- Gerardo Lissardy
- BBC News Mundo
Um após o outro, diferentes países latino-americanos elegeram governos de esquerda e uma nova onda política parece estar ocorrendo na região.
Desde 2018, líderes à esquerda do espectro político chegaram à presidência do México, Argentina, Bolívia, Peru, Honduras, Chile e Colômbia.
O fenômeno pode se completar nas eleições de outubro no Brasil, na qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem ampla vantagem nas pesquisas de intenção de voto.
Embora outros países da região tenham escolhido governos de diferentes correntes políticas nos últimos anos, uma vitória de Lula deixaria as sete nações mais populosas da América Latina e suas seis maiores economias nas mãos da esquerda.
Para alguns, tudo isso evoca o que aconteceu no subcontinente durante a primeira década deste século, quando três em cada quatro sul-americanos passaram a ser governados por presidentes de esquerda.
Mas há enormes diferenças entre aquela “maré rosa” que cobriu a América Latina e a atual onda progressista, que, segundo especialistas, corre o risco de ser mais limitada.
O termo “maré rosa” ou “onda rosa” (do inglês “pink tide”) para descrever a guinada à esquerda na região durante o início dos anos 2000 foi usado por Larry Rohter, então correspondente do jornal americano New York Times, durante a eleição de Tabaré Vásquez no Uruguai.
Segundo Rohter, a chegada do socialista ao poder fazia parte de “não tanto uma maré vermelha… e sim uma rosa”, em alusão à substituição do vermelho, cor associada ao comunismo, por um tom suave de “rosa”, para indicar a ascensão dos ideais social-democratas.
Anteriormente, a expressão havia denominado uma fase nas políticas nacionais durante a qual eleições, em meados da década de 1990, foram vencidas por figuras como o primeiro-ministro francês Lionel Jospin (do Partido Socialista) e o primeiro-ministro britânico Tony Blair (do Partido Trabalhista).
Um “degradé”
Em um contexto de fúria com os políticos, desigualdade e estagnação econômica, o voto dos latino-americanos nos últimos tempos tem sido pendular: da esquerda para a direita e agora novamente para a esquerda.
A regra nas eleições democráticas na região é a vitória da oposição.
“O importante é mudar de lado para ver se as coisas melhoram, porque o grau de descontentamento na América Latina nunca foi maior do que agora”, diz Marta Lagos, diretora da pesquisa de opinião regional Latinobarômetro, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
“A cada dia, a ideologia está se tornando menos relevante nas eleições”, acrescenta. “As pessoas estão se aglomerando no centro político para o lado que os eleitores do centro se inclinam. Eles dão a vitória aos governantes.”
Uma coisa que os candidatos de esquerda na região têm em comum — e parece ajudá-los a atrair esses votos centristas cruciais — é sua maior ênfase na ação do Estado para diminuir a desigualdade econômica.
Antes, os presidentes de esquerda se distinguiam por serem mais radicais, como o venezuelano Hugo Chávez, ou moderados, como Lula ou a chilena Michelle Bachelet.
Os governantes da nova onda são muito mais heterogêneos.
Lagos os divide em quatro tipos diferentes de esquerda: nova (onde coloca os presidentes eleitos no Chile e na Colômbia), populista (México), tradicional (Argentina, Bolívia e Honduras) ou ditatorial (na opinião dele, Venezuela, Nicarágua e Cuba, onde estão no poder há anos).
E hoje alguns líderes de esquerda parecem mais dispostos do que no passado a se distanciar de outros na região.
Antes de ser eleito presidente do Chile, Gabriel Boric criticou a repressão aos dissidentes em Cuba e na Nicarágua e, após sua vitória eleitoral, disse à BBC News Mundo em janeiro que “a Venezuela é uma experiência que fracassou”.
O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, falou em fevereiro de “uma esquerda covarde”, algo que muitos interpretaram como uma resposta a Boric.
Enquanto isso, o presidente eleito da Colômbia, Gustavo Petro, chamou Maduro de “ditador”, embora esteja se preparando para restabelecer as relações com o governo dele.
Heinz Dieterich, sociólogo alemão que cunhou o conceito de “socialismo do século 21”, ao qual Chávez se referiu posteriormente em 2005, descarta que essa expressão possa ser aplicada hoje ao que está acontecendo em países da região, como Chile, Argentina ou Bolívia.
“Nenhum desses governos quer o socialismo do século 20, que é o socialismo de Cuba”, diz Dieterich à BBC News Mundo. “Mas eles também não querem um socialismo do século 21 porque isso significa superar a economia de mercado e ter um Estado forte que possa controlar as corporações.”
“A vida é muito diferente”
Talvez a maior diferença entre a onda esquerdista do passado e a onda atual na América Latina seja o cenário em que elas surgem.
Entre 2000 e 2014, o boom internacional das commodities (matérias-primas oriundas do setor primário e negociadas nas bolsas de valores) deu aos presidentes da região um cheque gordo para investir em programas sociais e projetos estatais de todos os tipos.
Isso, por sua vez, consolidou um amplo apoio político-eleitoral com maiorias legislativas para os governos, que conseguiram reformas e reeleições em todos os lugares.
Ex-presidentes como o equatoriano Rafael Correa, o boliviano Evo Morales e o próprio Chávez chegaram a modificar as constituições de seus países e exerceram diferentes mandatos consecutivos.
Agora, com uma guerra na Europa, inflação crescendo e alta dos preços, tanto para crédito quanto para insumos, as economias da região estão encontrando mais dificuldades para tirar vantagem do aumento dos preços das commodities.
E os governos podem gastar muito menos do que seus cidadãos desejam, em tempos de pandemia de covid-19 e instabilidade social.
Isso contrasta com a agenda dos antigos líderes da “maré rosa”, de Chávez a Lula, que priorizavam a exploração de petróleo.
De fato, as diferenças persistem: Lula disse recentemente que a ideia de Petro, da Colômbia, criar um bloco anti-petróleo com líderes regionais progressistas “não é real” neste mundo.
Outros presidentes de esquerda, como o mexicano Andrés Manuel López Obrador e o boliviano Luis Arce, também apostam nas indústrias extrativas.
No entanto, talvez nisso a nova política que Boric e Petro estão propondo hoje esteja em melhor em sintonia com a sociedade do que a antiga política, assinala Lagos.
“Existe uma consciência ambiental na América Latina”, diz o diretor do Latinobarômetro. “Então qualquer política ambientalmente correta vai ter um grande apoio da população.”
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