- Daniela Fernandes
- De Paris para a BBC News Brasil
Uma onda de agressões misteriosas com picadas de agulhas em boates, bares e shows em várias cidades da França tem deixado as autoridades em alerta e levado donos de casas noturnas e organizadores de eventos festivos a reforçar a segurança dos locais por temores de novos ataques.
Mais de uma centena de investigações foram abertas na França por “administração de substância nociva” em diversas localidades, como Nantes, Grenoble, Paris, Lyon, Béziers, Rennes e Toulouse. As vítimas são jovens, homens e mulheres, que relatam sintomas como náuseas, vertigens, perda de equilíbrio, dores musculares e suores.
As hipóteses sobre os motivos deste tipo de agressão estão em aberto, segundo os investigadores. Eles não sabem se seria uma forma de violência gratuita ou até mesmo uma espécie de desafio macabro “lançado nas redes sociais”.
A pena prevista para administração de substância nociva é de três anos de prisão, mas pode chegar a dez anos no caso de circunstâncias agravantes como a premeditação ou o dano causado à saúde da vítima.
A estudante de biologia Zoë Stoppaglia estava em um bar em Grenoble, no sudeste da França, com amigos. Em entrevista ao jornal Le Monde, ela contou que havia tomado apenas um copo de bebida alcoólica horas antes de se sentir muito mal abruptamente, com problemas na visão e perda de força nas pernas, que a impossibilitou de conseguir ficar em pé.
Ao seu lado no bar, um jovem apresentava os mesmos sintomas. Eles suspeitaram ter sido drogados e foram para o hospital. Os testes deram negativo para o GHB, conhecido como a “droga do estuprador.” No dia seguinte, o médico de Zoë constatou uma marca de injeção no corpo da jovem.
Ela fez um boletim de ocorrência e retornou ao hospital para exames complementares, ainda sem resultados, disse a estudante ao Le Monde. “Tenho medo. Não sei até agora o que me injetaram. Os médicos não conseguem descobrir”, afirmou.
Outra vítima, Élodie, teve perda de memória durante horas após passar a noite em uma casa noturna em La Rochelle, no sudoeste do país. No dia seguinte, em entrevista ao Le Parisien, ela contou que descobriu duas marcas de injeção em seu braço e hematomas, confirmados por um certificado médico. Outras vítimas também só identificaram a marca de agulha na pele no dia seguinte à agressão.
Já Marie dançava com amigos em Le Mans quando sentiu um formigamento na coxa. “Uma dor súbita me paralisou e minhas pernas me abandonaram. Não conseguia me levantar. Os seguranças da boate acharam que eu estava bêbada e queriam me expulsar. Um amigo achou que eu estava tendo um acidente vascular cerebral”, contou a jovem ao jornal Le Parisien. Ela passou a noite no hospital, onde uma enfermeira constatou uma marca de agulha de seringa e um vermelhão em sua coxa.
Risco de HIV
Por medida preventiva, as vítimas iniciam rapidamente um tratamento com triterapia caso tenha ocorrido uma transmissão da aids por conta do uso de agulhas na agressão, mas até o momento todos os testes do vírus HIV deram negativo.
As autoridades francesas ainda não têm nenhum suspeito nem a confirmação da substância administrada, já que os exames realizados têm dado resultados negativos. Também não se sabe qual tipo de agulha ou seringa tem sido utilizado nas agressões, como por exemplo, uma injeção usada para aplicar insulina.
Em inúmeros casos, médicos e enfermeiros constataram marcas de picada de agulha em braços, coxas, nádegas, tornozelos, ombros ou nas costas das pessoas atacadas.
“É complicado porque é necessário que as vítimas reajam rapidamente”, afirmou o procurador de Béziers, Raphaël Balland, ao Le Monde. “Algumas substâncias desaparecem rapidamente do organismo. É o caso do GHB, que não pode mais ser detectado após algumas horas.”
Em Grenoble, os resultados de exames toxicológicos não revelaram até o momento, a presença de GHB ou GBL, ambas usadas por estupradores para dopar suas vítimas. Mas o procurador de Grenoble, Éric Vaillant, disse ao Le Parisien que essas análises foram feitas mais de 17 horas após as agressões “o que não permite excluir formalmente a administração de GHB”.
Em Nantes, na Bretanha, o procurador Renaud Gaudel afirma que há até o momento 45 casos desse tipo, que ocorreram em 17 estabelecimentos. Alguns resultados ainda são aguardados, mas até o momento nem o GHB ou outro produto tóxico ou farmacêutico foi detectado. “O objetivo dessas picadas ainda precisa ser elucidado”, disse Gaudel ao canal TF1.
O GHB pode ser injetado rapidamente, mas outras substâncias necessitam uma injeção de alguns segundos. No entanto, as vítimas que perceberam instantaneamente que haviam sofrido uma picada relatam que ela foi feita rapidamente.
Uma fonte ligada às investigações em Béziers disse ao Le Monde que há a possibilidade de ser uma substância produzida pelo corpo humano, como adrenalina ou insulina em excesso.
Não houve nenhuma agressão sexual e em apenas um caso houve furto. Foi em Grenoble, onde um jovem prestou queixa afirmando ter sofrido uma picada de agulha em uma boate e ter tido seu telefone celular, cartão de crédito, relógio e chaves roubados.
Câmeras
Essas agressões preocupam os donos de discotecas, que passaram quase dois anos fechados em razão da pandemia de covid-19, recebendo ajudas financeiras do governo, e os organizadores de festivais, que tiveram de adiar seus eventos.
Após funcionarem apenas cinco meses em 2021, as boates puderam reabrir em fevereiro deste ano.
Devido ao número crescente de queixas registradas nas delegacias por conta das misteriosas picadas, estabelecimentos estão reforçando o controle dos clientes na entrada, com revistas mais detalhadas, além da instalação de câmeras.
A boate Usine à Gaz, de Béziers, investiu 20 mil euros (cerca de R$ 100 mil) em câmeras, walkie-talkies e maletas de primeiros socorros, além de reforçar a equipe de seguranças, segundo seu gerente, Benoît Bienvenu. Desde então, ele diz que não houve nenhum novo caso de agressão utilizando agulhas.
Já houve casos de picadas misteriosas em um importante festival, o Printemps de Bourges. Durante o verão, a partir do final de junho, há grandes festivais na França, com dezenas de milhares de participantes, como o Hellfest, que atrai fãs de heavy metal.
“Levamos isso muito a sério. Vamos reforçar o sistema de revista dos participantes”, disse Gérard Pont, organizador do Francofolies de La Rochelle, que será realizado em julho, ao jornal Le Parisien.
“É preciso analisar a situação sem criar um pânico geral”, ressalta Jérôme Tréhorel, diretor do festival Vieilles Charues, que recebe 70 mil pessoas por dia. “Estamos trabalhando com médicos, autoridades e a agência regional de saúde para ter um máximo de informações e tranquilizar nosso público”, afirma.
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