- Charmaine Cozier, Christopher Blake e Louise Clarke-Rowbotham
- BBC The Inquiry
Após vários dias de protestos, desafiando as tropas que usaram gás lacrimogêneo, milhares de pessoas no Sri Lanka forçaram a renúncia do presidente, Gotabaya Rajapaksa, em meio a uma grave crise econômica na ilha do Sudeste Asiático.
“Existe escassez de combustível, de gás de cozinha, de muitos alimentos, e os preços subiram drasticamente. O preço do pão triplicou nos últimos seis meses. O preço do arroz mais que dobrou, e há longas filas. Às vezes, as pessoas esperam dias para conseguir alguns litros de gasolina ou diesel. Toda a economia está paralisada”, disse Ahilan Kadirgamar, professor de sociologia da Universidade de Jaffna, ao programa de rádio The Inquiry, da BBC.
Alguns dos problemas econômicos da ilha têm a mesma origem dos enfrentados por outros países, como o aumento dos preços mundiais de produtos devido ao fim da pandemia de covid ou a guerra na Ucrânia. Mas uma parte importante deste colapso financeiro no Sri Lanka poderia ter sido evitada, diz Kadirgamar.
Grande parte da indignação dos manifestantes que invadiram o palácio presidencial estava relacionada ao ambicioso — mas profundamente equivocado — plano do presidente de mudar a forma como a agricultura é feita no país.
Em abril de 2021, o presidente Rajapaksa anunciou um plano para que o país produzisse alimentos totalmente orgânicos em 10 anos. Isso marcou o fim do uso de fertilizantes sintéticos nas lavouras.
“Foi a proibição dos fertilizantes que nos levou à crise alimentar. E à crise econômica. Se o governo não tivesse proibido os fertilizantes, pelo menos agora teríamos comida suficiente. E o governo tem que assumir total responsabilidade por ter criado essa crise alimentar ao banir os fertilizantes químicos”, opina o professor de Sociologia.
Para Kadirgamar, a proibição — somada à escassez de combustível — criou uma situação insustentável para a agricultura do país: “Os agricultores estão quase desistindo da agricultura. Muitos deles estão deixando seus campos, o que está afetando não só seus meios de subsistência como também a vida dos que trabalham nessas plantações”.
Mas a agricultura orgânica realmente causou o colapso do Sri Lanka?
‘Revolução verde’
“A agricultura é muito importante, especialmente quando se trata de emprego”, diz à BBC Jeevika Weerahewa, professora de economia agrícola da Universidade de Peradeniya, observando que 25% da força de trabalho do país é dedicada à agricultura — ou cerca de 2 milhões de pessoas.
“No que diz respeito ao PIB [Produto Interno Bruto], a agricultura contribui com cerca de 7%. Outros 6% são da fabricação de alimentos. Logo, a agricultura e a alimentação constituem uma parte bastante importante da renda.”
O Sri Lanka depende de seus pequenos agricultores para cerca de 80% do suprimento nacional de alimentos.
“O principal produto é o arroz. É nosso alimento básico e precisamos de cerca de 10 quilos por pessoa por mês. Éramos mais do que autossuficientes em arroz e também em vegetais, frutas tropicais, coco e ovos”, diz Weerahewa.
Foram muitos anos até o Sri Lanka conquistar essa autossuficiência. Na década de 1960, foi lançada uma iniciativa global para aliviar a desnutrição em nações em desenvolvimento, incluindo o Sri Lanka. Essa iniciativa era chamada de “Revolução Verde”.
A ideia era dar um impulso à produção usando variedades de alto rendimento das culturas tradicionais, junto com técnicas de cultivo modernas, como métodos agrícolas com alto teor de nutrientes.
“Tivemos que estimular os agricultores a usar cada vez mais fertilizantes químicos porque só conseguiríamos uma boa colheita dessas variedades melhoradas se aplicássemos doses suficientes de fertilizantes sintéticos. Então começamos a subsidiar os agricultores a partir de 1962”, conta a professora de Economia Agrícola.
Os subsídios foram necessários porque a maioria dos pequenos agricultores do país não conseguia comprar fertilizantes químicos sem a ajuda do Estado. É por isso que foram dados descontos significativos, às vezes de até 90% sobre os preços de mercado.
Além disso, existe também o custo de importação, pois o Sri Lanka não produz fertilizantes químicos. Apesar da despesa, acabar com essa prática era uma medida que nenhum político ousava tomar.
No entanto, décadas depois de a revolução verde ter aumentado substancialmente o rendimento das colheitas, começaram a surgir relatos de doenças.
Em meados da década de 1990, muitos agricultores do norte da ilha começaram a sofrer de doença renal crônica de origem desconhecida (CKDU, na sigla em inglês). Em 2021, o Sri Lanka virou foco desta doença.
“Algumas pessoas suspeitavam que isso acontecia por causa dos fertilizantes químicos aplicados por esses agricultores, porque os agricultores não tomam precauções e nem seguem as diretrizes de segurança ao aplicar produtos químicos, fertilizantes e também pesticidas”, diz Weerahewa.
“No entanto, essas eram hipóteses. Não há provas científicas para dizer que a doença se deve ao cádmio e ao arsênico que estão presentes nos fertilizantes químicos. Mas essa afirmação se popularizou, assim como a ideia de uma agricultura sem fertilizantes químicos.”
Ao mesmo tempo, problemas globais na cadeia de suprimentos causaram uma escassez nas matérias-primas dos fertilizantes. A demanda — e os preços — dispararam. A economia do Sri Lanka sofreu outro revés: o fim das receitas do turismo, por conta da pandemia.
Nesse contexto, o governo decidiu que era hora de outra revolução agrícola.
“As pessoas ficam muito preocupadas quando se diz que existem substâncias tóxicas nos alimentos que reduzirão sua expectativa de vida e que seus filhos vão adoecer de doença renal crônica”, disse à BBC o professor Buddhi Marambe, cientista agrícola da Universidade de Peradeniya.
Em abril de 2021, o presidente Rajapaksa anunciou que abordaria esses problemas de saúde com uma política radical de agricultura 100% orgânica. Na época, as evidências científicas que sustentavam o plano foram questionadas, mas Marambe diz que certos interesses vinham pressionando o presidente há algum tempo.
“Havia pessoas do setor de saúde, pessoas das ciências agrícolas e também religiosos, clérigos budistas, e havia muitas outras pessoas do setor privado que vinham fazendo essa agricultura orgânica em certo nível no Sri Lanka.”
O mercado global de produtos orgânicos de alta qualidade pode ser lucrativo, mas nem todos estavam convencidos de que seria assim no país.
“Todos nós sabemos claramente que se trata de nichos de mercado muito pequenos, mas isso foi uma espécie de incentivo que foi usado para nos dizer que poderíamos ganhar muito dinheiro com isso. Mas, originalmente, a ideia era a saúde humana”, diz o cientista agrícola.
A agricultura orgânica não é novidade no Sri Lanka. Os produtores de chá e vegetais vêm fazendo isso em uma escala muito menor há anos. Mas depois da decisão presidencial, todo o país seguiu esse caminho.
O Sri Lanka não foi o primeiro a tentar ter uma agricultura totalmente orgânica. O Butão anunciou anos atrás que planejava se tornar a primeira nação 100% ecológica do mundo, mas tem enfrentado problemas com seu plano.
“O Butão começou a se preparar para essa atividade desde 2003. Mas eles tiveram um grande problema e estavam em uma situação em que mais de 50% dos alimentos básicos que consumiam precisavam ser importados”, diz Marambe.
Sinais de alerta indicavam que passar para a produção 100% orgânica — mesmo com anos de planejamento — seria inviável. No Sri Lanka, especialistas em agricultura levantaram preocupações semelhantes.
“Sempre dissemos ao governo que eles tinham tomado uma decisão nefasta. Eu mesmo, como outros cientistas agrícolas de diferentes universidades, escrevi a Sua Excelência pedindo uma audiência, mesmo que de meia hora, para explicar os impactos prejudiciais. Mas essas coisas não foram ouvidas, infelizmente”, diz o professor da Universidade de Peradeniya.
Com o mundo se recuperando da pandemia de covid e a economia do Sri Lanka perdendo receita com a falta de turistas, essa revolução orgânica não poderia ter vindo em pior hora.
O sonho vira pesadelo
“Os agricultores foram pegos de surpresa, e o resto do país também”, disse à BBC Saloni Shah, analista de Alimentos e Agricultura do Breakthrough Institute, uma consultoria ambiental com sede na Califórnia.
Ela diz que os problemas com o plano orgânico eram claros desde o início. O governo foi rápido em proibir os fertilizantes químicos, mas não pensou no que fazer para substituí-los.
“Também não há capacidade suficiente no país para produzir seu próprio adubo orgânico. Seria preciso de cinco a sete vezes mais adubo orgânico para cobrir os nutrientes que os fertilizantes sintéticos fornecem. Mais animais são necessários para produzir essa quantidade de esterco.”
“A agricultura orgânica tem um rendimento menor, por isso é preciso mais terra para cultivar a mesma quantidade de produtos. Em uma pequena nação insular, não há terra suficiente para produzir tanto esterco ou para atingir a produção que pode ser alcançada com fertilizantes sintéticos.”
“Para colocar em perspectiva, o país produz mais chá do que todo o chá orgânico do mundo combinado. Se a produção de chá fosse completamente orgânica, acabaria inundando o mercado de chá orgânico e isso poderia fazer com que os preços caíssem em espiral”, diz Shah.
A produção e venda de alimentos orgânicos em todo o mundo também exige inspeções e testes detalhados ao longo do tempo para atender às rígidas normas legais.
Segundo a especialista em Alimentação e Agricultura, nada disso existia no país, e nem um marco regulatório que orientasse os agricultores sobre quais tipos de fertilizantes orgânicos usar e quais eram seguros, nem orientações técnicas ou assessoria sobre que tipo de práticas deve-se aplicar.
A proibição também significou o fim do subsídio aos fertilizantes no exato momento em que os preços mundiais estavam subindo. Logo ficou claro que os agricultores estavam enfrentando a perda de suas colheitas e seus meios de subsistência devido à falta de fertilizantes.
Poucos meses depois de sua introdução, o plano orgânico desmoronou. Segundo Shah, 40% da colheita de arroz teria sido perdida, o que foi um duro golpe para a segurança alimentar do país. A reação do público foi rápida diante da escassez de alimentos e do aumento dos preços.
A queda acentuada na produção de arroz forçou o Sri Lanka a tomar medidas drásticas e caras. Saloni Shah diz à BBC que o governo teve que importar 400 mil toneladas de arroz da Índia e de Mianmar.
O fantasma da fome
No começo de novembro do ano passado, o presidente Rajapaksa reforçou seu compromisso com a agricultura orgânica na conferência sobre mudanças climáticas COP 26 em Glasgow, na Escócia.
Mas poucas semanas depois desse discurso, e sete meses após o início da proibição de fertilizantes sintéticos, o governo do Sri Lanka foi forçado a recuar.
“O governo suspendeu parcialmente a proibição no final de novembro para permitir a importação de fertilizantes sintéticos apenas para as principais culturas de exportação, como borracha, coco e chá, já que essas culturas são também uma importante fonte de divisas”, diz Saloni Shah.
“Sabemos que em fevereiro de 2022 a produção de chá foi 20% menor do que fevereiro de 2020, então combinados haveria um impacto econômico e de segurança alimentar”, diz Ahilan Kadirgamar.
Então foi a agricultura orgânica que causou o colapso do Sri Lanka?
Alguns problemas econômicos estão fora do controle direto do governo, como os preços mundiais recordes de produtos importados.
Mas a proibição e suas consequências foram auto-infligidas.
Considerações básicas não foram ponderadas: a escassez de fertilizantes naturais, a falta de tempo de preparação dos agricultores e a ausência de planos de contingência para cobrir a lacuna causada pela diminuição dos rendimentos orgânicos.
A medida agravou a crise financeira e se provou desastrosa para o abastecimento de alimentos do país.
Agora, a renda dos produtores de alimentos diminuiu e as consequências continuam. Sem combustível para as máquinas, as fazendas não conseguem funcionar.
Com o presidente Rajapaksa fora do governo, a incerteza continua. Ahilan Kadirgamar alerta que a fome é uma possibilidade aterrorizante.
“Resta saber se o novo governo e os novos líderes darão à agricultura a sua devida importância.”
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