• Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Crédito, Charles William Carter/Domínio Público

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O líder mórmon Brigham Young, em foto de 1870

Quase 2 mil quilômetros separam Nauvoo, no Estado americano de Illinois, de Salt Lake City, no Estado americano de Utah. Em dias atuais, segundo o Google Maps, um trajeto que pode ser vencido em pouco mais de 16 dias de caminhada ininterrupta. Há 175 anos, quando os mórmons empreenderam um dos mais curiosos capítulos da corrida para o oeste americano, evidentemente que a jornada era mais complicada.

Em 24 de julho de 1847, contudo, o religioso e historiador Brigham Young (1801-1877) chegou, com um grupo de adeptos da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, na região do Vale do Lago Salgado. Ali fundaria Salt Lake City. Era uma terra árida, com feições nada atraentes nem convidativas. Os integrantes da caravana, contudo, estavam exaustos. A viagem, com paradas em assentamentos, principalmente onde hoje é a cidade de Omaha, Nebraska, já levava mais de um ano.

A epopeia é recordada anualmente pelos membros da igreja até hoje. E seus participantes acabaram entrando para a história como “os pioneiros”. Young, então o segundo presidente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, acabaria se tornando o primeiro governador do Estado de Utah. A aglomeração, na região das Montanhas Rochosas, nasceu como um refúgio para os religiosos, então perseguidos. Ali poderiam praticar sua fé.

Young acabaria reconhecido como uma espécie de Moisés americano, pois o êxodo que ele promoveu em muito se assemelha à fuga dos hebreus do Egito, episódio ocorrido por volta do ano de 1.200 a.C.

Segundo Nei Garcia, diretor de Assuntos Públicos da Igreja no Brasil, uma “canção emblemática” que os peregrinos cantavam com frequência durante a rota, “ao longo da dura jornada” se tornou “um hino”, atualmente “cantado por membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias em todo o mundo”.

A música diz “vinde, ó santos, sem medo ou temor/ Mas alegres andai, rude é o caminho ao triste viajor/ Mas com fé caminhai/ É bem melhor encorajar e o sofrimento amenizar/ Podeis agora em paz cantar/ Tudo bem! Tudo bem!”.

No entendimento contemporâneo, todos os mórmons de hoje em dia são considerados “os modernos pioneiros”.

Em entrevista concedida por escrito à BBC News Brasil, Garcia ressaltou a dificuldade daqueles viajantes que buscavam novas terras. “A peregrinação foi repleta de desafios diários, muitos deles ficaram doentes e morreram durante os meses de inverno. Todavia, com fé a cada passo, chegaram em Utah”, afirma. “Aquele 24 de julho de 1847 tornou-se um dia histórico.”

Eles “viajaram através das planícies dos Estados Unidos e das montanhas rochosas de Utah por meses e meses”, frisa Garcia, comentando que, para os religiosos, “deixaram um legado de fé e um exemplo de dedicação”.

Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes contextualiza o caráter sui generis da religião. “O caso do mormonismo é uma história americana. Essencialmente americana”, define ele.

Com cerca de 1,4 milhão de praticantes em 2176 congregações, o Brasil é hoje o terceiro país com maior número de mórmons em todo o planeta, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e do México.

Garcia ressalta que “os pioneiros que deixaram suas casas em Nauvoo” o fizeram “em busca de um local de refúgio das perseguições religiosas”. Se os Estados Unidos viviam um momento de formação, de expansão para o oeste, a configuração social efervescente acabou reagindo com violência ao surgimento e ao crescimento da nova religião, que crescia em número de praticantes, em participação nas instituições políticas e em riquezas materiais.

“Estavam ocorrendo grandes transformações nos Estados Unidos, um país pensando em expansão territorial. Neste momento, situamos o surgimento dos mórmons em um contexto de aparecimento de vários grupos religiosos, vistos inicialmente como seitas pelas religiões protestantes estabelecidas no leste, nas antigas 13 colônias”, diz Moraes.

A Igreja de Jesus Cristos dos Santos dos Últimos Dias foi fundada pelo religioso Joseph Smith Jr (1805-1844), filho de fazendeiros que passou a ter uma série de visões a partir dos 14 anos de idade. Formalmente, ele criou a religião em 1830 — eram um grupo de seis adeptos. E tornou-se o primeiro presidente.

Ao contrário dos cristãos tradicionais, que têm na Bíblia os únicos textos considerados sagrados, a teologia fundada por Smith Jr. baseia-se também no chamado Livro de Mórmon. Em texto publicado pela própria igreja, a obra é definida como “um volume de escrituras sagradas comparável à Bíblia” e “um registro da comunicação de Deus com os antigos habitantes das Américas”.

Para os que acreditam, trata-se de um conjunto de textos atribuídos a antigos profetas que teriam vivido no continente americano entre os anos 600 a.C. e 421 d.C.

Smith Jr. teria sido informado da existência desses escritos por meio de um anjo. E encontrado o material gravado em placas de ouro. O religioso publicou a obra pela primeira vez em março de 1830. O anjo teria recolhido as placas.

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O líder mórmon Brigham Young, em imagem de 1847

“A doutrina é centralizada em Jesus Cristo. Ele é o centro da fé dos membros de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”, explica Garcia. “Por meio dos missionários, aqueles rapazes de camisa branca e gravata, ou das sisteres, convidamos todas as pessoas a conhecerem mais sobre a Igreja e suas crenças. O trabalho missionário é uma das características da Igreja. Ele é ativo em todo o mundo.”

“Esses rapazes e moças convidam todos a virem a Cristo”, acrescenta o religioso. “A Igreja de Jesus Cristo utiliza escrituras como a Bíblia e o Livro de Mórmon, este, deixado por Jesus Cristo e escrito por profetas que viveram no continente americano. Assim como a Bíblia, o Livro de Mórmon é um outro testamento de Jesus Cristo.”

Fato é que os primeiros mórmons, dado o crescimento da comunidade, passaram a incomodar a sociedade norte-americana. Havia pontos de atrito religiosos, justamente pelas crenças além da Bíblia, e preceitos que eram malvistos — os primeiros adeptos da nova religião praticavam a poligamia, por exemplo.

Hábeis disseminadores de sua fé, eles rapidamente cresceram. Logo, havia membros da igreja no cenário político e social. O que só fez aumentar a resistência. A ética conservadora, voltada ao trabalho e a uma vida sem excessos também resultava em evolução material. Logo, havia mórmons ricos — e Smith Jr. chegou a fundar um banco.

Os atritos aumentaram no mesmo ritmo que a igreja. Em 1844, o líder fundador acabou assassinado por violentos antimórmons. Foi quando o plano de migrar para o oeste começou a tomar forma.

Importância história

Se o 24 de julho de 1847 acabou sendo o marco da consolidação da nova religião, como explicar o sucesso dela em meio a tantas seitas surgidas naquele contexto norte-americano? O historiador e teólogo Moraes aponta para algumas especificidades, que vão além da originalidade da ideia de um texto sagrado que compila passagens cristãs em solo americano.

“O grupo ‘dos pioneiros’ é formado por aqueles que, depois da morte violenta de Joseph Smith, acabam liderados por Young. É uma história miraculosa, de um grupo que se sente perseguido. Tudo isso dá coesão, dá unidade”, contextualiza.

Ele lembra também que o fato de haver uma sucessão, ou seja, um novo líder ter emergido após o assassinato do primeiro, também garantiu a continuidade da religião. “O profeta [Smith] acabou se tornando um mártir. Mas a liderança, o bastão, foi passada para outro sujeito que, de igual modo, passa a receber revelações [por meio de visões]”, afirma o estudioso.

“E a principal revelação dele foi a missão de liderar milhares de discípulos, fugindo de perseguições, até Utah, naquele momento um território americano não ocupado. Chegando lá ele teve a revelação de que era o lugar onde os ‘santos dos últimos dias’ deveriam ficar e assim terem uma vida sem perseguições”, relata.

Moraes analisa esses elementos como cruciais para a própria mitologia da religião então incipiente. “Há revelações, elementos sobrenaturais, um anjo aparecendo… Isso cria uma ideia de que o grupo é escolhido, um grupo de predestinados. São perseguidos mas que recebem a revelação de uma terra de liberdade”, ressalta ele.

O paralelo é inevitável com o êxodo dos hebreus do Egito, conforme o relato bíblico na missão liderada por Moisés. Ambos são povos em busca de suas terras prometidas.

“Há uma série de elementos simbólicos que fazem dessa data, o Dia dos Pioneiros, uma data que é referência. Um momento de homenagear as pessoas que contribuíram para construir aquele estado. Ou seja: há um marco importante”, ressalta o historiador.

E as dificuldades iniciais, aliadas aos hábitos conservadores e à vida regrada, contribuíram também para o sucesso material, conforme explica o professor. “A exemplo dos antigos pioneiros protestantes do início da colonização, ainda nas 13 colônias, eles viviam numa terra com dificuldades, com hábitos frugais. É a receita do desenvolvimento econômico”, analisa. “Com a vida disciplinada, não há gastos com coisas fúteis. Eles economizam e trabalham. Trabalham muito, em nome da fé.”

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O fundador da igreja dos mórmons, Joseph Smith, em pintura de 1842

“O grupo religioso administra os recursos, que chegam às plantações, as produções. Era um estado que estava sendo construído, uma sociedade inteira sendo organizada em função da religião. A prosperidade é o resultado imediato”, conta. “E tudo isso acaba recebido como uma aprovação de Deus.”

“É a ética do pioneiro: de fazer tudo para a glória de Deus e para a igreja. Isso acaba auxiliando no sucesso do empreendimento mórmon”, aponta o professor. “Então a trajetória do êxodo, fugindo de uma perseguição, é coroada com a revelação da terra prometida. Um roteiro que repete o que aconteceu com os hebreus do Antigo Testamento. O roteiro é sempre o mesmo.”

Nesse sentido, o 24 de julho também representa o início dessa vida nova. “Uma nova sociedade, a sociedade dos ‘santos dos últimos dias'”, afirma Moraes. “A sociedade das pessoas que estão ali exatamente para viverem em função das orientações dadas pelo líder religioso, pelo livro sagrado deles. E o sucesso do empreendimento é a confirmação de que a divindade estava com eles.”

Nomenclatura

Os membros da Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias acabaram se tornando conhecido como mórmons justamente por utilizarem o Livro de Mórmon como literatura sagrada. Oficialmente, contudo, não é a nomenclatura adotada.

“O nome correto e pelo qual convidamos a todos, quando se referirem à Igreja, utilizarem é: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. E o motivo é simples. A Igreja é de Jesus Cristo e leva seu nome. Todos os ensinamentos e a doutrina da Igreja é centralizada em Jesus Cristo, em seu sacrifício e no plano de felicidade que Ele tem para todos nós”, explica Garcia. “Mórmon é o nome de um profeta que viveu no continente americano cerca de 400 anos depois de Cristo.”

“Por muitos anos popularmente os membros da Igreja são apelidados de mórmons e o motivo é pelo fato da Igreja utilizar o Livro de Mórmon como uma escritura sagrada. Assim como a Bíblia Sagrada, o Livro de Mórmon é escritura”, contextualiza ele.

“Desejamos que todos ao se referirem à Igreja, utilizem o nome correto. Os membros podem ser reconhecidos ou citados como ‘santos dos últimos dias’, o que significa que todos estão buscando seguir o exemplo de Jesus Cristo”, esclarece o religioso.

Para o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, o nome mórmon pegou por uma questão de marketing eficiente. “É uma designação rápida, que funciona na prática: você vê aqueles sujeitos bem-educados, com um tipo de vestimenta, um determinado comportamento e automaticamente percebe que ‘são mórmons’.”

“Geralmente os apelidos que são dados, inicialmente às vezes de maneira pejorativa, acabam colando e funcionando bem para vários grupos na história”, ressalta. “O grupo pode não gostar originalmente, mas acaba funcionando porque é uma expressão certa.”

Moraes acredita que “se em algum momento ele foi pejorativo”, portanto, hoje é inegável que o termo “está associado à imagem desses missionários que perambulam pelo mundo e têm conquistado pessoas em vários continentes, com influência política, econômica e social em diversas partes do mundo.”

“É um grupo que, de fato, merece toda a atenção. Porque é um grupo que cresce, faz trabalho porta a porta em função de evangelizar e propagar sua religiosidade. O grupo consegue vender, no bom sentido da palavra, a sua essência, a sua fé, aquilo que o caracteriza”, diz o historiador.

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