- André Bernardo
- Do Rio de Janeiro para a BBC Brasil
Já imaginou caminhar pelo calçadão de Copacabana ao lado de Pelé? Ou assistir a um show do tenor espanhol Plácido Domingo, acompanhado ao piano por Tom Jobim (1927-1994), na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ou, ainda, conhecer o líder budista Dalai Lama durante uma visita ao Cristo Redentor? Parece difícil, impossível de acreditar, mas, há exatos 30 anos, esbarrar com uma dessas celebridades no Rio de Janeiro era algo perfeitamente normal.
Entre os dias 3 e 14 de junho de 1992, a cidade sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Unced, na sigla em inglês). A Rio-92, como ficou conhecida, foi realizada em comemoração aos 20 anos da Conferência de Estocolmo, em 1972, e reuniu autoridades do mundo inteiro, dos EUA a Tuvalu, um minúsculo arquipélago da Oceania, com um único objetivo: salvar o planeta.
“A Rio-92 foi um momento solar da diplomacia brasileira”, define o advogado Celso Lafer, então ministro das Relações Exteriores do Brasil. “Ampliou a credibilidade internacional do país e, por meio de um tema de alcance global, abriu espaço para o lugar do Brasil no mundo. Tenho muita satisfação de ter participado dela.”
O “maior evento internacional já sediado em nosso país”, como define o ex-chanceler, foi dividido em duas partes. Uma delas aconteceu no Riocentro, tradicional espaço para feiras e eventos, com quase 98 mil m² na Barra da Tijuca, na Zona Oeste da cidade. A outra no Aterro do Flamengo, uma das maiores áreas de lazer da cidade, com 1,3 milhão de m2, na Zona Sul. A primeira recebeu delegados de 179 países. A segunda, batizada de Fórum Global, representantes de 1,8 mil organizações não governamentais (ONGs).
“Em geral, 20 ou 30 chefes de Estado costumavam comparecer a uma conferência da ONU. No caso da Rio-92, mais de 100 marcaram presença. Foi a maior conferência já organizada pelas Nações Unidas”, afirma o físico José Goldemberg, então secretário de Ciência e Tecnologia e de Meio Ambiente do governo brasileiro.
Cada chefe de Estado teve direito a sete minutos de pronunciamento
A Rio-92, ou Eco-92, como também foi apelidada a conferência, começou oficialmente às 10h do dia 3, com o discurso do então secretário-geral da ONU, o egípcio Boutros-Ghali (1922-2016), no Riocentro. Na abertura do evento, o então presidente Fernando Collor de Mello e o secretário-geral da Rio-92, o canadense Maurice Strong (1929-2015), também discursaram. Por 12 dias, Collor trocou o Palácio da Alvorada, em Brasília, pelo Palácio Laranjeiras, a residência oficial do governador do Rio na época, Leonel Brizola (1922-2004).
Durante o evento, o Riocentro virou uma espécie de “cidade dentro da cidade”, com direito a três postos de saúde, que atenderam a uma média de 120 casos por dia: de hipertensão a malária. Logo no primeiro dia, o jornalista Reali Júnior (1941-2011), correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em Paris, sofreu um infarto e teve que ser transferido para o hospital Pró-Cardíaco, em Botafogo.
Segundo os organizadores, circularam pelos três pavilhões do Riocentro cerca de 20 mil pessoas por dia, entre delegados, ambientalistas e funcionários, e 8 mil jornalistas foram credenciados para cobrir o evento. Uma das coletivas de imprensa mais concorridas foi a do oceanógrafo francês Jacques Cousteau (1910-1997). Foram contratados 2 mil seguranças para patrulhar a área de 72 mil m² e evitar protestos de ativistas.
Os dois últimos dias de conferência foram os mais decisivos. Não por acaso, o encontro que reuniu 62 chefes de Estado, 43 primeiros-ministros e 8 vice-presidentes, entre outras lideranças mundiais, ganhou o sugestivo título de “A cúpula da Terra”.
“O balanço da Rio-92 é altamente positivo. Muitos governos passaram a levar o tema do meio ambiente mais a sério. No entanto, algumas promessas nunca saíram do papel. Nações ricas se comprometeram a apoiar financeiramente os países em desenvolvimento na geração de tecnologia limpa, na adaptação às mudanças climáticas e na preservação de reservas florestais. Isso, porém, nunca aconteceu”, afirma o deputado estadual Carlos Minc (PSB).
Ao todo, 102 governantes se inscreveram para discursar. Os pronunciamentos tiveram, no máximo, sete minutos de duração. O do americano George H. W. Bush (1924-2018), porém, chegou a oito e o do cubano Fidel Castro (1926-2016), famoso por seus longos discursos, não passou de cinco. A ONU disponibilizou tradução simultânea em sete idiomas: inglês, francês, espanhol, chinês, árabe, russo e português. O papa João Paulo 2º (1920-2005), autoridade máxima da Igreja Católica, não compareceu à Rio-92, mas a Santa Sé enviou uma delegação de 14 pessoas chefiada pelo cardeal italiano Angelo Sodano (1927-2022).
“Alguns temas polarizaram as negociações. Um exemplo: quem pagará a conta dos programas ambientais? Outro: a inclusão da pobreza e da saúde na questão ambiental”, recorda o físico Ennio Candotti, então presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “Ficou logo evidente que os compromissos eram frágeis e sujeitos a negociações bilaterais, em que pesam as relações de poder militar e econômico entre os países. No entanto, o impacto mais importante da Rio-92 foi ter incluído o tema do meio ambiente na pauta da política internacional.”
O líder budista Dalai Lama participou de vigília no Aterro do Flamengo
O policiamento foi reforçado dentro e fora do Riocentro. As ruas da cidade, principalmente as da Zona Sul e da Barra da Tijuca, foram patrulhadas pelas Forças Armadas. O forte esquema de segurança contou com policiais civis e militares, além de soldados do Exército e fuzileiros da Marinha. Para facilitar o deslocamento das comitivas presidenciais, ruas inteiras foram interditadas e linhas de ônibus tiveram seus itinerários alterados. Tanques do Exército foram parados em pontos estratégicos.
Os líderes mundiais ficaram hospedados em sete hotéis da orla carioca: o Copacabana Palace, um dos mais badalados do Rio, recebeu delegações de 11 países, como as da China, do primeiro-ministro Li Peng (1928-2019), e do Reino Unido, do primeiro-ministro John Major, de 79 anos.
Já o Rio Palace Hotel hospedou outras seis delegações, como as do Peru, do presidente Alberto Fujimori, e de Cuba. O Hotel Sheraton transformou a sala de estar de uma de suas suítes em mesquita para o emir do Kuwait, Jaber Al-Sabah (1926-2006). À época, o sheik tinha quatro mulheres e 44 filhos. O Sheraton reservou 310 suítes para a delegação americana.
A chegada do presidente dos estados Unidos, aliás, foi uma das mais aguardadas. Por questões de segurança, a agenda de alguns chefes de Estado foi mantida em segredo. Além dos compromissos oficiais, Bush e a mulher, Barbara, saíram para passear na Floresta da Tijuca, escoltados por quatro seguranças. Sua limusine era blindada e pesava sete toneladas. Um jantar foi oferecido a Bush, que comemorou seu 68º aniversário no Rio de Janeiro.
Durante a recepção, a cantora Simone, que puxou o Parabéns pra Você, bem que tentou ensinar o aniversariante a tocar tamborim, mas não conseguiu. Já o primeiro-ministro britânico aproveitou sua estadia no Rio para visitar a Fundação São Martinho, na Lapa, que acolhe crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social.
Nenhum outro convidado, porém, monopolizou tanto a atenção da mídia internacional quanto o líder budista dalai lama Tenzin Gyatso. O Nobel da Paz de 1989 ficou hospedado na residência oficial do então arcebispo do Rio, o cardeal Dom Eugênio Sales (1920-2012). Em sua comitiva de oito pessoas, havia dois seguranças. Além da visita ao Cristo, o Dalai Lama participou de uma vigília no Aterro do Flamengo, ao lado de outros líderes religiosos, como Dom Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo de Olinda e Recife. A cerimônia atraiu 10 mil pessoas.
“Na Rio-92, a humanidade tomou consciência da gravidade dos problemas ecológicos. Um planeta limitado em recursos que não suporta um crescimento ilimitado. O conceito de desenvolvimento sustentável, aliás, engloba termos contraditórios. O primeiro vem da economia e pressupõe uma lógica linear e ilimitada. O segundo nasce da ecologia. Sua lógica é circular e limitada. Chegamos à atual situação alarmante por não respeitar os limites da natureza. Em outras palavras: não avançamos. Pior, regredimos perigosamente”, avalia o teólogo Leonardo Boff. “Como diria o papa Francisco, ‘Estamos todos no mesmo barco. Ou nos salvamos todos ou ninguém se salva’.”
Ativistas do Greenpeace protestaram contra a energia nuclear em Angra
A 40 km do Riocentro, o Aterro do Flamengo abrigou o Fórum Global, visitado por 120 mil pessoas. A cerimônia de abertura, apresentada pelo ator inglês Roger Moore (1927-2017), que deu vida ao agente secreto James Bond em sete filmes da franquia 007, contou com o lançamento do balão Gota da Esperança. Outros astros e estrelas de Hollywood, como Jeremy Irons, Shirley MacLaine e Jane Fonda, também prestigiaram o evento. Artistas internacionais, como John Denver (1943-1997) e Olivia Newton-John, se apresentaram no Fórum Global.
“Parecia um festival de rock!”, compara Carlos Minc. “Houve avanços consideráveis, mas ainda insuficientes. Por um lado, conseguimos reduzir, em apenas dois anos, o desmatamento da Amazônia à metade. Por outro, tivemos retrocessos. Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil. A batalha ainda não está vencida.”
ONGs do mundo inteiro, como a Fundação Onda Azul, do cantor e compositor Gilberto Gil, montaram estandes no Aterro. Vendia-se de tudo: bonés, adesivos, camisetas… O ex-deputado federal Mário Juruna (1942-2002) tentou vender uma pele de onça por US$ 600. Diante da repercussão negativa, explicou que tudo não passava de protesto. Uma das 36 tendas temáticas do Fórum Global, a Comissão Indígena Internacional, reuniu representantes de 150 etnias de todas as partes do mundo.
Pelo menos três navios, de diferentes nacionalidades, ficaram ancorados no Rio durante a Eco-92: o Gaia, a réplica de um veleiro viking; o Melquíades, navio de bandeira francesa; e o Rainbow Warrior, do grupo ambientalista Greenpeace. Os três foram abertos à visitação pública. Outra réplica, do 14 Bis, conseguiu alçar voo de 60 metros.
Como já era de esperar, houve manifestações de ativistas. O barco-símbolo do Greenpeace protestou próximo à usina de Angra dos Reis contra o perigo da energia nuclear. A ONG Amigos da Terra soltou um balão inflável de 17 metros de comprimento, sob o formato de motosserra, contra a destruição das florestas tropicais. Dentro do Riocentro, cinco ativistas (um brasileiro, um sueco, uma venezuelana, um malaio e um canadense) fizeram greve de fome.
“O desenvolvimento promovido pelo atual sistema de produção e exploração do meio ambiente é insustentável”, avalia Ennio Candotti. “A questão da Amazônia é emblemática. Destrói-se a floresta para explorar a terra com produtos muito menos valiosos, como soja ou gado, do que outros que poderiam ser extraídos, como óleos e resinas, sem derrubar a floresta ou poluir as águas. Ignorância? Não só. Trata-se de um projeto político de ‘desenvolvimento’ sustentado por forças que não consideram os direitos humanos e os equilíbrios ambientais fundamentais para a construção de uma sociedade civilizada.”
Para cientistas, o Brasil perdeu o protagonismo no setor ambiental
A Rio-92 deu origem a diversos acordos internacionais, como a Declaração de Princípios sobre Florestas, um “manual de instruções” sobre como proteger áreas verdes do desmatamento; e a Declaração do Rio, uma espécie de “Declaração Universal dos Direitos Humanos” do planeta.
O mais importante deles, no entanto, é a Agenda 21, uma cartilha que ensina como deixar o mundo mais sustentável, conciliando preservação ambiental, justiça social e desenvolvimento econômico. São, ao todo, 2,5 mil recomendações divididas em 40 capítulos: proteção dos recursos naturais, combate à pobreza dos países em desenvolvimento, mudança dos padrões de consumo, entre tantas outras.
“Trata-se de um documento de grande envergadura, notável por seu equilíbrio e abrangência, que estipula metas concretas nos mais diversos setores para o período pós-conferência e para o século 21, norteado pela heurística concepção do desenvolvimento sustentável”, avalia Celso Lafer.
A conferência produziu, ainda, três convenções: Diversidade Biológica, que estabelece metas para a preservação da biodiversidade; Combate à Desertificação, que propõe medidas para evitar a transformação de áreas verdes em desertos; e Mudança do Clima, que traça estratégias de combate ao efeito estufa.
Ao longo dos anos, as convenções assinadas na Rio-92 viraram protocolos. A da Diversidade Biológica, por exemplo, inspirou a criação do Protocolo de Nagoia, em 2010. E a da Mudança do Clima, o Protocolo de Quioto, em 1997, e o Acordo de Paris, em 2015.
“Houve pressão para os chefes de Estado assinarem a Convenção do Clima”, recorda José Goldemberg. “Tanto os EUA quanto a União Europeia, 30 anos depois, conseguiram reduzir a emissão dos gases do efeito estufa. Até a China está produzindo menos do que produziria se não tivesse aderido à convenção. O Brasil, ao contrário, está se carbonizando. Perdeu o protagonismo. Virou um pária.”
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