- Veronica Smink
- Da BBC News Mundo na Argentina
A vida de María Eva Duarte de Perón, mais conhecida como Evita, foi tão mítica que inspirou um dos musicais mais populares da história. Neste 26 de julho, quando se completam 70 anos de sua morte, a ex-primeira-dama permanece como a mulher mais famosa da Argentina.
Lendária não foi apenas a vida da mulher de Juan Domingo Perón, o fundador do movimento peronista. A morte de Evita também.
Dois milhões de pessoas foram às ruas para acompanhar a passagem de seu caixão. Seu velório durou duas semanas.
Mas não acabou aí. O corpo da ex-primeira-dama enfrentou uma odisseia até chegar ao seu atual local de descanso, no cemitério da Recoleta, bairro da elite de Buenos Aires.
A morte
A atriz que deixou sua carreira para se tornar “mãe dos pobres”, que cultivou tanto adoração quanto ódio entre os argentinos durante os tempos de seu marido no poder, morreu aos 33 anos em razão de um câncer de colo do útero.
O nível de fervor que ela gerou e a importância simbólica de Evita para o peronismo foi tal que, pouco antes de sua morte, o Congresso lhe concedeu o título de Chefe Espiritual da Nação.
Perón queria que sua segunda esposa fosse embalsamada e que seus restos mortais descansassem no Monumento ao Descamisado, um mausoléu faraônico que seria construído especialmente para Evita.
A conservação do corpo foi confiada ao prestigiado anatomista espanhol Pedro Ara, que começou a tarefa poucas horas depois da morte dela.
No entanto, transformar Evita em “uma estátua” – como Ara registrou em suas memórias – levaria muitos meses.
Enquanto se planejava a construção do gigantesco mausoléu, o médico fazia seu trabalho no segundo andar da Confederação Geral do Trabalho (CGT), principal central sindical da Argentina, para onde o corpo havia sido levado após o histórico funeral.
Ara completou sua tarefa um ano depois, mas o mausoléu ainda era apenas um projeto.
Perón cai
Os planos tomaram um rumo inesperado em 1955, três anos após a morte de Evita, quando Perón foi derrubado por um golpe militar durante a chamada Revolução Libertadora, que proibiu o peronismo por quase duas décadas.
O presidente deposto fugiu para o exílio, mas o corpo de Evita permaneceu na CGT, sob os cuidados de Ara.
O que aconteceu em seguida ficou em segredo por 16 anos, e só seria revelado décadas depois graças a investigações jornalísticas e livros como Santa Evita (1995), de Tomás Eloy Martínez, que acaba de ser transformado em série pela plataforma Star .
Um dos trabalhos que foram mais a fundo foi realizado por Miguel Bonasso, jornalista, político e ex-integrante da guerrilha peronista Montoneros. Também serviu de roteiro para o documentário Evita – La Tumba Sin Paz (Evita – O Túmulo Sem Paz, em tradução livre), realizado em 1997 pelo cineasta e atual ministro da Cultura da Argentina, Tristan Bauer.
Segundo Bonasso, os militares que derrubaram Perón queriam se certificar que o corpo que jazia na CGT era de fato o de Evita e não “uma boneca de cera”.
“Para a avergiuação, nomearam uma comissão de médicos notáveis, que extraíram um pedaço de tecido da orelha esquerda para exame histopatológico e cortaram um dedo para [conferir] a impressão digital”, diz o documentário sobre as duas primeiras mutilações sofridas pelo cadáver de Evita.
Depois de realizar os exames, que incluíram uma série de raios-X, foi confirmado que o corpo pertencia à ex-primeira-dama e que Ara conseguiu preservá-lo “com todos os seus órgãos internos”.
O medo de que os peronistas tentassem roubar o corpo para “usá-lo como uma tocha para incendiar o país” levou os militares a arquitetar um sinistro plano secreto: sequestrar o corpo de Evita e escondê-lo.
O general Pedro Eugenio Aramburu, que comandou a Argentina entre 1955 e 1958, confiou a operação ao tenente-coronel Carlos Moori Köenig, chefe do Serviço de Inteligência do Exército (SIE).
Segundo o historiador argentino Felipe Pigna, que escreveu dois livros sobre Eva Perón, a ordem era sequestrar o corpo e dar-lhe “um enterro cristão, que não poderia significar outra coisa senão um enterro clandestino”.
Mas Moori Köenig desobedeceu ao presidente. Seus homens levaram o corpo em uma caixa comum e sem identificação e tentaram escondê-lo em diferentes partes de Buenos Aires.
No entanto, seus movimentos foram seguidos por membros da nascente resistência peronista, que observavam o caminho furtivo do corpo e deixavam velas e flores – segundo Pigna, da planta Myosotis, mais conhecida como “não me esqueça” -, indicando que eles sabiam do paradeiro do corpo.
Em seu site elhistoriador.com.ar, Pigna contou como o crescente nervosismo dos sequestradores acabou causando uma tragédia, fato também registrado no livro Santa Evita.
Quando Moori Köenig colocou o corpo embalsamado aos cuidados pessoais de seu vice, major Eduardo Arandía, o caixão com o corpo de Evita foi escondido no sótão da casa que dividia com a esposa e a filha pequena.
“A paranoia impediu o major Arandía de dormir”, diz Pigna.
“Uma noite, ele ouviu barulhos em sua casa na avenida General Paz, 500, e, acreditando que era um comando peronista que vinha resgatar o corpo, pegou sua pistola 9 milímetros e esvaziou o pente em um vulto que se movia na escuridão: era sua esposa grávida, que caiu morta no local.”
Após esse episódio, Moori Köenig levou o corpo de Evita para uma pequena sala ao lado de seu escritório, onde o colocou na posição vertical, escondido dentro de uma caixa que originalmente continha material para transmissões de rádio.
Pigna e Bonasso concordam que o coronel tinha uma obsessão pelo cadáver de Evita, que também exibia “como troféu”.
Mas uma das pessoas a quem Moori Köenig mostrou o corpo, a jovem María Luisa Bemberg – que mais tarde se tornaria uma cineasta premiada – ficou horrorizada e revelou o segredo a um amigo de sua poderosa família que tinha um importante cargo militar.
Foi assim que o presidente Aramburu descobriu o segredo. Assim, ele substituiu Moori Köenig e nomeou em seu lugar o tenente-coronel Héctor Cabanillas, um duro antiperonista que havia organizado ataques frustrados contra o ex-presidente no exílio.
Cabanillas propôs retirar o corpo do país e em 1957 iniciou a Operação Transferência, também conhecida como Operação Evasão.
Ajuda do Vaticano
Entrevistado para o documentário Evita – La Tumba Sin Paz, Cabanillas, morto em 1998, explicou que sua decisão de levar o corpo para o exterior não se baseou apenas em informações que indicavam que “os comandos peronistas estavam preparados para resgatar o cadáver e usá-lo como uma bandeira política para seus propósitos”.
Ele também temia “pessoas do governo que pretendiam desaparecer com o corpo”, seja jogando-o no rio (uma prévia dos “voos da morte” da ditadura argentina da década de 1970) ou “explodindo o prédio” do Serviço de Inteligência do Exército para que os restos mortais sumissem.
Foi decidido transferir o corpo para a Itália, objetivo que, disse Cabanillas, foi alcançado “graças à intervenção ativa e muito especial da Igreja [Católica]”.
“Um representante de Sua Santidade [o papa] interveio diretamente para abrir o caminho”, disse o militar sobre a operação – tão secreta que nem o presidente sabia dos detalhes.
O representante do Vaticano comprou um túmulo em um cemitério comunal em Milão e ficou encarregado de processar os papéis para a chegada do corpo.
Em abril de 1957, o caixão de Eva Perón foi transferido de navio para Gênova, fazendo-o passar como o de uma viúva italiana que havia morrido na Argentina chamada María Maggi de Magistris.
Pigna conta que os dois homens encarregados da transferência tiveram um susto quando chegaram ao porto genovês, pois encontraram uma grande multidão esperando a chegada do navio e temiam que fossem adoradores de Evita (que havia sido muito popular durante suas visitas à Itália e à Espanha nos anos 1940).
Mas o grupo aguardava por partituras do compositor Giuseppe Verdi que viajavam no mesmo navio e haviam sido repatriadas do Brasil.
O caixão foi transferido para Milão, onde os restos mortais foram finalmente enterrados no cemitério Maggiore.
Evita passaria 14 anos enterrada sob uma lápide falsa. Para não levantar suspeitas, uma freira chamada Giuseppina foi até paga para levar flores ao túmulo.
“Tia Pina”, como era conhecida, “nunca soube que levava flores para Eva Perón”, diz Pigna, que a entrevistou.
‘Operação Devolução’
O destino dos restos mortais de Evita foi um mistério para os argentinos até 1970. Naquele ano, um grupo de jovens Montoneros sequestrou e assassinou o ex-presidente Aramburu, acusando-o, entre outras coisas, de ter feito o corpo desaparecer.
Em meio à crise e ao crescente poder da juventude peronista, o novo líder militar do país, general Alejandro Lanusse, propôs um “Grande Acordo Nacional” com Perón e – como sinal de boa vontade – ofereceu devolver ao ex-presidente exilado os restos mortais de sua segunda esposa.
Lanusse pediu a Cabanillas que organizasse a Operação Devolução.
No final de 1971, o corpo foi exumado e levado por estrada para a residência de Perón em Madrid.
De acordo com a investigação de Bonasso, o ex-presidente tirou fotos do corpo da ex-mulher no local, revelando 35 ferimentos diferentes. Mas essas imagens permaneceram ocultas.
Bonasso também afirma que, enquanto o corpo permanecia na residência de Perón na capital espanhola, sua jovem terceira esposa, María Estela Martínez – mais conhecida como Isabel -, realizava cerimônias secretas de “transmutação de poder”, de mãos dadas com o seu braço direito, José López Rega, conhecido como “o bruxo” pelas suas conexões com o esoterismo.
A intenção era receber “o carisma de Evita” (mas não há provas de que tal episódio tenha de fato ocorrido).
Após o retorno de Perón à Argentina, em 1973, e o triunfo nas eleições daquele ano, com Isabel como vice-presidente, cresceu a pressão para que os restos mortais de Evita fossem repatriados.
Mas isso só aconteceu depois da morte do fundador do peronismo, em 1974.
Em um macabro “olho por olho”, o que finalmente fez o corpo embalsamado de Eva Perón retornar à Argentina foi o roubo de outro cadáver: Aramburu, o homem que havia encomendado o sequestro da ex-primeira-dama.
A mesma guerrilha que havia executado Aramburu roubou seu corpo do cemitério da Recoleta e exigiu como resgate que o novo governo de Isabel Perón trouxesse de volta a “companheira Evita”.
Isso aconteceu e, em novembro de 1974, o corpo da ex-primeira dama retornou definitivamente ao seu país, onde foi mumificado, restaurado e exibido junto ao de seu marido – ele, em caixão fechado – na cripta funerária da Quinta de Olivos, a residência presidencial.
A ideia de Isabel era criar um grande mausoléu – o Altar da Pátria – para abrigar os restos mortais de ambos e de outros heróis nacionais, mas esse projeto também foi interrompido.
Com menos de dois anos de governo, os militares a derrubaram e voltaram ao poder na Argentina, dando origem ao regime mais sangrento do país.
O novo governo entregou os restos mortais de Evita aos Duarte, a família da ex-primeira-dama, que a enterrou sob rígidas normas de segurança no mausoléu da família na Recoleta, onde já estavam sua mãe e seu irmão Juan.
Foi assim que a “mãe dos pobres” foi parar em uma local no cemitério mais caro e exclusivo de Buenos Aires e, ainda hoje, 70 anos depois de sua morte, segue como o mais visitado.
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