- Julia Braun
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Dois dias após o primeiro turno das eleições presidenciais, o presidente Jair Bolsonaro (PL) participou de um culto na Assembleia de Deus Ministério do Belém, na zona leste de São Paulo, ao lado da primeira-dama Michelle Bolsonaro e de outros parlamentares.
Durante a celebração, que reunia centenas de fiéis, o pastor José Wellington Bezerra da Costa, presidente da Convenção Fraternal das Assembleias de Deus do Estado de São Paulo (Confradesp), defendeu a campanha à reeleição do atual mandatário.
O líder religioso pediu que os presentes falassem com “o nosso povo, com as famílias, com as mulheres” e com “parentes no Nordeste” para angariar votos para Bolsonaro. “Espero em Deus que no dia 30 de outubro estaremos confirmando o nosso voto e reelegendo o presidente da República”, disse.
No mesmo culto, outros líderes religiosos criticaram o ex-presidente e adversário de Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O próprio mandatário e a primeira-dama tiveram espaço para falar com o público.
“Precisamos convencer aqueles que ainda não sabem em quem votar. A igreja não pode ser omissa neste momento”, disse Michelle.
Os pedidos de voto aconteceram apesar da proibição do uso de templos religiosos para propaganda eleitoral. Ganhos eleitorais dentro de igrejas, templos ou terreiros também podem ser considerados prática de abuso de poder econômico pelas campanhas.
A BBC News Brasil entrou em contato com a Assembleia de Deus e com a Confradesp para esclarecimentos sobre o culto de 4 de outubro, mas não obteve resposta.
A reportagem também não encontrou no sistema de consulta eletrônica do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decisões relacionadas ao episódio até a publicação deste texto.
Segundo especialistas em Direito Eleitoral consultados pela reportagem, violações às normas eleitorais por líderes e associações religiosas e candidatos podem levar à aplicação de multas e, em casos graves, a sentenças de prisão e até cancelamento do registro da candidatura.
O último caso, porém, nunca foi aplicado para campanhas à Presidência da República e requer infrações muito graves.
Entenda a seguir o que pode e o que não pode ser feito na campanha eleitoral por templos e líderes religiosos.
Bens de uso comum
Templos religiosos, tais como igrejas, terreiros, sinagogas e mesquitas, são considerados “bens de uso comum” pela lei brasileira. E segundo a Lei das Eleições, de 1997, “é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza” nesses locais.
“Falar bem de um determinado candidato não é propaganda eleitoral, mas comparar dois nomes e dizer, por exemplo, que um representa o bem e o outro o mal, pode ser considerado propaganda”, explica o advogado eleitoral Alberto Rollo.
A lei estabelece como propaganda eleitoral não apenas declarações, mas também exposição de placas, faixas, cavaletes, pinturas ou pichações. O mesmo vale para ataques a outros candidatos — a chamada campanha negativa.
O descumprimento da norma pode gerar multa de R$ 2 mil a R$ 8 mil. “A multa é aplicada para quem fez a propaganda ou para o candidato beneficiado”, diz Rollo.
“Por vezes, alguns acham que vale a pena praticar a ilegalidade já que o valor da multa não é tão alto, principalmente quando se trata de campanha para presidente ou governador.”
Segundo o ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade), Marcelo Ribeiro, o TSE costuma analisar caso a caso para determinar o que será ou não considerado propaganda.
“Pelo entendimento do TSE, um líder religioso não pode transformar o culto em um comício, mas poderia manifestar pessoalmente preferência por um dos candidatos”, disse à BBC News Brasil.
“É preciso analisar casos de exagero e de desvio de função, ou seja, de transformação de uma celebração religiosa em outra coisa.”
Templos religiosos também são considerados pessoas jurídicas e, pela lei, nenhum candidato pode ser financiado por empresas.
Por isso, transgressões são consideradas abuso de poder econômico e podem levar ao cancelamento do registro da candidatura ou à perda do cargo dos candidatos envolvidos e a multa para a instituição.
São exemplos de transgressões a distribuição de materiais impressos ou organização de eventos financiados por igrejas, propaganda nas redes sociais oficiais do templo religioso ou até o uso do espaço religioso, cadastrado em um CNPJ, para propaganda.
Pessoas físicas, porém, estão isentas da regra. Dessa forma, líderes religiosos podem individualmente fazer doações a campanhas.
A norma está prevista na Lei Complementar nº 64, de 1990. O Artigo 22 do texto estabelece que casos suspeitos devem ser investigados pela Justiça Eleitoral, com a apresentação de provas e testemunhas e direito a defesa.
A lei estabelece ainda que, para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade do fato alterar o resultado da eleição, mas a gravidade das circunstâncias.
Segundo Marcelo Ribeiro, isso significa que infrações pequenas ou de menor repercussão tendem a não levar à cassação.
“Se um candidato a governador, por exemplo, participou de um ato de campanha com mil pessoas presentes em que se identificou abuso, mas ele foi eleito com 1 milhão de votos a mais que o adversário, o bom senso leva a crer que não se deve cassar a candidatura.”
“Em casos de campanhas à Presidência, é ainda mais difícil que se chegue a uma cassação. Um caso assim requeriria um movimento nacional, todo irregular”, diz o ex-ministro do TSE.
O Artigo 22 da lei de 1990 também se aplica a casos de utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, incluindo os religiosos, que também não podem atuar em benefício de um candidato ou partido político.
Em 2020, o TSE julgou a possibilidade de ampliar o Artigo 22 e incluir também a proibição de “abuso de poder religioso” na lei. O tribunal, porém, rejeitou a tese.
Coação e ameaças
Há ainda um caso mais grave de infração, relacionado ao uso de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido.
A infração está prevista no Código Eleitoral, Artigo 301. A pena sugerida é de reclusão de até quatro anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa.
“Nesses casos estamos falando de um crime. Um líder religioso que ameaça expulsar um fiel da igreja ou ameaça aplicar um corretivo em quem votar em determinado candidato, por exemplo”, diz Alberto Rollo.
O Artigo 299 do Código fala ainda na proibição de “dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto”.
Nenhum dos dois artigos menciona nominalmente líderes ou templos religiosos, mas as normas se aplicam também nesse contexto, segundo os advogados.
Redes sociais
Os especialistas consultados pela BBC News Brasil explicam, porém, que líderes religiosos são livres para manifestar sua opinião política ou pedir votos para candidatos em suas redes sociais ou relações pessoais.
“O debate público sobre política é normal e a população deve ter liberdade para discutir esses temas”, diz Marcelo Ribeiro.
O advogado lembra, porém, que mesmo para as redes sociais há regras. O TSE estabelece que a propaganda eleitoral paga na internet deve ser feita somente por candidatos e partidos, e precisa ser identificada como tal onde for exibida.
O tribunal não considera propaganda eleitoral publicações com elogios ou críticas a candidatos feitas por eleitores em suas páginas pessoais.
Mas os apoiadores não devem recorrer ao impulsionamento pago para alcançar maior engajamento. Também é proibido contratar pessoas físicas ou jurídicas para fazer posts de cunho político-eleitoral.
“Os pastores são cidadãos e pessoas físicas, não jurídicas, portanto aquilo que dizem em suas redes sociais pessoais não está sujeito a essa lei. Mas essas declarações não podem acontecer nas redes sociais da própria igreja, por exemplo”, complementa Alberto Rollo.
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