- José Carlos Cueto
- BBC News Mundo
“Se temos medo? Não, estamos calmos e preparados.”
A linguagem corporal de Kimmo Jarva confirma a tranquilidade das suas palavras. E não há tremor na voz do prefeito da cidade de Lappeenranta, no sudeste da Finlândia, quando ele expressa o desejo de que o país faça parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), mesmo com as constantes ameaças do Kremlin, que rejeita o avanço da aliança militar em áreas que considera de sua influência.
As últimas semanas não têm sido fáceis para essa idílica cidade com pouco mais de 70 mil habitantes, banhada pelo quarto maior lago da Europa e premiada por sua limpeza e luta pelo meio ambiente.
Localizada a apenas 20 quilômetros da fronteira com a Rússia, Lappeenranta havia sido o exemplo perfeito das boas relações entre Helsinque e Moscou, marcando o famoso “pragmatismo” finlandês.
A cidade se orgulha da sua localização privilegiada e de ser porta entre o Ocidente e o Oriente, o que transformou a indústria e o comércio local, agregando características únicas à cultura da região. Mas agora, junto com o restante do país, ela busca a proteção oferecida pela Otan contra um vizinho no qual deixou de confiar.
O governo finlandês da primeira-ministra Sanna Marin acelerou seus passos rumo à afiliação à aliança militar encabeçada pelos Estados Unidos e outras potências ocidentais. A decisão é apoiada por 62% da população. Mas, para as pessoas que viveram décadas de boas relações com o vizinho do leste, essa dramática mudança de postura não será fácil.
Décadas de intercâmbio
Os moradores de Lappeenranta e de outras cidades fronteiriças estão conscientes de que a mudança de atitude terá um preço.
“Devido às restrições da pandemia, perdemos um milhão de euros (mais de R$ 5 milhões) por dia porque os turistas russos não vêm mais fazer compras na nossa região. Agora, com a guerra e nossas medidas para entrar na Otan, não sabemos por quanto tempo mais durará essa situação”, afirmou o prefeito Jarva à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC).
Lappeenranta testemunhou como poucas cidades da Finlândia os benefícios das boas relações com Moscou. Todos os anos, um milhão e meio de cidadãos russos cruzavam a fronteira para desfrutar da sua hospitalidade e da sua tranquila localização junto ao lago Saimaa, o maior do país.
A cidade também é um destino conhecido pelo seu comércio livre de impostos, que motivava milhares de cidadãos da Rússia a visitarem o local diariamente para encher suas malas de compras e voltar para casa. Quando a União Europeia impôs sanções à Rússia pela anexação da Crimeia, em 2014, o Kremlin respondeu proibindo importações de alimentos provenientes de países europeus. Com isso, Lappeenranta tornou-se o caminho adotado por milhões de cidadãos russos da região para comprar produtos proibidos no seu país.
O intercâmbio fez com que os negócios florescessem por décadas de um lado para o outro da fronteira. De fato, Lappeenranta fica mais perto de São Petersburgo — a segunda maior cidade da Rússia — que da capital da Finlândia, Helsinque.
“Abrimos escritórios [turísticos] em São Petersburgo e em Vyborg [na Rússia]. Eu os visitava todos os meses. Cooperávamos entre nós e organizávamos eventos para a imprensa. Tudo era amizade e cooperação”, relembra Jarva.
Mas, agora, existem apenas veículos nas passagens de fronteira. Os dois países praticamente proibiram o tráfego comercial e particular entre seus territórios. Os escritórios na Rússia que divulgavam Lappeenranta como a porta de entrada para o Ocidente foram fechados.
“Serão necessários vários anos e muitas mudanças para podermos voltar a viver isso”, lamenta o prefeito.
Mudanças rápidas
A Finlândia passou décadas demonstrando um comportamento neutro com a Rússia, assumido após o fim da Segunda Guerra Mundial, como forma de garantir a paz frente a um vizinho muito mais poderoso.
Esse comportamento é popularmente conhecido como “finlandização”, um conceito criado pela Finlândia para convencer a antiga União Soviética da sua neutralidade. Gerações de cidadãos e políticos acreditaram nesse conceito.
O ingresso na Otan nunca havia recebido mais de 30% de aprovação entre os finlandeses. Até que, algumas semanas após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a opinião pública sofreu uma reviravolta completa. A aprovação dobrou para 62% — a mais alta da história da pesquisa. E o número de opositores à entrada da Finlândia na Otan caiu de 40% em 2021 para apenas 16% atualmente.
“Olhando para as pesquisas, também não parece que a população das cidades fronteiriças (como Lappeenranta) esteja muito assustada”, analisa Charly Salonius-Pasternak, pesquisador do Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais. “Aqui, a maioria não acredita que a Rússia deixaria de atacar se a Finlândia for gentil o suficiente. Se a Rússia decidir atacar, ela o fará de qualquer forma, como na Ucrânia. Acredita-se que o que costumava servir não funciona mais.”
O prefeito de Lappeenranta afirma que “depois da guerra, nossa cidade mudou de opinião rapidamente. Acreditamos que a decisão de entrar na Otan seja correta.”
Ecos do passado
Os dois países são separados por 1,3 mil km de fronteira, mas a Rússia é 50 vezes maior e sua população, 26 vezes a da Finlândia.
Durante séculos, a sombra das aspirações expansionistas russas projetou-se sobre o território finlandês, que foi invadido em várias ocasiões. A própria fortaleza de Lappeenranta foi construída pelos russos em 1775, após uma sangrenta batalha na qual morreram centenas de finlandeses.
No início da Segunda Guerra Mundial, os dois países travaram uma guerra relativamente rápida, na qual a Finlândia conseguiu deter os avanços da União Soviética, mas não sem a perda de parte do seu território. Extensas regiões da Carélia — onde fica Lappeenranta — foram ocupadas pelos soviéticos durante o conflito. A cidade sofreu fortes bombardeios.
Especialistas como Salonius-Pasternak acreditam que essa dupla relação de cooperação e rivalidade é algo “esperado” entre vizinhos fronteiriços. “As mesmas pessoas que vendem produtos aos turistas russos em uma semana poderão fazer treinamento militar na semana seguinte, sabendo que, se forem convocados, é porque a Rússia está atacando. Sempre foi assim”, segundo ele.
Olhar para o futuro
Autoridades russas transformaram as advertências em ameaças, devido aos avanços da Finlândia e da Suécia (outro de seus vizinhos próximos) para ingressar na Otan — um risco que os finlandeses parecem estar dispostos a assumir e dizem estar prontos para isso.
“Estamos preparados para enfrentar ciberataques e difusão de notícias falsas, mas não acredito que estejamos com medo da guerra ou de algum tipo de problema. Temos refúgios e estamos prontos para qualquer tipo de ataque. Estamos acostumados a viver nesta região e somos mais pragmáticos que muitos outros países da Europa”, afirma Jarva.
Pragmatismo é exatamente uma das palavras mais repetidas pelas autoridades de Lappeenranta sobre o que pode acontecer no futuro. Eles esperam que o caminho tomado pelo seu país não cause mal-entendidos. Afinal, seu descontentamento é com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e com os responsáveis pela guerra — não com os cidadãos russos.
“Somos uma cidade popular, a segunda mais visitada da Finlândia, depois de Helsinque. E devemos isso principalmente ao turismo russo”, afirma Markku Heinonen, gestor de projetos da cidade.
“Muitos cidadãos russos continuam viajando para outros países da Europa e para os Estados Unidos, que fazem parte da Otan. Por isso, espero que esse problema venha a ser resolvido. Somos vizinhos e precisamos nos acostumar a essa nova forma de convivência”, acrescenta ele.
“Temos também indústrias e outras fontes de renda. Temos uma universidade importante. Não vivemos apenas do turismo”, conclui Päivi Pietiläinen, chefe de relações internacionais do município.
Cidadãos de mais de 80 nacionalidades convivem em Lappeenranta, incluindo uma considerável população de idioma russo. Para o prefeito Jarva, “isso (as tensões) não é culpa deles. Queremos cuidar deles para que vivam em paz por aqui. Mas (…) acreditamos que levará décadas para que se volte à normalidade.”
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