- Mariana Sanches – @mariana_sanches
- Da BBC News Brasil em Washington
Três meses atrás, a história traçada para as eleições de 2022 seria a do pleito com menor participação dos jovens entre 16 e 18 anos desde o retorno à democracia brasileira. Em fevereiro deste ano, apenas 830 mil jovens tinham tirado seu título de eleitor – o equivalente a 13,6% da atual população brasileira nesta faixa etária. Para jovens de 16 e 17 anos, o voto não é obrigatório.
No entanto, depois de uma mobilização que levou ao engajamento até de dois astros hollywoodianos, Leonardo DiCaprio e Mark Ruffalo, e que irritou o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), a tendência foi revertida em cerca de 90 dias.
Nesta quinta-feira (5/5), um dia após o fim do prazo para o alistamento eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anunciou que, no total, 2,04 milhões de novos eleitores nessa faixa de idade se registraram para votar em 2022. Esse número, ainda parcial, já é 47,2% maior do que a adesão registrada em 2018 e 57,4% superior ao número de 2014.
“É com orgulho e satisfação que anuncio o resultado parcial de todo esse esforço, que superou todos os recordes já registrados pela Justiça Eleitoral brasileira em 90 anos. Vimos, como há muito não se via, um país unido pelo bem, pela concórdia, pelo fortalecimento da democracia. Agradeço a cada um e a cada uma, influenciador ou não, famoso ou não, jovens de todas as idades que participaram e criaram conteúdos nas redes sociais para chamar a atenção de todos”, afirmou o presidente do TSE, ministro Edson Fachin.
Campanhas na internet para estimular a participação de jovens de 16 e 17 anos foram feitas não só por críticos do atual governo, mas também por apoiadores de Bolsonaro.
As postagens de DiCaprio e de outras celebridades, com seus milhões em impressões e engajamento, reuniram material de gente anônima, que trabalhou silenciosamente por meses, em busca de conteúdo capaz de viralizar. Entenda:
Disputa Leo DiCaprio e Bolsonaro ganha novo ‘round’
Os últimos lances dessa história chamaram a atenção porque levaram ao confronto virtual de dois já velhos antagonistas. Em 28 de abril – uma semana antes do fim do prazo de registro eleitoral -, o ator e ambientalista americano Leonardo DiCaprio foi ao Twitter e postou, em inglês, aos seus 19,6 milhões de seguidores:
“O Brasil abriga a Amazônia e outros ecossistemas críticos para as mudanças climáticas.
O que acontece lá é importante para todos nós e o voto dos jovens é fundamental para impulsionar a mudança em direção a um planeta saudável”. A mensagem terminava com o site da campanha “Olha o barulhinho”, relembrava o prazo de 4 de maio e promovia a hashtag #tiraotitulohoje.
A postagem teve quase 50 mil likes. Pouco mais de 24 horas depois, a mensagem de DiCaprio foi repostada por Bolsonaro, que tem quase 8 milhões de seguidores, com uma resposta irônica do presidente brasileiro (também em inglês):
“Obrigado pelo apoio, Léo! É muito importante ter todos os brasileiros votando nas próximas eleições. Nosso povo decidirá se quer manter nossa soberania na Amazônia ou ser governado por bandidos que servem a interesses estrangeiros. Bom trabalho em O Regresso!”, escreveu o candidato à reeleição, mencionando o filme de 2015 e angariando mais de 92 mil likes.
Na sequência, Bolsonaro acusou DiCaprio de usar uma foto de 2003 para se referir à crise das queimadas na Amazônia em 2019. “Tem gente que quer prender brasileiros que cometem esse tipo de erro aqui em nosso país. Mas sou contra essa ideia tirânica”, afirmou Bolsonaro, em referência às ações judiciais contra fake news de que seus apoiadores têm sido alvo. “Então eu te perdoo. Abraços do Brasil!”, finalizou Bolsonaro.
A desavença entre DiCaprio e Bolsonaro não é nova. Em 2019, o ator doou cerca de US$ 5 milhões para a conservação da Amazônia e se tornou crítico aberto do atual governo brasileiro conforme os índices de desmatamento do bioma foram aumentando. O americano se posicionou abertamente contra a assinatura de acordos comerciais entre o governo de seu país e o Brasil dadas as políticas ambientais adotadas por Bolsonaro. Em resposta, o presidente do Brasil chegou a acusar DiCaprio de dar dinheiro para “tacar fogo na Amazônia”.
Quer seja pela resposta provocativa do presidente, quer seja pelo seu próprio interesse no assunto, DiCaprio postou mais cinco vezes sobre as eleições brasileiras e o voto jovem nos sete dias seguintes. A maioria delas em português.
Uma de suas postagens, mencionando uma conversa com a cantora brasileira Anitta durante o MetGala, ultrapassou 116 mil likes.
Anitta, que também se engajou nas campanhas pelo voto dos adolescentes, tem quase 17 milhões de seguidores e recentemente bloqueou Bolsonaro de seu perfil, para evitar que ele obtivesse projeção por meio de interações online com ela.
A musa do pop brasileiro tem se mostrado crítica ao presidente. Ela criou suspense em sua conta para dizer que tinha conversado “por horas” com Leonardo DiCaprio “sobre a importância dos jovens tirarem seu título de eleitor”. “Vocês sabiam que ele (DiCaprio) sabe mais sobre a importância da nossa floresta Amazônica do que o presidente do Brasil? Pois sabe”, disparou Anitta e amealhou 147 mil likes.
Bolsonaro usou um print da postagem de Anitta para responder (e recolher quase 113 mil likes): “Fico feliz que tenha falado com um ator de Hollywood, @Anitta, é o sonho de todo adolescente. Eu converso com milhares de brasileiros todos os dias. Não são famosos, mas são a bússola para nossas decisões, pois ninguém defende e sabe mais sobre o Brasil do que seu próprio povo”.
Os autores por trás do viral
As postagens de DiCaprio, Anitta e Bolsonaro, com seus milhões em impressões e engajamento, reuniram material de gente anônima, que trabalhou silenciosamente por meses, para fazer o conteúdo viralizar, muito longe dos ambientes em que esses três personagens costumam circular.
“Acho muito curioso uma reação dessas de um presidente que foi eleito democraticamente”, comentou a advogada Mariana Faciroli, de 30 anos, do interior de São Paulo.
Faciroli faz parte de um grupo de 53 mulheres, entre 17 e 45 anos, unidas pelo apreço à banda de K-pop BTS e pela verve para o ativismo socioambiental. Em 2019, elas fizeram viralizar uma hashtag sobre as queimadas na Amazônia que recebeu endosso de DiCaprio. Agora, o grupo, batizado de Army Help the Planet, capitaneou a campanha “Tira o Título Army”.
“Fãs de K-pop são uma força poderosa! Eles esvaziaram comícios de (Donald) Trump e combateram trolls nas eleições do Chile. Fãs de K-pop sabem que a juventude pode votar para construir um futuro melhor. Eles estão instigando jovens brasileiros de 16 e 17 anos a se registrarem para votar! Estou com eles”, postou o ator americano Mark Ruffalo, intérprete do super-herói Hulk no filme “Vingadores”, fazendo circular a campanha entre seus 8 milhões de seguidores no Twitter.
Questionada sobre se entraram em contato diretamente com Di Caprio ou Ruffalo para pedir apoio à causa, Faciroli se mostrou espantada. Disse que não tem nenhum contato com os famosos estrangeiros e atribui os apoios aos milhões de fãs da banda de K-pop. O trabalho de Faciroli já foi mais longe do que ela própria. Em julho, a advogada fará sua primeira viagem internacional: apresentará os resultados cívicos de seu grupo numa conferência na capital coreana Seul. Um dos conferencistas no evento, o best seller brasileiro Paulo Coelho, já endossou o trabalho do Army nas redes.
Segundo Faciroli, como parte significativa dos fãs de k-pop são jovens e muito ativos nas redes sociais, ela e seu grupo identificaram, ainda no ano passado, “um momento muito delicado para o jovem na política, como se política não se discutisse’. Até a democracia começou a entrar em xeque”.
A mobilização do grupo incluiu não só um tutorial amigável para o público sobre como tirar o título (que teve mais de 100 mil impressões online), mas a distribuição, em cinemas, de réplicas de títulos de eleitor “fofos”, com os dados de integrantes da banda BTS e um QR code para a campanha, e projeções gigantes, em edifícios de sete capitais brasileiras, sobre a importância da emissão do título pelo jovem.
Segundo Faciroli, o grupo atua de modo 100% voluntário e sequer aceita doações. “Fazemos parcerias e, quando tem algum custo, a gente rateia entre as 53 voluntárias”. A advogada diz ainda que o movimento é apartidário. “Não temos a intenção de manifestar apoio ou repulsa a nenhum candidato ou representante eleito, até porque queremos ter condições de bater de frente com quem quer que seja quando discordamos da política socio-ambiental”, diz Faciroli, que conta ter tomado alguns “hates” nas redes (mensagens agressivas de desconhecidos), “sinal de que estou famosa no Twitter”, ri.
“A gente usa tanto a expressão festa da democracia, mas o que há de festa? A polarização espanta os jovens, dá neles o medo de onde estão indo se meter, medo de ser julgado, de brigar em casa. A gente quer é colocar a festa nesta história”, diz Letícia Bahia, diretora executiva da Girl Up Brasil, o braço nacional de uma organização criada nos EUA em 2010 para oferecer subsídios pra elaboração de políticas públicas para adolescentes à Organização das Nações Unidas.
No Brasil, a Girl Up conta com mais de 170 clubes de jovens, entre 13 e 22 anos, que discutem temas considerados centrais para esse público. Recentemente, a rede se engajou, por exemplo, em dezenas de projetos de lei para combater a pobreza menstrual.
Atuando no Brasil desde 2019, a organização já tinha feito uma mobilização pelo voto jovem em 2020, com resultados muito menores.
“Esse ano, a questão do voto jovem ganhou uma conotação muito eleitoral pela tendência do eleitor dessa faixa etária de ter um voto mais progressista”, afirma Bahia, que ressalta que o grupo é apartidário.
Diferentes sondagens eleitorais têm mostrado dianteira do candidato do PT, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ante a Bolsonaro, entre o estrato mais jovem do eleitorado. A vantagem, no entanto, não é uniforme neste grupo. Segundo notou o cientista político Jairo Nicolau, a partir de dados de abril de 2022 da pesquisa Genial/Quaest, enquanto Lula aparece com o dobro das intenções de voto entre mulheres de 16 a 29 anos, na mesma faixa etária entre homens, é Bolsonaro quem tem a liderança (40% a 36%).
A Girl Up Brasil criou a campanha “Seu voto importa”, compartilhada por Di
Caprio e pela atriz brasileira Larissa Manoela, que vestiu um cropped com a hashtag #seuvotoimporta e postou foto em sua conta de Instagram para mais de 45 milhões de seguidores. “A ideia era levar a questão do voto não apenas para os espaços onde os jovens estão, mas para onde eles estão se divertindo”, diz Bahia, que vibrou com a “fofoca” entre Anitta e DiCaprio sobre o engajamento jovem na eleição do Brasil.
A Girl Up não abre as informações sobre financiadores e custos da campanha. O mesmo foi dito à BBC News Brasil pelos criadores de outra das campanhas virais, a “Olha o Barulhinho”, da agência de comunicação online com foco social Quid. Nos dois casos, no entanto, os responsáveis afirmam que não aceitam qualquer doação ou vinculação com partidos políticos.
Já a “Cada voto conta”, criada pela ONG Nossas é financiada por organizações como a Open Society Foundations, do bilionário George Soros, a Oak Foundation, a Unicef, a Skoll Foundation, entre outras. A Nossas não aceita doação de governos ou partidos e não tem vinculação com legendas.
Ainda que seja difícil estimar quanto essas organizações gastaram para promover o voto jovem no Brasil, um cálculo da organização americana Vote.org, dedicada a levar os eleitores dos EUA às urnas, já que ali o voto não é obrigatório), estima que o custo de convencer alguém a se registrar para votar esteja em torno de US$3. Se juntas, as campanhas estimularam mais de um milhão de jovens, não é exagerado dizer que se tratou de um esforço milionário.
Rumo aos 2 milhões
No caso da campanha da Nossas, o trabalho também desembarcou do mundo online: a ideia foi criar um jogo para premiar os 3 jovens que mais convencessem amigos a tirar seus títulos (o resultado ainda não saiu, mas as líderes na corrida até agora contabilizam entre 200 e 300 títulos acumulados). A organização estima que tenha engajado ao menos 5 mil jovens diretamente.
Segundo Daniela Orofino, uma das diretoras-executivas da Nossas, essas quatro campanhas – e algumas outras – atuaram de modo independente mas com uma certa coordenação para amplificar seus efeitos. E com uma mesma meta: bater os 2 milhões de novos títulos de jovens em 2022 (o que foi alcançado, segundo o TSE).
“No começo desse ano, a gente percebeu que tinha muitas organizações, com quem já havíamos trabalhado em outras causas, com a mesma preocupação que a gente, a questão do voto jovem, e resolveu se articular. Foram mais de 30 organizações envolvidas e várias campanhas surgiram nesse contexto. E a gente atuou junto como pode”, afirma Orofino. Uma das atividades conjuntas foi a criação de um dia nacional do título, com banquinhas para tirar o voto na hora, em escolas de todos os 27 Estados do país. Houve também um tuitaço coletiva com a hashtag #tiraotitulohoje.
“Teve muitas celebridades que entraram na onda, e a gente acha isso muito positivo porque eles falam com muitos públicos. Mas a gente não sabe te dizer como chegou no Leonardo di Caprio, no Mark Ruffalo, na Anitta. O negócio tomou uma proporção tão grande, chegou em tanta gente”, diz Orofino.
O engajamento das campanhas, com atores e financiadores internacionais, gerou desconforto no Palácio do Planalto. Também via Twitter, o assessor especial para relações internacionais do presidente Bolsonaro, Filipe Martins, afirmou que “A (revista) Time (que publicou capa com Lula esta semana) e Leonardo DiCaprio não são os únicos se intrometendo na política doméstica brasileira. Há gente muito mais perigosa do que o ator e seus colegas hollywoodianos envolvida nessa tentativa de manipular os brasileiros e afetar o desfecho da disputa eleitoral deste ano. Uma dessas pessoas é George Soros”.
Todas as envolvidas em campanhas entrevistadas pela BBC News Brasil negam que a intenção das campanhas tenha sido beneficiar ou prejudicar um ou outro candidato.
“É uma campanha em defesa à democracia e da participação dos jovens. No começo do ano, a narrativa era ‘o jovem não se importa com a política, o jovem não se importa com eleições’, e agora a narrativa é ‘o jovem reagiu, deu a volta por cima e vai fazer história na eleição de 2022′”, diz Orofino.
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