- Atahualpa Amerise – @atareports
- BBC News Mundo
O triunfo de Gustavo Petro nas eleições de domingo (19/6) não é apenas um feito porque esta é a primeira vez que a Colômbia elege um presidente de esquerda. Chama a atenção também o fato de ele ter um passado como ex-guerrilheiro.
Por isso, a vitória dele é vista como mais um passo na evolução de um país que está deixando para trás a fase sombria da violência extrema do final do século 20 e como um símbolo da confirmação do acordo de paz com vários grupos guerrilheiros entre os anos 1990 e 2000.
Já existem algumas gerações que não sofreram com a violência extrema como seus pais e avós. Mas, além disso, a paz deu voz a novas demandas sociais e econômicas, e os cidadãos colombianos, apesar da desconfiança que o passado de guerrilha de Petro desperta em alguns, deram um voto de confiança nas promessas que ele fez sobre reformas estruturais e busca por mais igualdade.
A chegada dele ao poder evidencia também a transformação de um político que, em sua juventude, foi integrante do Movimento 19 de Abril (M-19), grupo guerrilheiro que buscava impor ideias por meio das armas, mas que se diferenciava de outras organizações clandestinas em vários aspectos.
Um dos principais tem a ver com a origem do grupo, que remonta a uma suposta fraude eleitoral.
O começo
Em 19 de abril de 1970, Petro tinha apenas 10 anos quando foram realizadas eleições presidenciais na Colômbia, nas quais o conservador Misael Pastrana chegou ao poder após derrotar o general Gustavo Rojas Pinilla.
Os seguidores de Rojas Pinilla, um militar populista que liderou o governo entre 1953 e 1957, denunciaram uma fraude eleitoral e começaram a se mobilizar, dando origem ao M-19 (em alusão à data das eleições, em 19 de abril) alguns anos depois.
“A ideologia do M-19 foi definida com três conceitos: nacionalismo, justiça social e democracia econômica e política”, explica o engenheiro, professor universitário, político e ex-guerrilheiro Antonio Navarro Wolff, segundo no comando da organização, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC para a América Latina.
Além de não ser marxista, algo que o distinguia de outros grupos guerrilheiros da época, o M-19 se diferenciava nos primeiros anos tanto pelos métodos de luta quanto por uma peculiar estratégia para se tornar mais conhecido.
Do simbolismo ao assassinato
O grupo comprou espaço publicitário em jornais colombianos e publicou mensagens enigmáticas:
“Deterioração… Falta de memória? Espere.”
“Sem energia… Inativo? Espere.”
“Parasitas… Vermes? Espere.
“Já chega.”
Essas frases, publicadas em branco sobre fundo preto, eram seguidas de um logotipo com dois triângulos voltados um para o outro e uma sigla então desconhecida: M-19.
Em 1974, o grupo completou com sucesso a primeira missão: roubar a espada de Simón Bolívar, um dos líderes da independência da Colômbia e de outros países latino-americanos, da casa-museu Quinta de Bolívar, localizada na capital Bogotá.
“Bolívar, sua espada volta à luta. Com o povo, com as armas, ao poder”, proclamou o grupo, após a operação bem-sucedida.
Essa ação simbólica serviu para divulgar o M-19, que reivindicava a causa do libertador da América contra um poder político considerado como “antidemocrático, tirânico e corrupto”.
Aos poucos, porém, o simbolismo deu lugar a outro princípio: a luta armada. O M-19 teve a história manchada de sangue pela primeira vez em 1976, com o sequestro e o assassinato de José Raquel Mercado, dirigente sindical acusado de traição.
Jovem guerrilheiro e vereador
Gustavo Petro ingressou na guerrilha aos 18 anos, em 1978, quando morava em Zipaquirá (cidade que fica ao norte de Bogotá) e cursava economia na universidade.
“A ideia de ingressar no M-19 me assustou. Não era um assunto qualquer. Era entrar em uma luta armada”, conta o político colombiano na autobiografia Uma vida, muitas vidas.
“Tudo aconteceu muito rápido. Passamos de conversas em cafés e discussões abstratas para sermos seduzidos não apenas pela ideia de que era hora de pegarmos em armas, mas também pela noção de que a organização que deveríamos pertencer era o M-19”.
Sobre o motivo de sua integração na guerrilha, ele mencionou em várias ocasiões a desigualdade social na Colômbia, à qual se somaram as ideias à esquerda que eram muito populares entre os jovens da América Latina e do mundo, embora elas não fossem as mais extremadas no grupo.
“Tínhamos uma concepção completamente diferente da do Exército de Libertação Nacional (ELN), das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), do Partido Comunista ou dos vários grupos da esquerda universitária, que dialogavam com modelos como o soviético, o cubano ou o chinês, enquanto pensávamos em nosso próprio projeto nacionalista e democrático”, escreve.
Aos 21 anos, Petro combinou a militância clandestina na guerrilha com o cargo oficial de vereador em Zipaquirá.
Petro, que naqueles anos era membro das bases da organização, reconhece que recebeu treinamento militar e empunhava um fuzil, embora assegure que nunca participou ativamente de ações armadas, algo que alguns críticos duvidam.
Em vez disso, ele afirma ter participado de tarefas de distribuição de propaganda ideológica e de outras iniciativas pacíficas, como a entrega de alimentos em comunidades carentes.
“Havia pessoas que se dedicavam à atividade política, fazendo trabalho educacional. Essas eram as tarefas que Petro e outros quadros desempenhavam”, revela Darío Villamizar, analista político, escritor e ex-militante do M-19, à BBC News Mundo.
M-19 contra todos (incluindo Pablo Escobar)
No final da década de 1970, o M-19 realizou vários sequestros e roubos — entre eles, uma operação numa das bases mais importantes do exército colombiano, de onde retiraram mais de 5 mil armas.
Os anos 1980, porém, foram o período de maior atividade criminosa do grupo, com ataques armados e assassinatos.
Em fevereiro de 1980, o M-19 atacou e fez reféns na Embaixada da República Dominicana, onde acontecia um coquetel com diplomatas de vários países.
Após quase dois meses de negociações, o evento terminou sem derramamento de sangue. Vários de seus protagonistas foram se refugiar em Cuba, que naqueles anos acolheu guerrilheiros latino-americanos, para quem ofereceu treinamento militar.
Em meio a uma espiral de violência na sociedade colombiana, o M-19 também realizou um confronto aberto com o cartel de Medellín, comandado por Pablo Escobar.
“Foi o resultado da atividade armada do M-19 em Medellín e parte do conflito armado”, diz Navarro Wolff.
Tanto o cartel de Medellín quanto as forças de segurança colombianas infligiram pesadas baixas ao grupo.
A tomada do Palácio da Justiça
Mas a ação que marcaria o M-19 para sempre foi o cerco ao Palácio da Justiça, em Bogotá, em novembro de 1985. A operação resultou em mais de 100 mortes e desaparecimentos, incluindo 11 magistrados da Suprema Corte do país, após uma sangrenta batalha entre a guerrilha e o exército.
A Comissão da Verdade, criada para esclarecer os acontecimentos do conflito armado interno na Colômbia, investigou o episódio e declarou responsáveis pelo massacre tanto o M-19, quanto o presidente Belisario Betancur e o Exército Nacional Colombiano, cuja ação foi considerada desproporcional.
Até hoje, há incógnitas sobre o ocorrido, uma vez que o cerco ao palácio foi combinado com o cartel de Medellín, que tinha o objetivo de eliminar documentos incriminatórios, de acordo com a versão contada por ex-membros do cartel. Membros da guerrilha negam essa informação.
Há também suspeitas de um suposto conluio com os militares, que sabiam de antemão do plano do M-19.
Petro, que seus detratores ligaram à tomada do Palácio da Justiça durante a campanha de 2022, estava preso quando o fato ocorreu.
Ele foi capturado pelo exército colombiano em outubro de 1985 e acusado de posse ilegal de armas. Petro afirma que os militares o espancaram várias vezes e que precisou ficar 18 meses na prisão, até ser liberado em fevereiro de 1987.
“Isso me deu mais ânimo de que o país precisa ser modificado. Saí de lá [da prisão] com 27 anos. Já não me chamavam de Gustavo, Francisco ou Petro. Me chamavam de Aureliano”, declarou em entrevista recente.
Seu pseudônimo no movimento clandestino, Aureliano, era uma homenagem ao Coronel Aureliano Buendía, personagem do romance Cem Anos de Solidão, do também colombiano Gabriel García Márquez, que Petro tanto admirava por ser “o coronel de mil batalhas perdidas”.
Uma paz histórica
Na segunda metade dos anos 1980, Petro participou das negociações de paz do M-19 com o governo, que não surtiram resultados até o final daquela década.
Em 1990, após um diálogo que durou cerca de 14 meses, o grupo e o governo colombiano assinaram um acordo de paz, o primeiro entre um Estado e uma guerrilha na América Latina.
Os dez pontos do acordo incluíam, entre outras coisas, a renúncia das armas pelo M-19 e a incorporação do grupo à vida política do país sob o nome Alianza Democrática M-19 (AD M-19). Gustavo Petro foi um dos cofundadores do partido.
Nas eleições de 1990, marcadas por uma sangrenta campanha na qual o próprio líder da ex-guerrilha, Carlos Pizarro, foi assassinado, o AD M-19 obteve 12,48% dos votos.
O candidato do partido estreante era Antonio Navarro Wolff, que acabou derrotado por César Gaviria.
A maior conquista do partido veio meses depois. Nas eleições que definiram a Assembleia Nacional Constituinte de 1991, o AD M-19 conquistou 19 cadeiras, apenas seis a menos do que o Partido Liberal, que estava no poder.
“O AD M-19 apresentou um projeto de Constituição completo e eu diria que 70% das propostas foram incluídas no texto aprovado”, calcula Navarro Wolff, um representantes do grupo que trabalhou no texto da constituição colombiana, em vigor até hoje.
‘Outra vida’
Petro chegou à Câmara dos Deputados da Colômbia em 1991 como representante do Departamento (Estado) de Cundinamarca.
As eleições de 1994 e 1998 deixaram o AD 19-M sem representantes eleitos.
O partido foi dissolvido em 2003, embora vários de seus antigos membros tenham exercido cargos eletivos por outros partidos.
Petro consolidou uma carreira política entre as décadas de 1990 e 2000, quando foi eleito senador em 2006 e prefeito de Bogotá em 2012, cargo que ocupou até 2015.
Desde então, ele apresentou-se como candidato à presidência duas vezes, mas não obteve sucesso — pelo menos até as eleições de 2022.
Na semana passada, em uma das últimas viagens de campanha, um morador de Caldas (cidade que fica entre Bogotá e Medellín) propôs a Petro a possibilidade de reviver o M-19.
“Não sei se reviver, porque é como os Beatles. O espírito continua ali, mas reviver agora é algo problemático, porque não é mais a mesma coisa. É outra história, outra vida”, respondeu.
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