- Paula Adamo Idoeta
- Da BBC News Brasil em Londres
Viroses respiratórias, em particular as que afetam crianças, costumam ser sazonais: ocorrem com mais frequência em determinadas épocas do ano, e os médicos sabem quando ficar de sobreaviso para as ondas de doenças como influenza, VSR (vírus sincicial respiratório) ou adenovírus.
Mas o que pediatras do Brasil e do exterior têm visto, recentemente, destoa completamente dessa previsibilidade.
E por trás desse quadro atípico parecem estar os efeitos colaterais da pandemia de covid-19 — tanto o isolamento que ela impôs nas sociedades e o “apagão imunológico” que isso provocou quanto a ação direta do Sars-CoV-2.
“Desde que a pandemia nos atingiu, em março de 2020, vimos uma mudança drástica do padrão” dos vírus mais comuns, relata à BBC News Brasil o infectologista Francisco Oliveira Júnior, gerente médico do hospital infantil Sabará, em São Paulo.
A mudança começou logo nos primórdios da pandemia. Com o isolamento social, o uso de máscaras e o fechamento de escolas e de espaços comuns, crianças e adultos pararam de ter contato com vários patógenos.
“O caso da gripe foi muito marcante: ela simplesmente desapareceu em 2020. Nós pesquisadores nunca imaginávamos que isso aconteceria”, explica à reportagem Ellen Foxman, professora-assistente da Escola de Medicina de Yale, nos Estados Unidos, e pesquisadora de comportamento de vírus.
Além da influenza (causador da gripe), também praticamente desapareceram ao longo de 2020, por exemplo, o VSR (que causa bronquiolite em crianças pequenas) e o rinovírus (causador do resfriado comum), relembra Francisco Oliveira.
Daí, em 2021, esses vírus começaram a reaparecer — mas fora de época.
“Para nossa surpresa, o VSR e a influenza apareceram no verão até em adultos”, diz o médico.
Nos meses frios atuais, quando viroses de fato se proliferam com mais velocidade, uma quantidade maior do que o comum de vírus está causando atendimentos e internações em hospitais infantis. A começar pelo Sars-CoV-2.
No hospital pediátrico Pequeno Príncipe, em Curitiba, de maio a junho, aumentou 30% o número de internações por covid-19, e a maioria dos casos eram de crianças não vacinadas (ou só com a primeira dose) e abaixo de 5 anos (que ainda não recebem a vacina).
No dia em que conversou com a reportagem, em 17 de junho, Victor Horácio, infectologista pediátrico do Pequeno Príncipe, disse que uma ala de 12 leitos infantis estava totalmente ocupada por pacientes com covid-19.
Fora isso, relata Horácio, tem havido “muito mais casos de VSR, adenovírus e parainfluenza (também causadores de doenças respiratórias). O quadro clínico pode não só ser mais forte, como mais frequente”.
E embora os casos mais graves de VSR sigam ocorrendo em bebês, até adolescentes têm sofrido mais com a doença, segundo o médico do Hospital Pequeno Príncipe.
No Sabará, têm crescido nas últimas semanas as internações por adenovírus, parainfluenza e rinovírus. “Antes, a prevalência desses vírus era menor”, explica Oliveira.
“É uma situação anômala”, diz o pediatra carioca Daniel Becker, que classifica o quadro atual como um “pandemônio de viroses”.
“Temos visto um número excessivamente grande de crianças pegando doenças consecutivas, uma atrás da outra. É uma observação pessoal, mas existe um consenso entre os médicos de que a ordem de grandeza das contaminações está bastante acima do normal”, avalia.
Mas o que explicam as mudanças de sazonalidade e de quadro clínico de vírus tão conhecidos da medicina?
É algo que ainda está sendo investigado, mas, segundo cinco médicos consultados pela reportagem, um ponto-chave é que parece haver um “déficit de imunidade” causado pelo período de isolamento social — em todas as faixas etárias, mas particularmente em crianças.
O fato de elas não terem pego tantas viroses nos meses da pandemia foi um alívio em meio à tragédia e às disrupções da covid-19. Mas isso deixou seus sistemas imunológicos destreinados para enfrentar patologias comuns e criou grupos populacionais mais vulneráveis a alguns vírus e bactérias, diz um estudo francês de coautoria do médico François Angoulvant, que desde 2020 tem acompanhado a evolução das doenças infecciosas em Paris.
Além disso, é possível que o Sars-CoV esteja interferindo no desfecho de algumas infecções. Um caso emblemático disso diz respeito a surtos da misteriosa hepatite infantil vistos em meses recentes.
Uma possibilidade estudada pelos médicos é se crianças que foram infectadas com covid-19 e em seguida pegaram o chamado adenovírus 41 — que causa problemas estomacais — acabaram tendo uma resposta inesperada do organismo que pode ter levado à hepatite, explica Oliveira Júnior.
Os vírus estão mudando?
De modo geral, outra hipótese sendo investigada é se os vírus comuns mudaram nos dois últimos anos.
Um estudo da Universidade de Sydney, na Austrália, publicado no periódico Nature Communications avalia que a pandemia “mudou enormemente a incidência e a genética” do VSR no país, que teve um dos lockdowns mais rígidos do planeta.
Assim como no resto do mundo, o VSR teve sua sazonalidade bagunçada na Austrália: sumiu do mapa em 2020, mas foi um dos primeiros a reaparecerem — mas no verão, em vez de no inverno — quando o país reabriu.
Os pesquisadores australianos decidiram sequenciar geneticamente os principais surtos fora de época do vírus. “Uma descoberta surpreendente foi um grande ‘colapso’ de cepas do RSV já conhecidas antes da covid-19 e a emergência de novas cepas, que dominaram os surtos” em grandes partes do país, diz comunicado da Universidade de Sydney.
“Precisamos reavaliar nosso entendimento atual e nossas expectativas de viroses comuns, incluindo a influenza, e a nossa abordagem em gerenciá-los”, disse John-Sebastian Eden, principal pesquisador do estudo. “Precisamos ficar vigilantes: alguns vírus podem ter praticamente desaparecido, mas possivelmente voltarão num futuro próximo, em épocas incomuns e com um impacto maior.”
Ellen Foxman, de Yale, e François Angoulvant, médico em Paris, no entanto, não acham que os vírus em si estejam mudando — a principal mudança é na nossa relação com eles.
“Nós é que mudamos (nosso comportamento na pandemia), e não os vírus”, opina Angoulvant à BBC News Brasil. “Também vimos que não entendemos plenamente a sazonalidade dos vírus e que não podemos extrapolar o comportamento de um vírus para os demais — o histórico do nosso sistema imunológico não responde igual a todos os vírus.”
“A pandemia serviu para nos mostrar que as coisas que achávamos que eram culpa do clima (no caso das viroses de outono/inverno, por exemplo) não necessariamente o são”, agrega Ellen Foxman. “Nosso comportamento tem um papel muito maior do que pensávamos.”
Além disso, ainda há muito a se decifrar sobre o nosso sistema imunológico. Por exemplo, um grande temor durante a pandemia de covid-19 era de que uma epidemia de gripe coincidisse com a de covid-19, levando a um potencial novo colapso dos sistemas de saúde.
Mas, apesar de ter havido casos de co-infecção de influenza e Sars-CoV-2, a “epidemia gêmea” não chegou a acontecer.
O motivo disso está sendo estudado pelo laboratório de Foxman em Yale.
“Pesquisamos se, quando um vírus avança com muita prevalência (como no caso do Sars-CoV-2 com suas variantes hiper-transmissíveis), acabe fazendo com que pessoas que tenham se infectado recentemente tenham o sistema imunológico em alerta máximo, o que pode afastar outros vírus”, diz Foxman à BBC News Brasil.
“É o que chamamos de interferência viral, mas isso não está plenamente compreendido ainda.”
De qualquer modo, mesmo que a interferência viral acabe sendo comprovada, ela provavelmente não é algo permanente, afirma Francisco Oliveira Júnior, do Sabará. E os vírus, com seus ciclos de altos e baixos, vão “disputando espaço” na tentativa de se proliferar em nossos corpos.
“Não sabemos que nicho o Sars-CoV-2 vai ocupar, à medida que mais gente se vacina ou tem imunidade. Ele é capaz de muitas mutações, que podem causar infecções, não necessariamente mais graves — mas é um vírus imprevisível e pode surgir uma cepa de maior gravidade que pode afetar subgrupos com resposta imune pior.”
Ellen Foxman suspeita que, com o tempo, a covid-19 vai acabar se tornando um vírus sazonal de inverno (assim como outros coronavírus costumam ser). E que, à medida que o comportamento das sociedades ficam mais parecidos aos períodos pré-pandemia, a sazonalidade típica das demais viroses também volte a seus padrões conhecidos.
O que pais podem fazer contra as viroses infantis?
Enquanto isso não acontece, o pediatra Daniel Becker dá dicas sobre como lidar com os frequentes casos virais em crianças.
“É importante evitar correr ao pronto-socorro logo no primeiro dia de febre, a não ser em caso de bebês pequenos (quando qualquer febre tem que ser avaliada por um médico). Isso porque, por conta do contexto do pronto-socorro, muitas vezes as crianças acabam sendo medicadas desnecessariamente, até com antibióticos, e passam horas na fila de atendimento, expostas a uma co-infecção”, diz ele.
“Se a criança está com um bom estado geral, ela pode ser observada com cuidado e tratada com muito líquido, mel, lavagem nasal, banho quente e vapor. E se ela ficar abatida por causa da febre, um antitérmico pode aliviar o incômodo.”
Se o quadro piorar ou persistir, aí sim pode ser hora de procurar atendimento médico.
E, para crianças que estejam com muito catarro, mas sem febre e bem dispostas, brincar em áreas ao ar livre ajuda a melhorar a imunidade e a fortalecer o sistema cardiorrespiratório, agrega Becker.
Por fim, “sabemos que as crianças estão comendo mais alimentos ultraprocessados, e isso não é bom, porque piora o perfil do microbioma.” Ele se refere ao conjunto de micro-organismos que vivem em partes do nosso corpo, como o sistema intestinal, e que têm demonstrado ter um papel importante na saúde geral, inclusive na imunidade.
Então uma alimentação rica em frutas, vegetais, grãos e leguminosas vai ajudar não só a saúde geral do corpo, como seu poder em combater infecções.
Além disso, todos os especialistas consultados pela BBC News Brasil dizem que a bagunça viral causada pela pandemia traz importantes lições, tanto para indivíduos como para as políticas públicas.
O primeiro ensinamento tem a ver com vacinas: manter o calendário vacinal em dia, inclusive (mas não apenas) contra a covid-19, é essencial para proteger crianças e adultos dos patógenos para os quais existem imunizantes.
Governos e fabricantes de vacinas podem ter de se adaptar para oferecer vacinas (como a da gripe) durante mais tempo, para além das sazonalidades típicas, pelo menos por enquanto. E pesquisas por vacinas novas, como uma contra o VSR, ou mais fortes, como no caso da covid-19, continuarão sendo importantes.
Para prevenir quadros virais em crianças, medidas de proteção continuam sendo essenciais, entre elas usar álcool gel, manter as mãos sempre limpas e controlar a ida a aglomerações — inclusive adultos, que muitas vezes são grandes transmissores de vírus para o público infantil.
“Outra coisa que eu jamais imaginava é como as máscaras acabaram sendo tão eficientes”, avalia Ellen Foxman.
Mesmo antes da pandemia, diz ela, “poderíamos ter prevenido o alastramento de tantas doenças se não fôssemos trabalhar doentes, ou deixando que todos ficassem sem máscara em consultórios pediátricos, passando vírus adiante. Usar máscara ou trabalhar de casa pode reduzir tanto o fardo dessas doenças. Espero que a gente lembre dessas lições quando a pandemia passar.”
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