- Author, Merlyn Thomas*
- Role, BBC Verify
A BBC Verify (unidade de checagem da BBC) analisa o que o número de mortos em Gaza revela sobre o conflito.
Dados do Ministério da Saúde em Gaza, administrado pelo Hamas, mostram que em média quase 300 pessoas foram mortas todos os dias desde o início do conflito, excluindo o cessar-fogo de sete dias. O diretor regional de emergência da Organização Mundial da Saúde (OMS), Richard Brennan, diz considerar esses números confiáveis.
Contar as vítimas é um desafio em qualquer zona de guerra, e os médicos em Gaza dizem que o número de mortos provavelmente é maior do que o registrado, uma vez que não inclui corpos sob os escombros de edifícios bombardeados e aqueles que não foram levados para hospitais.
A BBC Verify analisou detalhadamente os números, como eles se comparam com os de outros conflitos e o impacto na população jovem de Gaza.
Grande número de mortos
O ritmo de mortalidade nessa guerra tem sido “excepcionalmente elevado”, diz o professor Michael Spagat, especializado em análise de contagem de vítimas em conflitos em todo o mundo, como a guerra do Iraque em 2003, o conflito civil na Colômbia, as guerras na República Democrática do Congo, bem como conflitos anteriores entre Israel e Gaza.
“Dentro da série de guerras em Gaza desde 2008, a atual não tem precedentes tanto em número de pessoas mortas como em matança indiscriminada”, afirma Spagat.
O número de 20 mil mortos representa quase 1% dos 2,2 milhões de habitantes de Gaza.
A BBC conversou com especialistas em questões militares que apontaram que a grande variedade de bombas usadas por Israel — algumas de cerca de 45 kg e outras de até 900 kg — contribuíram diretamente para o grande número de mortes no conflito.
Estar perto do impacto de grandes bombas é como “surfar na Terra enquanto uma onda de choque liquefaz momentaneamente o solo”, explica Marc Garlasco, ex-analista sênior de inteligência do Pentágono e ex-investigador de crimes de guerra da ONU, que já conversou com vítimas e testemunhas dessas bombas.
O que as torna ainda mais devastadoras é que Gaza tem uma densidade populacional muito elevada. O território tem apenas 41 km de comprimento e 10 km de largura. Em média, antes do conflito, havia mais de 5,7 mil pessoas por km² em Gaza — o que é inferior à média da cidade de São Paulo, mas essa cifra sobe para 9 mil na Cidade de Gaza.
Israel iniciou a sua campanha militar em Gaza após os ataques do Hamas, nos quais 1,2 mil pessoas foram mortas, a maioria delas civis. Três meses depois, o país enfrenta pressão crescente devido ao número de vítimas civis em Gaza.
Nos conflitos mundiais entre 2011 e 2021, quando houve uso de explosivos em áreas povoadas, em média 90% das vítimas mortais eram civis, de acordo com o grupo de pesquisa Action on Armed Violence.
Segundo relatórios da inteligência dos EUA aos quais a rede americana CNN teve acesso, Israel lançou mais de 29 mil bombas sobre Gaza desde o início da guerra até meados de dezembro, sendo 40% a 45% delas não guiadas.
Essas bombas não guiadas “podem errar o alvo em até 30 metros, que é a diferença entre atingir um quartel-general do Hamas e um apartamento repleto de civis”, explica Garlasco, que trabalhou em três conflitos anteriores em Gaza e que é agora conselheiro da organização de paz holandesa PAX.
As Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) afirmam que tomam medidas de precaução para evitar danos à população civil.
Segundo as IDF, estas medidas incluem avisos antes dos bombardeios, nos casos em que é possível fazê-lo. Israel também insiste que o número de civis mortos no conflito tem sido melhor do que em outros conflitos internacionais.
As IDF afirmam que “abortarão os ataques quando for vista presença civil inesperada”.
“Escolhemos a munição certa para cada alvo, para que não sejam causados danos desnecessários”, diz a força israelense.
Israel também afirma que o Hamas utiliza a população civil de Gaza como escudo humano.
Quantos civis morreram?
As mulheres e as crianças representam cerca de 70% dos mortos em Gaza no atual conflito, segundo o Ministério da Saúde gerido pelo Hamas.
Contudo, os números do Hamas não diferenciam civis do sexo masculino e combatentes.
Uma análise anterior feita pelo Gabinete de Comunicação Social do governo do Hamas e divulgada em 19 de dezembro indicava que dos até então 19.667 mortos registrados, mais de 8 mil eram crianças e 6.200 mulheres.
A contagem incluiu também entre os mortos 310 profissionais de saúde, 35 funcionários da defesa civil e 97 jornalistas — todos civis.
A guerra está tendo um impacto particularmente devastador nas crianças de Gaza. Quase metade da população do território tem menos de 18 anos, segundo dados divulgados em 2022 pelo Ministério da Saúde.
Mais de 52 mil pessoas foram feridas no conflito até agora, segundo o ministério.
Embora não existam números atualizados de crianças feridas, essa cifra era de 8.067 até 3 de novembro.
Gaza é hoje o “lugar mais perigoso do mundo para ser criança”, segundo a agência da ONU dedicada à infância, a Unicef.
“Bairros inteiros, onde as crianças costumavam brincar e ir à escola, foram transformados em pilhas de escombros, sem vida”, diz Adele Khodr, diretora regional da Unicef para o Oriente Médio e Norte da África.
Como a situação em Gaza se compara a outros conflitos?
Cada conflito é único nas suas características, mas os especialistas com quem a BBC conversou concordam que a taxa de mortes em Gaza é significativamente maior do que em outros conflitos recentes.
“O que estamos vendo em termos de mortes de civis já ultrapassou em muito as taxas de qualquer conflito que documentamos”, afirma Emily Tripp, diretora da Airwars, uma organização que monitora mortes de civis em guerras e conflitos desde 2014.
Ex-analista de inteligência do Pentágono, Marc Garlasco afirma: “Para encontrar uma densidade semelhante de explosivos usados em uma pequena área povoada, talvez tenhamos que voltar à guerra do Vietnã para encontrar um exemplo comparável — como os ataques a bombas no Natal de 1972, quando cerca de 20 mil toneladas de bombas foram lançadas em Hanói durante a Operação Linebacker II.”
Estima-se que 1.600 civis vietnamitas tenham sido mortos nesse atentado.
Já na ofensiva de quatro meses para expulsar o Estado Islâmico da cidade síria de Raqqa em 2017, os ataques aéreos e de artilharia da coligação liderada pelos EUA mataram menos de 20 civis por dia, em média, segundo a Anistia Internacional.
Não se sabe ao certo quantos civis viviam ali na época, mas funcionários da ONU estimaram que havia entre 50 mil e 100 mil. Além disso, mais de 160 mil civis teriam fugido das suas casas e se deslocaram internamente no país.
E uma investigação da agência de notícias Associated Press sugeriu que entre 9 mil e 11 mil civis foram mortos na batalha de nove meses pela cidade iraquiana de Mosul entre as forças iraquianas apoiadas pelos EUA e o Estado Islâmico, disputa que terminou em 2017.
Isto equivale a uma média de menos de 40 mortes de civis por dia.
Mosul tinha uma população estimada em menos de 2 milhões de pessoas quando o Estado Islâmico capturou a cidade, em 2014.
Já durante os quase dois anos de guerra na Ucrânia, a ONU estima que pelo menos 10 mil civis foram mortos.
No entanto, a missão de monitoramento de direitos humanos da ONU alertou que o número real pode ser significativamente maior, dados os obstáculos e o tempo necessário para a verificação.
E comparar as taxas de vítimas em diferentes conflitos é difícil, em parte porque são utilizadas metodologias variadas para estimar as mortes.
Quantos combatentes do Hamas foram mortos?
Israel declarou que o seu objetivo é destruir o Hamas, mas não está claro quantos membros do grupo palestino foram mortos.
Autoridades já falaram em “milhares”.
O Hamas é considerado uma organização terrorista pelos governos de Israel, do Reino Unido e de alguns outros países.
Mas quando questionado diretamente, as Forças Armadas israelenses disseram que “não têm um número exato de terroristas do Hamas mortos”.
Segundo a agência de notícias AFP, funcionários israelenses de alto escalão sugeriram que Israel matou dois civis palestinos para cada combatente do Hamas.
Essa proporção foi descrita pelo porta-voz das Forças Armadas, Jonathan Conricus, como “tremendamente positiva”.
A BBC não conseguiu estabelecer um método claro de verificação do número de combatentes mortos.
O professor Michael Spagat diz que “não ficaria surpreso” se cerca de 80% dos mortos fossem civis.
Não existem “números confiáveis” da razão entre civis e combatentes mortos em Gaza, dizem Hamit Dardagan e John Sloboda, da Iraq Body Count, uma organização com experiência na contagem e análise de mortes em conflitos no Iraque.
*Becky Dale contribuiu para esta reportagem.
Fonte: BBC
Você precisa fazer login para comentar.