Ela foi considerada por mais de quatro décadas uma das teorias mais belas (e criticadas) da ecologia.
Na década de 1970, James Lovelock, um biólogo britânico, propôs uma hipótese que causou escândalo, admiração e suspeita em proporções iguais.
Ele disse que a Terra estava viva.
Lovelock, que trabalhava na época para a Nasa (agência espacial dos EUA) e era considerado um cientista respeitável, não se embasava em crenças animistas.
E embora tenha a chamado de hipótese de Gaia, referindo-se à deusa primordial da mitologia grega, ele embasava suas ideias em paradigmas científicos.
Com sua pesquisa, vislumbrou um sistema que refletia o equilíbrio (e a relação) entre os seres vivos e o resto do planeta.
A hipótese, que estudos posteriores transformaram em teoria, se tornou popular nas universidades do mundo todo e foi central para o entendimento sobre o impacto humano no clima.
E embora tenha sido questionada à exaustão, também consagrou seu principal teórico. Ele morreu em 26 de julho, no mesmo dia em que completou 103 anos.
Considerado um dos biólogos mais importantes do século 20 no Reino Unido, Lovelock realizou também uma contribuição especial por seu descobrimento de que era possível medir a concentração atmosférica de clorofluorcarbonos, os compostos que eram usados para esfriar geladeiras e o ar-condicionado.
Isso levou ao descobrimento do buraco na camada de ozônio e à proibição dos los clorofluorocarbonos em 1987.
Ele também criou um dispositivo ainda usado para medir a propagação de compostos tóxicos criados por humanos na natureza, o que cimentou suas teorias sobre a ação humana sobre o planeta.
No entanto, o que o deixou mais conhecido internacionalmente foi sua hipótese que começou a ver a vida na Terra como um sistema em que cada ser vivo tinha um papel: Gaia.
Da astronomia à ecologia
Lovelock baseou sua hipótese inicial em sua observação científica da atmosfera da Terra e de Marte.
Naquela época, nos anos 1960, ele trabalhava na equipe de exploração espacial da Nasa no Laboratório de Propulsão a Jato, em Pasadena, Califórnia.
Como especialista na composição química dos planetas, Lovelock se perguntou por que nossa atmosfera era tão estável.
Ele considerou que, diferentemente de Marte, algo deveria estar regulando o calor, o oxigênio, o nitrogênio e outros componentes essenciais.
“A vida na superfície é o que deve estar fazendo a regulação”, escreveu com a microbióloga americana Lynn Margulis, que foi coautora em seu estudo sobre Gaia.
Lovelock e Margulis avaliaram que os organismos e seu entorno inorgânico na Terra estavam estreitamente integrados para formar um sistema complexo, único e autorregulado.
Isso era, por sua vez, o que mantinha as condições para o desenvolvimento da vida.
“O clima e a composição química do meio ambiente da superfície da Terra estão e têm estado regulados num estado estável para a biota (o conjunto dos organismos vivos)”, dizia a pesquisa.
Lovelock trabalhou em sua hipótese inicial por anos e logo recuperou modelos e dados de outras ciências para tentar criar uma teoria.
Foi assim que desenvolveu o modelo chamado “Daisyworld” (sobre como crescem as margaridas num mundo imaginário), que serviu para ilustrar como pode funcionar Gaia.
Segundo a teoria, num planeta imaginário, similar em muitos aspectos à Terra, só crescem margaridas, com abundância de nutrientes e água.
Mas as margaridas brancas e negras competem por espaço.
Ainda que ambos os tipos de margaridas cresçam melhor à mesma temperatura, as margaridas negras absorvem mais calor que as brancas. Quando o sol brilha mais intensamente, aquecendo o planeta, as margaridas brancas se estendem, e o planeta esfria novamente.
Enquanot isso, quando diminui a luminosidade do sol, as margaridas se esticam, aquecendo o planeta.
Dessa maneira, as interações competitivas entre as margaridas proporcionam um mecanismo homeostático para o planeta em seu conjunto.
Em seu livro O futuro do clima mundial, Martin Rice e Ann Henderson-Sellers explicam que esse modelo ofereceu um “marco matemárico” inicial para compreender a autorregulação da vida na Terra e que tornou Gaia “a teoria ecológica mais ambiciosa baseada na auto-organização”.
A fama da teoria fez com que, menos de uma década após ter sido exposta, cientistas do mundo todo tenham se reunido na Universidade de Massachusetts na Primeira Conferência sobre a Hipótese Gaia, cujo tema era: “A Terra é um organismo vivo?”
A hipótese, no entanto, não recebeu uma chancela universal no universo científico.
Muitos pesquisadores a questionaram, fazendo com que Lovelock fosse desenvolvendo novos experimentos e modificações na teoria ao longo dos anos.
Os principais críticos afirmam que a noção de que há um equilíbrio entre os organismos vai contra os princípios da seleção natural. Dizem ainda que a teoria tem um componente teleológico (concebe um fim ou uma meta: a continuação da vida).
Muitos cientistas consideram ainda que ela tem pouco embasamento ou está em desacordo com as evidências disponíveis, a tal ponto que o pesquisador Tyler Volk a classificou de “pensamento otimista”.
Mas além dos argumentos favoráveis ou contrários à teoria, uma de suas inovações foi o lugar que ela deu aos humanos dentro desse sistema e como nos apresenta como uma das principais ameaças para o equilíbrio natural da Terra.
“Estamos jogando um jogo muito perigoso. Estamos interferindo diretamente nos principais mecanismos de regulação de Gaia”, disse Lovelock à BBC em 2020.
“Minha razão principal para não me aposentar é que, como a maioria de vocês, estou profundamente preocupado com a probabilidade de uma mudança climática enormemente danosa e a necessidade de fazer algo a respeito agora”, acrescentou.
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