“Essa escalação de alguém famoso como Sushmita Sen é algo bom para a comunidade transgênero”, afirma Ameer à BBC. “Ela significa que nossas histórias estão se tornando comuns. Quando as nossas histórias entrarem em mais casas e as pessoas puderem nos ver como seres humanos, mais papéis surgirão para nós.”
Ela afirma que está agora recebendo ofertas de papéis de mulheres não trans em filmes produzidos no sul da Índia.
“Não há dúvidas de que mais papéis são criados para pessoas trans que são vítimas ou trabalhadoras do sexo. Estou tentando me afastar disso. Quero apenas representar bons personagens”, ela conta. “E acho que Sushmita Sen também. É isso o que os atores fazem.”
Esta visão é compartilhada pela própria Gauri Sawant, objeto da nova série de TV. Ela postou online que era uma “grande honra para minha comunidade” que a lenda de Bollywood, a atriz Sushmita Sen, fosse escolhida para representá-la.
Ao que Sen respondeu “vamos ao trabalho!”
Singh foi recentemente convidada a desempenhar um papel menor em Taali. Mas, depois de um dia esperando no set, ela foi dispensada porque não seria mais necessária. Ela conta que a decisão a deixou devastada.
“É muito comum nos sets de filmagem que os cronogramas de produção sejam alterados e as pessoas não sejam mais necessárias”, ela conta. “Mas, quando você é uma mulher trans em Bollywood, isso parece acontecer com mais frequência.”
“O seu tempo não é valorizado e seu rosto não é necessário. Você é uma personagem secundária que está ali para atender a uma audiência convencional”, relata ela.
Singh dança em clubes noturnos para ganhar dinheiro para o aluguel, enquanto faz testes como modelo e atriz. Ela sonha com personagens que sejam fortes e complexos, belos e desejados, mas sabe que esses papéis, pelo menos na indústria cinematográfica indiana de Bollywood, são raros para as atrizes trans.
Por isso, muitas esperanças foram depositadas na série Taali e no papel de Gauri Sawant.
“Gauri significa muito para nós e para a nossa comunidade”, ela conta. “Imagine que demonstração poderosa teria sido se uma atriz trans pudesse representá-la. Teria mudado a carreira dela. Ela teria se tornado mainstream.”
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