Uma semana de decisões controversas como poucas na história da Suprema Corte dos Estados Unidos.
Como todo mês de junho, antes do recesso de verão, o mais alto tribunal constitucional do país divulga suas opiniões sobre os casos mais importantes que analisou ao longo do ano: sentenças com amplas implicações políticas, sociais e econômicas que podem impactar a vida de milhões de pessoas.
Este mês não foi exceção e nos últimos três dias a Suprema Corte deu seu veredicto em três casos que geraram grandes expectativas, tensões e debates.
Nesta sexta-feira (24/6), como o vazamento de um parecer anterior havia sugerido em maio, o tribunal decidiu permitir que o aborto fosse reconhecido como um direito constitucional.
Um dia antes (23/6), em um país que vive uma onda de tiroteios em massa, a Suprema Corte resolveu limitar as restrições que os Estados podem impor aos seus habitantes para portar armas de fogo em público.
E na terça-feira (21/6), em uma sociedade que se orgulha de seu secularismo desde sua fundação, o tribunal decidiu encurtar a separação entre Igreja e Estado ao permitir que fundos públicos sejam usados para manter escolas religiosas.
São decisões que, individualmente e em conjunto, têm suscitado inúmeros questionamentos entre acadêmicos, historiadores e estudiosos da Suprema Corte. Eles apontam que essas posições refletem uma guinada para um “extremo conservadorismo” e uma “politização” de uma das instituições mais respeitadas há anos nos Estados Unidos.
“É um caminho extremo e perigoso que a Corte agora está nos levando”, disse o presidente Joe Biden na sexta-feira (24/6).
“Com esta decisão (sobre o aborto), uma maioria conservadora da Suprema Corte mostra o quanto ela é extrema. A que distância estão da maioria deste país”, acrescentou.
Um tribunal “mais político”
Os veredictos desta semana lançaram luz mais uma vez sobre a independência do tribunal e sua proximidade com certas posições políticas.
“A percepção não é de um tribunal que é metade político, metade legal, mas todo político”, diz Keith Bybee, vice-reitor da faculdade de direito da Universidade de Syracuse, no Estado de Nova York (EUA), à BBC.
Um estudo de mais de uma década publicado no início deste mês na PNAS, a prestigiosa revista da Academia de Ciências dos Estados Unidos, indicou que a corte nos últimos dois anos “tornou-se muito mais conservadora do que o público americano”.
“A distância entre a Suprema Corte e o público cresceu desde 2020, com o tribunal passando de uma posição bastante próxima do americano médio para uma posição mais conservadora do que a maioria dos americanos”, diz o estudo.
O ano, segundo a publicação, não é aleatório: foi quando a composição da Suprema Corte mudou radicalmente sob o mandato de Donald Trump, que governou o país de 2017 a 2021.
O então presidente teve a extraordinária oportunidade de nomear três juízes durante seu governo, o que transformou radicalmente o equilíbrio entre conservadores e liberais que havia até então.
Trump fez questão de nomear juízes com visões conservadoras e religiosas, a maioria deles da Sociedade Federalista, uma organização que defende uma leitura literal da Constituição.
Assim, solidificou-se uma “supermaioria” de seis juízes conservadores contra três de posições mais liberais.
Um estudo da Universidade de Chicago, em Illinois (EUA), mostrou que as decisões judiciais desde então também se tornaram mais propensas a favorecer conceitos e temas religiosos sobre o que antes se consideravam liberdades individuais.
Embora Trump tenha modificado a composição do tribunal, juristas apontam que o movimento da Suprema Corte em direção ao conservadorismo foi um processo que se consolidou ao longo dos anos: dos 18 juízes confirmados de 1969 até hoje, 14 foram indicados por presidentes republicanos e apenas quatro por democratas.
No entanto, especialistas legais apontam que os juízes conservadores de hoje não são nada parecidos com os de décadas passadas: na verdade, foram cinco juízes republicanos que se juntaram a dois democratas na legalização do aborto em 1973 Roe x Wade, o precedente que reconheceu o aborto como um direito constitucional.
Segundo o estudo da PNAS, o tribunal “agora está mais parecido com o Partido Republicano em sua posição ideológica sobre questões-chave”.
E embora durante 2021 a Suprema Corte não tenha tomado decisões muito controversas, os inúmeros casos sobre os quais se pronunciou nesta semana chamaram a atenção para uma aparente velocidade para mudar algumas leis que já faziam parte da sociedade americana.
“A coisa mais surpreendente sobre essas decisões é a rapidez com que os conservadores da Suprema Corte estão se movendo para promover mudanças amplas e controversas”, diz a professora de Direito Constitucional Maya Sen no site da Universidade de Harvard, em Massachusetts (EUA).
Entenda as três decisões polêmicas anunciadas nesta semana.
A decisão desta sexta-feira (24/6) da Suprema Corte anulou uma tradição de quase 50 anos em que o aborto era considerado um direito constitucional nos Estados Unidos.
A maioria conservadora concluiu que “o poder de regular o aborto” deve ser devolvido “ao povo e seus representantes eleitos”, segundo o texto elaborado pelo juiz Samuel Alito.
A origem da sentença remonta a um caso específico, o de Dobbs contra a Jackson Women’s Health Organization, em que foi contestada uma lei do Mississippi que proíbe o aborto após 15 semanas, inclusive em casos de estupro.
Lynn Fitch, procuradora-geral do Mississippi, inicialmente pediu à Suprema Corte que defendesse a lei de seu Estado, mas depois deu um passo adiante, pedindo que a histórica decisão Roe x Wade de 1973 fosse anulada.
Dos juízes que votaram pela revogação do direito ao aborto, três foram nomeados por Trump e o restante por outros presidentes republicanos.
Os três magistrados progressistas que se manifestaram contra argumentaram que “o tribunal muda de curso hoje por um motivo e apenas um motivo: porque a composição deste tribunal mudou”.
Eles afirmaram sentir “tristeza por esta corte, mas mais ainda pelos milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma proteção constitucional fundamental”.
2- Maior acesso a armas
Na quinta-feira (23/6), a Suprema Corte anulou, por seis votos a favor e três contra, uma lei de mais de cem anos que restringia o porte de armas em vias públicas no Estado de Nova York.
Até agora, portar uma arma de fogo em público exigia uma licença especial e para obtê-la era necessário apresentar uma causa justificada (semelhante ao que acontece em outros Estados, como Califórnia, Havaí, Maryland, Massachusetts, Nova Jersey e Rhode Island).
Representando a maioria que apoiou a decisão da Suprema Corte, o juiz Clarence Thomas argumentou que a Constituição protege “o direito de um indivíduo de portar uma arma de fogo para autodefesa fora de casa”.
Assim, considerou que exigir que os cidadãos demonstrem uma causa justificada para exercê-lo em Nova York viola a Segunda Emenda da Carta Magna.
Essa emenda, redigida em 1791 e cuja interpretação é hoje objeto de debate, inclui “o direito do povo de possuir e portar armas”, embora diga que é feito para que façam parte de uma “milícia bem regulamentada”.
Espera-se que a decisão da Suprema Corte seja usada para derrubar outras leis restritivas de posse de armas em todo o país, o que afetaria um quarto dos estimados 330 milhões de americanos.
Nos Estados Unidos, existem mais de 390 milhões de armas registradas em nomes civis.
Somente em 2020, mais de 45 mil americanos morreram por ferimentos relacionados a armas de fogo, incluindo homicídios e suicídios.
3 – Dinheiro para escolas religiosas
Na terça-feira (21/6), a Suprema Corte decidiu que o Estado do Maine, no leste dos EUA, não poderia impedir que fundos públicos fossem usados por escolas que promovam ensino religioso.
A votação, novamente, foi de seis votos a favor e três contra.
Segundo a opinião da maioria dos juízes, o Maine discriminava as escolas religiosas por seu ensino da fé.
“A exigência do Maine (…) viola a cláusula de livre exercício da Primeira Emenda (que reconhece a liberdade religiosa)”, escreveu o juiz John Roberts.
Embora tenha argumentado que a decisão desta terça-feira está em consonância com outras medidas recentes da Corte para ampliar a liberdade religiosa, a juíza progressista Sonia Sotomayor acusou a maioria conservadora de derrubar “o muro de separação entre a Igreja e o Estado que os artífices da Constituição lutaram para construir”.
“Como resultado, em apenas alguns anos, o tribunal mudou a doutrina constitucional, passando de uma regra que permite que os Estados se recusem a financiar organizações religiosas para uma que exige que, em muitas circunstâncias, subsidiem a doutrinação religiosa com dinheiro dos contribuintes”, assinalou.
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