• André Bernardo
  • Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil

Crédito, DEA PICTURE LIBRARY/De Agostini via Getty Images

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Baixo relevo de Cleópatra feito entre os séculos 3 a.C. e 1 a.C.

Elizabeth Taylor (1932-2011) estava no banho, descansando em um intervalo das filmagens de De repente, no último verão (1959), quando recebeu um telefonema do produtor Walter Wanger (1894-1968). Quem atendeu a ligação foi o cantor Eddie Fisher (1928-2010), o quarto de seus sete maridos.

Quando soube que o motivo do telefonema era convidá-la para protagonizar Cleópatra, Taylor declinou o convite. Mais do que emendar um trabalho no outro, queria férias. O executivo da Fox, porém, não se deu por vencido. Outros nomes já tinham sido cotados para o papel: Brigitte Bardot, Kim Novak, Marilyn Monroe… Mas ele queria Liz Taylor!

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Estátua de basalto do século 1 a.C. de Cleópatra

Diante da insistência do produtor, a atriz pediu um cachê impensável para a época: US$ 1 milhão. Tinha certeza de que, de tão absurdo o valor, Wanger mudaria de ideia. Mas, para a surpresa da atriz, e desespero do presidente do estúdio, Spyros Skouras (1893-1971), o produtor aceitou a proposta.

A primeira exigência da atriz, tão logo assinou o contrato, foi trocar o diretor: no lugar de Rouben Mamoulian (1897-1987), escalou Joseph L. Mankiewicz (1909-1993). Foi assim que, aos 27 anos, Elizabeth Taylor tornou-se a primeira estrela de Hollywood a ganhar US$ 1 milhão por um único papel.

Mais de 40 atrizes já interpretaram a rainha no cinema

A Cleópatra de Elizabeth Taylor pode ter sido a mais famosa, mas não foi a primeira. Desde que a americana Theda Bara (1885-1955) deu vida a uma de suas mais antigas versões cinematográficas, em 1917, ainda no cinema mudo, pelo menos outras 40 atrizes, como a francesa Claudette Colbert (1903-1996), a britânica Vivien Leigh (1913-1967) e a italiana Sophia Loren, interpretaram a rainha de origem greco-macedônica.

No Brasil, quem emprestou seu talento e sedução à personagem foi a atriz Alessandra Negrini. Cleópatra (2007) foi rodado em apenas 19 dias (no longa, o diretor Júlio Bressane transformou a Praia de Copacabana no Rio Nilo) e conquistou seis Candangos no Festival de Brasília, incluindo os de melhor filme e atriz.

“Em moedas de bronze cunhadas em Alexandria, a rainha do Egito apresenta um nariz proeminente, queixo pontudo e pescoço comprido”, descreve Tais Pagoto Bélo, mestre em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“Imagina-se que Cleópatra tenha sido uma mulher muito bonita, mas poucas fontes antigas fazem menção à sua aparência. Beleza é um conceito cultural que pode variar no decorrer do tempo. O que era considerado belo para os egípcios do tempo de Cleópatra pode não ser para o brasileiro do século 21”.

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Atrizes como Judi Dench (vista aqui com Anthony Hopkins como Marco Antônio, em peça de teatro de 1987 em Londres) já viveram Cleópatra nos palcos

Em grego, Cleópatra quer dizer: ‘Glória de sua raça’

Controvérsias à parte, o que faz de Cleópatra a mulher com a história de vida mais vezes adaptada para o cinema, o teatro e a TV? Cleópatra Thea Philopator ou, simplesmente, Cleópatra 7ª (69-30 a.C.) nasceu em Alexandria, a então capital do Egito. Filha de Ptolomeu 12 e Cleópatra 5ª, teve cinco irmãos: dois homens, Ptolomeu 13 e Ptolomeu 14, com quem se casou, um de cada vez, e três mulheres, Trifena, Berenice e Arsínoe.

“O casamento entre irmãos era uma prática comum na época”, explica Priscila Scoville, doutoranda em História Antiga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

“Em geral, os Ptolomeus tinham a propensão de matar seus irmãos para angariar mais poder. Culpar Cleópatra pela morte deles é uma resposta fácil para os conflitos da época, mas não necessariamente justa”.

Ao todo, foram 7 Cleópatras e 15 Ptolomeus. Ptolomeu 1°, o fundador da dinastia, foi um dos principais generais de Alexandre, o Grande. Por essa razão, os Ptolomeus herdaram o Egito quando Alexandre morreu, em 323 a.C. Seu império, por ocasião de sua morte, abrangia da Grécia à Índia.

A título de curiosidade, foi Ptolomeu 2° quem mandou construir, por volta de 280 a.C., o Farol de Alexandria, de cerca de 140 metros de altura. Uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, sua luz podia ser vista a 50 quilômetros de distância. Ganhou esse nome porque foi erguido na Ilha de Faros.

Quando Ptolomeu 12 morreu, em 51 a.C., Cleópatra, então com 18 anos, seguiu a tradição e se casou com seus dois irmãos: primeiro, com Ptolomeu 13, de apenas 10 anos e, depois, em 47 a.C., com Ptolomeu 14, de 12. Ambos tiveram morte trágica: Ptolomeu 13 morreu afogado enquanto tentava fugir do Egito pelas águas caudalosas do Nilo; e Ptolomeu 14, envenenado, muito provavelmente pela própria irmã.

“Quando Cleópatra assumiu o trono, herdou um reino endividado. A luta pela soberania do Egito foi uma constante em sua vida. Tanto que, depois de sua morte, o país se tornou província romana”, explica Raisa Sagredo, doutoranda em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e youtuber do canal Contando a História.

“A imagem de Cleópatra como femme fatale é anterior às produções de Hollywood. Foi construída por historiadores do mundo greco-romano que escreveram sobre sua vida séculos depois de sua morte. O estereótipo da rainha sedutora acabou por ofuscar os atributos da estrategista que chegou a financiar as campanhas militares de Marco Antônio”.

Um destes historiadores foi o grego Plutarco (46-120 d.C.). Na biografia que escreveu sobre Marco Antônio por volta de 150 d.C., retratou o casal como “depravado”. Plutarco não foi o único. Cleópatra foi chamada de “rainha prostituta” por Propércio (47-14 a.C.), “monstro fatal” por Horácio (65-8 a.C.) e “vergonha do Egito” por Lucano (39-65 d.C.).

“Nenhum outro ícone feminino histórico sofreu tanto preconceito quanto Cleópatra”, afirma Bélo.

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Imagem computadorizada em 3D de Cleópatra, criada por um artista

Romance inspirou Virgílio, Shakespeare e Bernard Shaw

Mais do que ter desposado dois irmãos, Cleópatra entrou para a história, entre outras façanhas, por ter sido amante de dois dos mais poderosos homens da época: o ditador Júlio César (100-44 a.C.) e o general Marco Antônio (83-30 a.C.).

“No fim do século 1 a.C., Roma era a senhora incontestável do Mediterrâneo. E o Egito, a última grande monarquia independente”, explica Fábio Morales, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de História Antiga da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

“O que Cleópatra fez? Adotou uma estratégia bastante usada por reis e rainhas do período: o casamento. Sua união com César e, depois, com Antônio era uma forma de unir as linhagens egípcia e romana. Era uma chefe de Estado usando as estratégias disponíveis na época para garantir a segurança de seu país”.

Cleópatra e Júlio César se conheceram em 48 a.C. Ela tinha 19 anos e ele, 52. O primeiro encontro foi, para dizer o mínimo, inusitado.

Por ser menor de idade, Ptolomeu 13 governou com a ajuda de três conselheiros: Teódoto, Potino e Aquilas. Os tutores do garoto se uniram para expulsar a rainha do Egito. No exílio, Cleópatra arquitetou um plano para aliar-se a Júlio César, que estava de passagem por Alexandria, sem ser morta pelos súditos de seu marido-irmão.

Com a ajuda de um servo chamado Apolodoro, foi enrolada num tapete e levada, escondida, até os aposentos de Júlio César. Ao desenrolar o tapete, o imperador romano ficou sem palavras. Para tristeza de Calpúrnia, a mulher de Júlio César, ele e Cleópatra tiveram um filho: Ptolomeu 15 César, mais conhecido como Cesário.

Muitas lendas urbanas foram forjadas sobre Cleópatra. Uma insinua que ela teria uma legião de amantes. Outra que, por incontáveis vezes, teria participado de orgias.

“A ideia da mulher sedutora que conquistou muitos homens parece equivocada”, avalia Scoville.

“Os casamentos com os irmãos foram puramente políticos. Fora deles, se relacionou apenas com Júlio César e Marco Antônio e, ao que tudo indica, se manteve fiel aos dois.”

O romance com Júlio César, porém, durou pouco: em 15 de março de 44 a.C., ele foi assassinado ao pisar no Senado. Entre os conspiradores, seu filho, Brutus. Quando soube da morte do amante, Cleópatra tratou de voltar para o Egito.

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Quadro ‘Morte de Cleópatra’ (1874), de Jean Angre Rixen

Morta aos 39 anos: suicídio ou assassinato?

Com a morte de Júlio César, Marco Antônio tornou-se o homem mais poderoso de Roma. Ele conheceu Cleópatra em 41 a.C. na cidade de Tarso, na Turquia. A rainha egípcia estava a bordo de um barco, com popa de ouro e remos de prata, enfeitada como Afrodite, a deusa grega do amor e da beleza. Ao som de flautas, alaúdes e oboés, meninos vestidos como Cupido, o deus do amor na mitologia romana, abanavam a rainha com plumas de avestruz.

Não à toa, Marco Antônio caiu de amores. Tanto que, a pedido dela, ordenou a morte de Arsínoe, sua irmã mais nova. Logo, Cleópatra tornou-se a única filha viva de Ptolomeu 12 com legitimidade para ocupar o trono do Egito.

A exemplo de Calpúrnia, Fúlvia, a mulher de Marco Antônio, também fazia vistas grossas para as infidelidades do marido. Cleópatra e Marco Antônio tiveram três filhos: Alexandre, Selenéia e Filadelfo. Em 34 a.C., Marco Antônio dividiu as terras conquistadas pela legião romana entre as três crianças. E mais: concedeu a Cleópatra o título de Rainha dos Reis, e a Cesário, o de Rei dos Reis.

As chamadas “Doações de Alexandria” despertaram a ira de Otávio que declarou guerra a Marco Antônio. Os dois se enfrentaram na Batalha Naval de Ácio, em 31 a.C. Derrotado, Marco Antônio suicidou-se, cravando a ponta da espada contra o estômago.

As tropas de Otávio tomaram Alexandria. Cleópatra ainda tentou seduzir o invasor, mas o sujeito resistiu aos seus encantos. Feita prisioneira, tirou a própria vida, deixando-se picar por uma áspide, uma cobra venenosa do Egito. Morreu em 30 a.C., aos 39 anos. Até hoje, não se sabe ao certo onde a última rainha do Egito teria sido sepultada.

“A tumba de Cleópatra continua sendo um dos grandes enigmas da Antiguidade”, afirma Gisela Chapot, doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional (UFRJ).

“Uma das teorias mais aceitas defende que estaria no templo da Deusa Íris na Ilha de Faros. Toda a ilha, bem como o Farol de Alexandria, foram tragados pelo mar em um terremoto em 1375”.

Tão intrigante quanto o local de sua sepultura, prossegue a historiadora, só mesmo a causa de sua morte.

“Segundo os autores clássicos, Cleópatra teria optado pelo mesmo destino de Marco Antônio para manter sua dignidade até o fim e não ser vilipendiada pelas ruas de Roma”, justifica.

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Elizabeth Taylor viveu no cinema uma das versões mais famosas de Cleópatra

A egiptóloga americana Kathlyn Cooney acredita, porém, na tese de assassinato.

“Cooney diz que a teoria do suicídio pode ter ligação com a propaganda pejorativa feita por Otávio”, explica Chapot.

“O suicídio de uma mãe no Egito era considerado uma atitude execrável porque abandonava a prole à própria sorte. Essa versão contribuiu para acentuar o damnatio memorie (“condenação da memória”) de Cleópatra e manchar sua imagem no Egito”.

“Cleópatra é uma espécie de ‘Eva’ histórica”, define Morales.

“A mulher que corrompeu dois generais romanos e, por essa razão, deve ser odiada. Cleópatra é fascinante como a mulher que desafiou o império e, ao mesmo tempo, é edificante, do ponto de vista machista, sobre o que acontece com as mulheres que ousam fazer isso”.

Nova versão cinematográfica foi acusada de ‘embranquecimento’

Mais de dois mil anos depois de sua morte, a mulher que governou o Egito por 21 anos acaba de ganhar mais uma versão para o cinema. A próxima atriz a interpretá-la é a israelente Gal Gadot, famosa pelo papel de Mulher-Maravilha.

“Uma história que será contada pela primeira vez através dos olhos de mulheres”, tuitou no dia 11 de outubro de 2020.

O roteiro da grega Laeta Kalogridis será inspirado em Cleópatra: Uma Biografia (Zahar), best-seller escrito pela americana Stacy Schiff. Vencedora de um Pulitzer, a autora dedicou cinco anos de sua vida a esmiuçar a trajetória de Cleópatra. Descobriu que, mais do que sedutora e atraente, sua biografada era culta e inteligente. Tinha o dom da oratória e falava nove idiomas. Ainda dominava filosofia, matemática e astronomia.

O anúncio da cinebiografia, porém, gerou controvérsias, com acusações de ser mais um caso de whitewashing. O termo, que pode ser traduzido como “embranquecimento”, faz referência à escalação constante de atores brancos para interpretar personagens de outras etnias, como negros, latinos e asiáticos.

“Cleópatra jamais se colocou como uma mulher subserviente. Pelo contrário. Escreveu seu nome na história como uma das governantes de maior destaque político e militar”, afirma Chapot.

“Numa época em que nós, mulheres, ainda precisamos lutar cotidianamente por nossos direitos e espaços, falar sobre Cleópatra empodera e dá voz a um grupo social por muitas vezes invisibilizado na história, escrita majoritariamente por homens de uma elite dominante que não pouparam esforços para calar e apagar o protagonismo feminino ao longo do tempo.”

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