- Thais Carrança e Caio Castor
- BBC News Brasil, São Paulo
Localizada a meia hora de caminhada da sede da Prefeitura de São Paulo, em pleno centro da cidade mais rica do país, uma favela que abriga 1,3 mil famílias levou mais de 30 anos para conquistar água e esgoto encanados.
A luta da Favela do Moinho por urbanização e acesso ao saneamento básico é exemplo dos desafios de um país onde 35 milhões não têm acesso a água tratada e 100 milhões não contam com coleta de esgoto, segundo dados do Instituto Trata Brasil.
Agora, com as obras para instalação do sistema de saneamento em andamento, os moradores do Moinho sonham com a regularização fundiária e do fornecimento de energia elétrica, ampliação da coleta de lixo e implantação de um sistema preventivo de combate a incêndio, após a comunidade ter sido parcialmente destruída pelo fogo duas vezes, em 2011 e 2012.
Mas as esperanças trazidas pela conquista de um direito básico, previsto na Constituição, vão muito além de novas melhorias de infraestrutura.
Um endereço e mais respeito
“Todo mundo aqui vai passar a ter um endereço, que era uma coisa que a gente não tinha, porque estão falando que vai ter até nome nas ruas”, diz Robenilton Rosa dos Santos, de 51 anos e morador do Moinho há sete.
Para receber cartas e encomendas até então, os moradores do Moinho usam um mesmo endereço, uma serraria localizada na entrada da favela, cujo dono recebe os pacotes.
“A instalação da rede de água e esgoto é uma grande vitória para todos os moradores”, diz o pai de três filhos, que trabalha como porteiro num condomínio no bairro vizinho de alta renda de Higienópolis.
“Esperamos ter agora maior respeito da polícia, que chega aqui a qualquer hora, em qualquer casa, arrebentando as portas. Já teve vez de a gente estar dormindo e acordar com arma na cabeça, te chamando de vagabundo, sendo que, no outro dia, você tem que acordar às 5h para trabalhar”, relata.
Um dos filhos de Robenilton — na verdade, enteado — é Kelvy Alecrim Trindade, de 15 anos e revelação do boxe nacional, que começou treinando em um projeto social na favela e sagrou-se campeão paulista e campeão brasileiro juvenil na sua categoria de peso.
O projeto Boxe Autônomo começou no Moinho em 2017, após o assassinato pela Polícia Militar do jovem Leandro de Souza Santos, morto em seu barraco aos 18 anos. À época, testemunhas afirmaram que os policiais ficaram durante uma hora dentro da casa antes que Leandro fosse morto e representantes do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) afirmaram que havia indícios de tortura.
O caso, no entanto, foi arquivado pela Justiça a pedido do Ministério Público, sob alegação de que os policiais agiram em legítima defesa.
Vinda da Bahia, a família morava de aluguel no centro de São Paulo. Mas, contando apenas com o salário do porteiro para o sustento de cinco pessoas, Robenilton, a esposa e os filhos se mudaram para a favela, localizada entre duas linhas de trens urbanos, num terreno envolvido em disputas entre União, CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e empresários.
Com as obras da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) em andamento na rua paralela à sua, Robenilton mostra empolgado à BBC News Brasil a largura dos encanamentos que devem levar água às casas dos moradores nos próximos meses.
Com os canos largos, ele espera que cheguem ao fim os problemas constantes de falta de água no bairro e que a saúde das crianças, atualmente expostas a esgoto a céu aberto, melhore.
“Nosso esgoto hoje é clandestino, tem um córrego aqui no fundo da comunidade e jogamos os canos para lá, aí vai direto para o rio Tietê. Para água, a ligação é clandestina, ela vem para as casas numa mangueira fininha, então tem vezes que falta três, quatro dias e a gente precisa comprar água no mercado até para cozinhar. Já chegamos a ficar semanas sem água”, conta.
Banho em cima da cadeira para evitar o esgoto
Se o cotidiano é de privações, quem mora no Moinho quase desde a sua criação, no início da década de 1990, lembra que a situação ali já foi pior.
A paraibana Josefa Flor da Silva, mais conhecida como Dona Zefa, de 71 anos, mora na favela encravada entre os bairros do Bom Retiro, Barra Funda e Campos Elíseos há 21 deles.
“Quando entrei aqui, a situação era feia, nós não tínhamos água, comida, lugar para morar. Eu tinha sete filhos no meu barraco e não tínhamos banheiro dentro de casa”, lembra Dona Zefa, que sustentou a família recolhendo recicláveis com uma carroça pelas ruas do centro.
“Perto de onde hoje ficam as lixeiras [na entrada da favela], tinha uma torneira e a gente enchia os tambores e puxava a água de carroça”, lembra a moradora, sobre o passado.
Se faltava água para o consumo, sobrava quando chovia e o local onde fica a casa de Zefa alagava. “Para passar, eu fazia uma ponte, de lá na frente até em cima. E era rato, água podre, tudo quanto não prestava”, conta a idosa.
“Para tomar banho, a gente subia numa cadeira dessas, porque o esgoto chegava alto, e botava o balde em cima de uma outra cadeira. Você tomava banho com lesma subindo na cadeira, rato passando, a gente se lavava e já subia para o quarto em cima. Meu fogão, a gente subia para o andar de cima também, para fazer comida para os meninos”, lembra Dona Zefa.
Embora hoje em dia ela tenha chuveiro quente e banheiro dentro do domicílio, a casa de Zefa ainda alaga quando chove mais forte, motivo pelo qual ela aguarda ansiosamente a chegada do esgoto e da água encanados, que ela espera que reduzam o problema.
“Eu não vejo a hora quando a Sabesp chegar, quando ela chegar aqui, acho que vou soltar rojão. Eu acho que quando a Sabesp chegar, vai ser um sonho da gente”, diz Zefa.
Vivendo atualmente só com o benefício que recebe do INSS, com o qual ajuda filhos e netos, a moradora diz que não se preocupa com ter de passar a pagar a conta de água e esgoto.
“Para nós vai ser bom, é um comprovante de endereço”, diz a moradora.
Um território em disputa
A Favela do Moinho surgiu da ocupação por pessoas de baixa renda de um terreno sob o viaduto Engenheiro Orlando Murgel, onde ficava o antigo Moinho Central, indústria de processamento de farinha e fabricação de rações para alimentação animal, desativada na década de 1980.
Os atuais moradores contam que, nos primeiros anos da favela, viveram ali antigos trabalhadores da fábrica fechada.
De lá para cá, o terreno passou ao controle da Rede Ferroviária Federal, foi a leilão por dívidas da empresa, foi arrematado por empresários privados (que, no entanto, não concluíram o registro da compra) e virou alvo de disputa na Justiça.
Em 2008, com a assessoria jurídica do Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns da PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), a Associação de Moradores da Favela do Moinho entrou com uma ação coletiva de usucapião.
Em abril daquele ano, uma decisão provisória da Justiça Federal assegurou a posse aos moradores até o julgamento final da ação, que até hoje não aconteceu.
Em meio a essas disputas, a favela passou por dois grandes incêndios, em 2011 e 2012, que resultaram em mortes e destruição de barracos. Como resultado, muitas famílias deixaram o local, passando a receber auxílio-aluguel, com a promessa da prefeitura de serem realocados para conjuntos habitacionais próximos à Ponte dos Remédios, na região noroeste da cidade.
Depois dos incêndios, no entanto, a favela voltou a crescer, processo que se acentuou no período recente, após a pandemia, com o aumento da pobreza e da população em situação de rua no centro de São Paulo.
Em meio a essa nova expansão, o início do processo de urbanização da favela foi garantido através de uma ação civil pública impetrada pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo.
A ação listou diversas áreas de habitação precária da capital e cobrou ações do município, sob pena de multas diárias, a cada dia de descumprimento.
Direito do cidadão, dever do Estado
“Desde 2005, quando montamos a associação de moradores, a gente vem discutindo que saneamento básico é um direito nosso e um dever do governo”, diz a líder comunitária Alessandra Moja Cunha, de 37 anos e moradora da favela há 30.
“Passamos mais de 15 anos lutando por água, luz e esgoto, fizemos manifestações na prefeitura e esse ano o Ministério Público notificou a Sabesp. Não é que eles são bonzinhos, é que o Ministério Público reconhece que somos moradores há mais de 20 anos no mesmo local, sem saneamento básico”, diz Alessandra, que trabalha com reciclagem, é mãe de quatro filhos e dona de dez cachorros, que a acompanham para todo lado, enquanto ela anda pela favela.
“Somos uma comunidade periférica em pleno centro da cidade mais rica do país. Mas nunca tive vergonha de morar aqui, porque acredito que as periferias são como os antigos quilombos”, afirma a líder comunitária.
“Para as pessoas pobres, menos favorecidas, não é questão de ter vergonha, mas de saber cobrar e se posicionar da forma correta perante o poder público. Porque nós temos direitos e deveres e eles têm que suprir nosso direito ao saneamento básico, porque é isso, é o básico.”
Agora, com a chegada da água e do esgoto, Alessandra e os demais moradores sonham mais alto.
“Eu espero que mude tudo, que, do mesmo jeito que chegou a água, que chegue a energia elétrica, a coleta de lixo, os varredores. Que chegue o direito à cidade para todos, que todos os serviços públicos a gente tenha aqui, como tem em todo outro lugar.”
O que dizem Prefeitura, Enel e Sabesp
A Sabesp informou em nota que as obras de saneamento na comunidade do Moinho devem ser concluídas até o final de 2022 e as residências do local serão beneficiadas com a tarifa social, modelo de cobrança destino a famílias de baixa renda.
Questionada sobre porque as obras estão sendo feitas somente agora, sendo que a comunidade existe há 30 anos, a empresa afirmou:
“A regularização da área da comunidade do Moinho esbarrou em pendências judiciais com relação à propriedade da área, havia inclusive uma posição do Ministério Público de 2016 proibindo as regularizações. Esta posição foi alterada em 2020, com a solicitação do Ministério Público do Estado de São Paulo de um Plano de Urbanização para essa comunidade, envolvendo também a regularização de água e esgoto.”
Ainda segundo a Sabesp, a cobertura no atendimento de água na Região Metropolitana de SP é de 95%, com índices de 83% na coleta de esgoto e 73% no tratamento de esgoto.
Questionada sobre as perspectivas para regularização do fornecimento de energia elétrica, a concessionária Enel afirmou que:
“A Favela do Moinho está localizada em uma área particular da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), na região central da capital. Para qualquer ação de regularização no local, é necessário um plano prévio de urbanização, de comum acordo entre a CPTM (proprietária do terreno) e a Prefeitura Municipal.”
A distribuidora disse ainda que o local possui restrições técnicas para a instalação de rede de energia elétrica e que não existe acesso viário para implementação de forma segura.
“A companhia tem interesse em regularizar a rede elétrica em todas as comunidades em situação irregular, mas em alguns casos é necessário trabalhar em conjunto com demais órgãos públicos para a obtenção de licenças ambientais. Outro fator que impacta esse trabalho é que a distribuidora depende de regularização urbana e viária para implantar a rede elétrica de forma segura para as equipes e os moradores”, acrescentou a empresa.
Segundo a Enel, a cidade de São Paulo tem atualmente cerca de 150 mil ligações clandestinas com algum tipo de entrave para regularização, como restrições ambientais.
A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), informou que há 467 famílias cadastradas com compromisso de atendimento definitivo, das quais 292 famílias recebem auxílio-aluguel.
Segundo a secretaria, as famílias foram cadastradas entre os anos de 2011 e 2012, em razão de incêndios na área da Favela do Moinho.
Conforme a Sehab, a previsão é de que 160 famílias sejam atendidas com unidades habitacionais na segunda fase do empreendimento Ponte dos Remédios e outras 307, no empreendimento Major Paladino. A pasta, no entanto, não informou o prazo previsto para esse atendimento.
Quanto aos temores dos moradores de que a favela possa ser desapropriada, mesmo após as obras de urbanização, a secretaria afirmou que “não há perspectiva de desocupação do local”.
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