- Carolina Robino
- HayFestivalQuerétaro@BBC Mundo
Pouco depois de completar 40 anos, a escritora mexicana Alma Delia Murillo partiu em busca de seu pai, que acreditava estar morto há décadas. E, de alguma forma, nos levou junto com ela com seu livro La cabeza de mi padre (“A cabeça de meu pai”, em tradução livre), em que narra sua jornada.
A escritora tinha 7 anos quando seu pai desapareceu — uma ausência bastante comum em países latino-americanos como o México, onde há cerca de 26 milhões de crianças sem pai — no Brasil, quase 500 crianças por dia são registradas sem o nome do pai na certidão de nascimento.
“Ele foi fumar um cigarro e não voltou, como dizemos aqui”, contou.
Sua infância foi marcada por este abandono e pela pobreza, pela fome e pelo esforço, mas também por livros e jogos, brigas e desabafos em uma família numerosa.
“Crescer com sete irmãos é a coisa mais engraçada do universo”, diz ela, abrindo um enorme sorriso.
Autora de quatro romances, Murillo trabalhou por duas décadas no mundo corporativo até que decidiu se dedicar à sua paixão: a literatura.
Na entrevista a seguir, ela explica por que histórias como a sua evidenciam as enormes diferenças no tratamento de mães e pais, mulheres e homens.
BBC News Mundo – Vamos começar pela foto do seu pai “decapitado” que está na capa do seu livro, esta foto da qual alguém arrancou a cabeça. Você sabia que esta era uma imagem tão universal?
Alma Delia Murillo – Eu senti isso. Senti que em todas as famílias, ou pelo menos em muitas, poderia haver algo assim.
Mas, agora que o livro já está circulando há alguns meses, me surpreendo com a quantidade de pessoas que se identificam com a foto — que não é a original, mas uma proposta, embora se pareça muito.
Muita gente veio até mim e falou: Ei, na minha casa também, a foto do meu avô não tem a cabeça dele, a foto do meu pai não tem a cabeça dele. Para mim, essa era uma imagem fundamental. Eu a vi muitas vezes quando criança.
É uma foto em que a cabeça foi arrancada em fúria. Não foi recortada de forma elegante. Não há Photoshop ou retoque: é a imagem de uma cabeça arrancada com violência, tem uma carga simbólica enorme.
Não é só a imagem de um pai que parte e é “decapitado”, mas de um tipo de família que pulsa no coração do México e de muitos países da América Latina, certo? Nossas famílias andam assim, meio decapitadas.
BBC News Mundo – Os números do livro falam por si só. Eles mostram que no México existem cerca de 26 milhões de crianças sem pai, segundo dados oficiais. Que efeitos isso tem na sociedade mexicana?
Murillo – Um efeito brutal. Escolhi uma estatística mais conservadora, mas há números que dizem que em até 40% dos lares mexicanos o pai foi embora.
No México, somos todos filhos de Pedro Páramo, o personagem do romance de Juan Rulfo. Fomos todos abandonados por ele e somos seu filho, Juan Preciado, procurando pelo pai. Ou Juana Preciado, claro. Porque também há muitas filhas procurando o pai. E isso, claro, tem muitas consequências.
O arquétipo nacional do pai ausente se torna decisivo em nível coletivo, pois cria histórias de sobrevivência muito duras, onde mães — como a minha — se encarregam de seguir sozinhas contra todos os obstáculos, cumprindo os dois papéis, sendo provedoras, mas também tendo que educar.
BBC News Mundo – Você chega a dizer que os homens de fato abortam seus filhos sem precisar de nenhuma lei…
Murillo – Nem de lei, nem de lenço verde (símbolo da luta pela descriminalização do aborto). E ninguém os julga ou os considera desumanos ou diabólicos.
É muito diferente do tratamento que uma mulher que abandona os filhos recebe. Ela é considerada diabólica e sem humanidade.
Imagine o que custou promover a lei da interrupção legal da gravidez. Enquanto eu escrevia este livro, o aborto foi descriminalizado no México. E eu pensava: os homens abortam massivamente os filhos que já nasceram, não é nem mesmo o embrião, e sim meninos e meninas que já nasceram.
É assim e não é proibido, nem vemos as igrejas ou associações políticas saindo para marchar contra homens que abortaram seus filhos.
BBC News Mundo – Por muitos anos você acredita que seu pai está morto, e quando você descobre por acaso que não está, você escreve que “é mais digno ter um pai morto do que um pai que não te ama e dói menos”. Você acha que as famílias monoparentais ainda são um estigma?
Murillo – Sim, claro. Isso é deixar de ser uma estatística para contar uma história, e contar a história dói.
Com estatísticas, você pode se camuflar no meio dos números e pronto, mas quando se fala em abandono numa refeição, numa reunião, quando aquele campo que pede “nome do pai” aparece no formulário de solicitação de emprego ou passaporte, essa ausência é embaraçosa.
É como o elefante na sala, porque nos sentimos inadequados. Ficamos do lado dos incompletos.
Compartilhar isso, tornar isso parte da nossa identidade pública ainda é difícil e, embora muitas pessoas não gostem, vou dizer: tem a ver com essa narrativa patriarcal em que as emoções não são colocadas no discurso público. Nós mulheres estamos muito mais dispostas a fazer isso.
BBC News Mundo – É curioso que enquanto você procura seu pai, de alguma forma você também encontra sua mãe. Seu relato sobre ela é muito completo.
Murillo – Fico emocionada que você diga isso, eu não tinha pensado dessa forma.
Minha mãe me deu um grande presente. Me deu a liberdade. Me deixou espaço para sair de casa, para não hesitar. É algo muito generoso, mas também difícil.
E eu, como tantos outros mexicanos, devo muito à minha mãe. Pude estudar na universidade porque ela limpava casas, porque trabalhava como empregada doméstica.
Ela foi muito generosa. Ela também me deu sua alegria, que ainda me parece inexplicável e única. Em meio a tudo que ela viveu, a morte de seu primeiro filho, as queimaduras sofridas por uma de minhas irmãs, as carências e humilhações, ela sempre foi uma mulher de alegria.
É por isso que, no final, eu tento devolver a ela o poder de escolha que ela não teve, porque ela passou 20 anos dando à luz e criando, e eu digo a ela: “Você é livre, vá embora. Não seja apenas mãe, seja mulher”.
BBC News Mundo – E, de fato, você a mostra como uma mulher: “Minha mãe se apaixonou como uma fera. Eu vi… Ela se apaixonou e pegou fogo dentro de si mesma”. Muito pouco se fala sobre mães apaixonadas, certo?
Murillo – É que no México e em muitos países, existe essa adoração da figura da mãe, da Virgem Maria que é intocável, perfeita, pura. Mas isso é uma forma de castração, certo?
A mãe também pode ser uma senhora apaixonada, desesperada. Acho que minha mãe estava com uma febre, uma explosão sexual.
Quando criança, eu ficava com raiva disso, mas agora digo: que bom que ela viveu isso e que bom ter sido testemunha.
BBC News Mundo – Além da violência mais explícita que você descreve e que você mesmo sofreu, há outra mais cotidiana. Não se pode duvidar que há avanços em temas relativos ao gênero, mas os discursos avançam mais rápido que a realidade?
Murillo – Olha, se você tem um trabalho como o meu, por exemplo, tão neurótico, no qual preciso ficar sozinha para escrever, quero silêncio e solidão, o julgamento sempre foi muito duro: egoísta, narcisista, vaidosa, enfim.
Mas eu preciso disso, ponto. Já tentei viver como um casal, e é algo fatal para mim.
E, sim, é verdade que há avanços, claro que há. No México, a interrupção da gravidez foi descriminalizada e começa a haver uma certa paridade nas câmaras, no governo, nos gabinetes, falamos sobre nossos assuntos, eles são tornados públicos.
Mas apesar de tudo isso estar acontecendo, os feminicídios continuam aumentando. Estamos falando de 3 mil por ano. E há cada vez mais.
O que é isso? O que é esse discurso? A curva teria que ser inversamente proporcional, mas não é. E isso porque as leis, as decisões, o judiciário, o poder penal, as indústrias, as empresas, ainda estão majoritariamente nas mãos desse modelo masculino.
BBC News Mundo – E como essa corrente é quebrada?
Murillo – Uau, é tão difícil.
Agora estou escrevendo roteiros para um podcast sobre feminicídio. Dez feminicídios. E tem sido brutal. É tão duro, tão palpável, tão material como a questão da impunidade perpassa todos os casos.
A conclusão é que os homens matam porque podem, porque sabem que nada vai acontecer com eles, porque os promotores não perseguem os casos. Porque até os autores confessos de feminicídios são liberados.
Estamos vivendo hoje uma coisa horrível: em alguns Estados do interior do México, há uma tendência de queimar mulheres. Vivas. Com fogo ou com ácido. Já foram 47 ocorrências este ano. Porque eles podem.
Claro, a gente pode entrar em assuntos mais leves e discutir a educação, as questões culturais… Mas eu gosto de questionar os homens: “Ei, vocês não teriam que estar se perguntando também por que os homens fazem essas coisas, por que as leis não funcionam?”
Sim, a impunidade tem que ser rompida em termos legais, jurídicos, mas os homens também têm de ser desconstruídos.
BBC News Mundo – A falta de empatia que você descreve no livro quando fala sobre racismo segue a mesma lógica do discurso que é mais avançado do que a realidade? Você fala dos castigos que sofria na escola, da humilhação por chegar com piolho…
Murillo – Veja… No México, especialmente nos últimos dois anos, há uma discussão encarnada porque muitas pessoas na opinião pública dizem que não há racismo neste país, apesar de organizações como a Comissão Nacional para Prevenir a Discriminação dizerem que tudo é marcado pela cor da pele.
É parecido com o que diz o coletivo chileno Las Tesis: Por que todas as mulheres conhecem alguém que foi abusado, e os homens não conhecem nenhum amigo que tenha feito isso? Porque eles não veem.
Se sobrepusermos isso à questão do racismo, e este como castigo à pobreza e à cor da pele, então você não vê se estiver do lado daqueles de pele mais branca. E isso me parece importante dizer. Eu nem dou nome, estou apenas contando minha experiência.
Tenho visto como a sociedade reage a uma mãe como a minha, que tem oito filhos, e como aplaude e põe na capa da revista Hola outras mulheres que têm seis ou sete filhos, mas têm sobrenome e herança.
Esses filhos estão bem, mas os da pobreza, não.
BBC News Mundo – Vamos voltar à cabeça do seu pai. O que acontece quando você o encontra? Você mesmo diz que ‘o verdadeiro milagre é mudar seu ponto de vista’. Isso mudou você?
Murillo – Sim, sim. Quer dizer, é a sensação de estar completa.
Digo no livro: se cortar cabeças é difícil, colocá-las no lugar é uma proeza devastadora.
Passei 40 anos andando, escrevendo, pensando que talvez tenha me tornado escritora porque tinha uma necessidade de tecer textos para contar esta história, dar um nome a ela. Fiz anos de terapia aprendendo que existe um eu narrativo que pode ser composto.
E a sensação que eu tenho é esta: acredito que meu pai está aqui, e está por inteiro. Sim, tenho pai, mas também, como sou muito louca, às vezes falo com ele.
Emoldurei o lenço vermelho que era dele e que levei comigo quando o conheci, pouco antes de sua morte. Um amigo transformou em uma peça.
Sinto ele muito aqui, presente.
*Este artigo faz parte da versão digital do Hay Festival Querétaro, um encontro de escritores e pensadores que aconteceu nesta cidade mexicana de 1 a 4 de setembro.
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