- Mariana Sanches – @mariana_sanches
- Da BBC News Brasil em Washington
A historiadora americana Francine Hirsch, especialista em União Soviética e Direitos Humanos, enumera os movimentos russos recentes em relação à Ucrânia.
Primeiro, quando iniciou sua invasão ao país vizinho, o presidente russo Vladimir Putin argumentou que pretendia “desnazificar” a Ucrânia, a qual qualificou como “uma criação artificial dos socialistas bolcheviques”.
Nas últimas semanas, artigos no veículo de controle estatal RIA Novosti passaram a trocar o termo “desnazificar” por “desucranizar”. Ao mesmo tempo, centenas de corpos de civis ucranianos com sinais de execução, tortura e estupro foram encontrados em regiões das quais tropas russas recém se retiraram, como Butcha, nas cercanias da capital ucraniana Kiev.
Para Hirsch, a somatória das palavras e das imagens não deixam muita margem para interpretação. “Genocídio não significa necessariamente o assassinato de todos os ucranianos. Estamos vendo uma campanha para eliminar, esmagar ou diminuir a identidade e a nação ucraniana. Estamos vendo incitação ao genocídio pelos políticos russos. E estamos vendo os crimes horríveis contra civis cometidos pelas tropas da Rússia. Essa combinação de incitação com atrocidades precisa ser levada muito a sério”, afirmou Hirsch à BBC News Brasil.
O tema genocídio tem sido parte importante do trabalho de Hirsch. Em 2020, ela lançou a elogiada obra Soviet Judgment at Nuremberg (“O julgamento soviético em Nuremberg”, em tradução livre e sem edição no Brasil). Ali, a historiadora reconta, a partir de farta documentação, como o tribunal criado para julgar os nazistas alemães por crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, como o Holocausto, serviu em parte aos interesses particulares do líder soviético Joseph Stalin.
O enorme sofrimento infligido pelos nazistas ao povo russo durante a invasão à União Soviética e o fato de que coube ao Exército Vermelho derrotar Adolf Hitler no leste, o que celaria a vitória dos Aliados na guerra, deu ao governo de Stalin a condição moral que ele precisava para ser parte do julgamento dos alemães.
E por isso mesmo, de acordo com Hirsh, graças à condição de aliado dos Estados Unidos, Inglaterra e França —as atrocidades cometidas pelo Stalinismo antes ou durante a Segunda Guerra Mundial, ficaram encobertas, jamais foram investigadas ou chegaram a ser escamoteadas para a conta dos alemães.
Hirsch cita, por exemplo, o caso conhecido como Massacre de Katyn, quando, em 1940, Stalin ordenou a morte de cerca de 22 mil soldados poloneses, cujos corpos foram encontrados três anos mais tarde em uma cova coletiva na Floresta Katyn, no oeste da Rússia. Por cinco décadas, os russos culparam os alemães nazistas pelo massacre. Apenas em 1990, a União Soviética reconheceu que as mortes foram ordenadas por Stálin.
Do mesmo modo, o episódio conhecido como Holodomor, na Ucrânia dos anos 1930, quando mais de três mil ucranianos teriam sido mortos por uma escassez de alimento supostamente orquestrada por Stálin, e a grande fome no Cazaquistão, no mesmo período, nunca foram extensivamente investigadas por um tribunal penal internacional.
Para Hirsch, professora da Universidade Wisconsin-Madison, a história desses casos ensinam uma importante lição para o presente, na Guerra da Ucrânia.
“Acho extremamente lamentável que o Holodomor e a fome dos Cazaques não tenham sido investigados como genocídios, em 1991 (quando a União Soviética colapsou). E acho que essa é uma das razões pelas quais é tão importante coletar evidências do que está acontecendo agora, porque precisaremos dessas evidências para ter um reconhecimento legal do que está ocorrendo”, diz Hirsch.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Francine Hirsch à BBC News Brasil.
BBC News Brasil – Recentemente, centenas de corpos de civis foram encontrados em áreas de onde as tropas russas se retiraram, na região da capital ucraniana, Kiev. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, qualificou a situação como genocídio. Esse é realmente um genocídio?
Francine Hirsch – Em primeiro lugar, o que chamamos de genocídio? Como historiadora, entendo o genocídio a partir de uma perspectiva histórica. Escrevi um livro sobre o julgamento de Nuremberg, e concentrei meus estudos na União Soviética e na Alemanha nazista. Quando as pessoas pensam em genocídio, elas com frequência estão pensando no pior exemplo possível, o Holocausto. E se algo não chega ao nível do Holocausto, as pessoas dizem: ‘Bem, então isso aqui não é genocídio’.
Mas a definição de genocídio, estabelecida da Convenção de Genocídio da ONU, inclui atos cometidos com a intenção de destruir completa ou parcialmente um grupo étnico, nacional, racial ou religioso.
Não é cedo para falar em genocídio na Ucrânia. Líderes russos e a mídia estatal russa têm incitado o genocídio. No mesmo dia em que aqueles corpos foram encontrados em Bucha, no mesmo dia em que soubemos que ucranianos estavam sendo deportados e enviados a campos de concentração, um texto foi publicado no RIA Novosti, um veículo estatal russo, argumentando que a elite política ucraniana deveria ser eliminada, e que os cidadãos ucranianos deveriam experimentar todos os horrores da guerra e absorver a experiência como uma lição histórica e uma oportunidade de expiação de sua culpa.
O texto conclama por uma “desucranização”, usa essa linguagem extrema e efetivamente descreve um plano de genocídio. A mídia russa é altamente censurada, então para que esse texto tenha sido publicado, isso significa que ele conta com aprovação oficial. O mundo precisa entender o que os líderes e analistas russos estão pedindo, porque isso deve moldar nossa compreensão desta guerra.
No dia seguinte à publicação desse artigo na RIA Novosti, o ex-presidente russo Dmitry Medvedev, que agora é um dos conselheiros do círculo mais próximo de Putin, declarou que a identidade ucraniana é uma grande farsa e que o objetivo (da guerra) é mudar a forma como os ucranianos percebem sua identidade.
Genocídio não significa necessariamente o assassinato de todos os ucranianos. Estamos vendo uma campanha para eliminar, esmagar ou diminuir a identidade ucraniana e a nação ucraniana. Estamos vendo incitação ao genocídio, pois os militares russos estão cometendo crimes horríveis contra civis. Essa combinação de incitação com atrocidades precisa ser levada muito a sério.
BBC News Brasil – O líder russo, Vladimir Putin, disse muitas vezes que os ucranianos cometeram genocídio contra a população russa no Donbas, a quem ele diz querer libertar e concentra agora os esforços militares. Putin faz um uso correto do termo?
Hirsch – Putin gosta de usar a linguagem do direito internacional para degradá-la e lançou uma campanha massiva de desinformação na Rússia. O povo russo tem recebido uma falsa mensagem de que os ucranianos são nazistas e que estão cometendo genocídio.
Putin tem clamado por um Tribunal de Nuremberg dos ucranianos, contando mentiras e manipulando a linguagem do direito internacional. O Tribunal Penal Internacional (em Haia) investigou a alegação de Putin de que um genocídio de russos estaria ocorrendo na Ucrânia (desde 2014).
Eles concluíram (em meados de março) que não havia provas disso e disseram a Putin para cessar a guerra. Acho que é uma resposta bastante clara. Agora, Putin transformou a Rússia em um “estado bandido” e não tem interesse em seguir as normas do direito internacional.
BBC News Brasil – Podemos falar também sobre o Holodomor? Ele é considerado um genocídio por alguns países e definido assim pelos ucranianos. Mas os críticos dizem que a fome era um problema generalizado na União Soviética nos anos 1930 — as estimativas apontam que os cazaques, por exemplo, foram proporcionalmente mais atingidos por ela, com 90% de sua população morrendo de fome. Então, o Holodomor é mesmo um genocídio? Se sim, por quê não consideramos a situação dos cazaques como genocídio?
Hirsch – (O advogado polonês) Raphael Lemkin, quando criou o termo genocídio (em 1943), o definiu de um modo amplo, que incluía a fome intencional de pessoas. A Convenção do Genocídio considera que a fome intencional de pessoas também é genocídio. O próprio Lemkin, mais tarde, se referiu a Holodomor como um caso de genocídio. Desde então, vários historiadores têm chamado o terror da fome na Ucrânia de genocídio.
O problema é que os líderes e perpetradores soviéticos não foram responsabilizados pelas atrocidades cometidas na época da União Soviética. Nunca houve uma investigação completa sobre esses casos. Houve uma espécie de tentativa de julgar o Partido Comunista em 1991, mas não foi um esforço real. Acho extremamente lamentável que o Holodomor e a fome dos cazaques não tenham sido investigados em 1991 como genocídios. E acho que essa é uma das razões pelas quais é tão importante coletar evidências do que está acontecendo agora, porque precisaremos dessas evidências para ter um reconhecimento legal do que está ocorrendo.
BBC News Brasil – Por que os líderes soviéticos não foram investigados e responsabilizados? E qual é o risco de que isso se repita agora?
Hirsch – Vamos falar sobre a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha nazista foi derrotada e seus líderes e outros perpetradores foram levados a julgamento logo após a guerra. A União Soviética foi uma potência aliada durante a Segunda Guerra Mundial e os vencedores, é claro, não foram levados a julgamento. Os soviéticos não foram investigados por atrocidades que cometeram durante a Segunda Guerra Mundial, como o Massacre de Katyn, contra os oficiais poloneses. Eles não foram investigados nem naquela época nem depois do colapso da União Soviética.
Os soviéticos não foram responsabilizados por nenhuma das atrocidades que aconteceram na época do Stalinismo, não houve acerto de contas de Holodomor. Não houve uma explicação completa para as atrocidades de Stalin durante a época do Grande Terror. Não houve investigação sobre as deportações de grupos étnicos inteiros que os soviéticos realizaram nas décadas de 1930 e 1940. Não houve investigações e julgamentos de crimes de humanidade soviéticos contra a própria população soviética.
E então eu acho que neste momento, enquanto estamos assistindo o que está acontecendo na Ucrânia, e os horrores dos crimes de guerra russos, é essencial que haja um esforço para coletar evidências, coletar depoimentos de testemunhas, para que tenhamos um registro histórico do que aconteceu para que possamos mais tarde levar os responsáveis à justiça.
BBC News Brasil – Além do próprio Holocausto, a descrição de um evento como genocídio é sempre controversa? Por que tudo parece ser tão discutível?
Hirsch – Acho que parte do motivo pelo qual o termo genocídio é tão carregado e significativo é porque se reconhecemos que um genocídio está ocorrendo, somos obrigados a agir. Somos moralmente obrigados a agir uma vez que reconhecemos que um país está tentando acabar com outra nação ou povo, que o mundo não pode simplesmente assistir a isso acontecer.
BBC News Brasil – Por algum tempo, o presidente americano Joe Biden se absteve de chamar a situação na Ucrânia de genocídio, o que ele fez na semana passada. Por que você acha que o presidente americano mudou de tom? O que muda na posição dos EUA em relação à guerra?
Hirsch – Não sei por que ele escolheu usar o termo agora — talvez ele tenha sido convencido pela clara evidência de incitação ao genocídio junto com a evidência de crimes terríveis contra civis. O uso do termo é importante porque dá clareza à situação.
Não se pode esperar que Zelensky negocie com um regime que está incitando o genocídio do povo ucraniano. Acho que isso sinaliza um forte apoio a Zelensky e envia uma forte mensagem de que Putin é um criminoso de guerra. Teremos que esperar e ver o que isso significa em termos de apoio dos EUA e até onde os EUA e os outros países do mundo estão dispostos a ir para conter Putin.
BBC News Brasil – É mais fácil para a comunidade internacional chamar algo de genocídio quando os países envolvidos na questão não têm armas nucleares?
Hirsch – Esta é uma pergunta chave. Todas as instituições de direito internacional que foram criadas após a Segunda Guerra Mundial, a convenção do genocídio, a convenção dos direitos humanos, os princípios de Nuremberg, foram criadas com o objetivo de “Nunca mais”. O mundo se uniu para apoiar a Ucrânia, mas parece que não é suficiente.
A situação com Putin é complicada, e talvez o mesmo valha para a China também (com a situação da minoria muçulmana Uigur). Quando estamos lidando com Estados que possuem armas nucleares, isso muda o cálculo. Existem sanções, os países estão enviando armas. Há todo tipo de envolvimento. Há muita preocupação internacional e é bom que haja tanta preocupação internacional, atenção, cooperação e ação. E é bom que as evidências estejam sendo coletadas e que se fale de julgamentos futuros.
Mas se as atrocidades continuarem, se os líderes russos estiverem incitando o genocídio, se os militares russos continuarem a cometer crimes de guerra e crimes contra a humanidade, algo mais pode ser feito? Se todos podemos concordar mais ou menos que esta é uma guerra ilegal e que os militares russos estão mirando civis, se todos os sinais apontam para genocídio, então quais são os próximos passos? Como é a intervenção? Tem que ser intervenção militar? Essas são questões sobre as quais todos os líderes mundiais devem pensar.
BBC News Brasil – Como vê o uso político cada vez mais frequente do termo genocídio e o quanto isso prejudica a força do próprio conceito?
Hirsch – Acho que precisamos reconhecer o fato de que, nos anos que se seguiram à Guerra Fria, o termo genocídio às vezes foi usado em busca de uma agenda política, foi usado de forma insincera. Isso é verdade para grande parte da linguagem do direito internacional.
O termo “crimes contra a humanidade” também tem sido usado para fins políticos. Isso não significa que devemos nos livrar desses termos. Precisamos fazer perguntas em cada caso. O que está acontecendo se encaixa na definição? Quando fazemos isso, temos que ser claros sobre a definição que estamos usando. É perigoso ampliar o termo genocídio para abranger todos os crimes de guerra. Mas também é perigoso restringi-lo de modo que abranja apenas algo na escala do Holocausto.
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