- André Bernardo
- Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
O doutorando em Veterinária Gustavo Cadore, de 31 anos, chegou à boate Kiss por volta das duas e meia da manhã. Embora já tivesse ido lá outras vezes, nunca achou a casa tão cheia. Naquela noite, a festa ‘Agromerados’ reunia estudantes de seis cursos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Gustavo estava em frente ao palco quando, às três e dezessete, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, de 32 anos, acendeu um artefato pirotécnico. Em poucos segundos, uma fagulha alcançou o revestimento de poliuretano do teto do palco. As chamas logo se alastraram. Ao ouvir os primeiros gritos de “É fogo!”, Gustavo saiu correndo. Foi quando ouviu um estrondo e, em seguida, as luzes se apagaram. No empurra-empurra, caiu e foi pisoteado. “Não posso morrer aqui”, pensou.
Com dificuldade, o rapaz conseguiu se levantar. Por três vezes, tentou encontrar uma saída, mas não conseguiu. “Preciso me manter calmo”, repetia, baixinho. O longo caminho até a rua incluía, entre outros obstáculos, grades de ferro usadas na organização das filas.
Quando menos esperava, Gustavo avistou uma fresta de luz vinda do lado de fora. Cambaleante, cruzou a entrada do número 1.925 da rua dos Andradas, no Centro de Santa Maria (RS). Foi naquele endereço que, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, 242 pessoas perderam a vida — 90% delas tinham entre 18 e 30 anos.
“Era impossível respirar. Parecia que respirava fogo”, relata Gustavo, um dos 636 sobreviventes da tragédia. “Até hoje, não me esqueço dos gritos de desespero. Nunca vão sair da minha cabeça”.
‘Cara, tua pele está caindo!’
Do lado de fora da boate, Gustavo sofreu um apagão. Acordou minutos depois, sentado no meio-fio.
Na rua, voluntários participavam do resgate das vítimas. Alguns deles, munidos de machados cedidos pelo Corpo de Bombeiros, tentavam improvisar uma “saída de emergência” na fachada do prédio.
Ainda desnorteado, Gustavo saiu vagando pelas ruas do bairro. De seus braços, saía uma fumaça preta. “Cara, tua pele está caindo!”, avisou um desconhecido. “Não, cara. Isso aqui é a minha camisa. Deve ter rasgado no tumulto”, explicou Gustavo. “Não, cara!”, insistiu o sujeito. “Tu tá sem camisa!”.
Foi quando Gustavo se deu conta, próximo a um poste de luz, que a pele de seu braço estava presa apenas pelo pulso. O universitário foi levado de ambulância para o Hospital da Caridade, em Santa Maria. E, de lá, transferido em um helicóptero para o Hospital de Pronto-Socorro, em Porto Alegre. Permaneceu em coma por nove dias. Quando acordou, no dia 5 de fevereiro, descobriu que teve 40% do corpo queimado.
A temperatura na boate, segundo estimativas, chegou a 300 graus na madrugada de 27 de janeiro de 2013.
‘Preciso devolver esses meninos e meninas para as suas mães’
Quando a enfermeira Liliane Duarte, de 48 anos, chegou à boate Kiss, por volta das quatro e quarenta e cinco da manhã, Gustavo Cadore e os demais sobreviventes já tinham sido socorridos.
Capitã do Hospital da Brigada Militar de Santa Maria, foi uma das primeiras pessoas a entrar no que sobrou da boate, enquanto os bombeiros ainda faziam o rescaldo do incêndio. Sua garganta queimava e seus olhos ardiam. Muitos policiais, ao se depararem com a pilha de corpos no hall de entrada, caíam no choro.
Àquela altura, os gritos de socorro ouvidos por Gustavo Cadore já tinham silenciado. Em seu lugar, o barulho incessante de dezenas de celulares. Em um deles, o visor trazia, ao lado da palavra ‘Mãe’, 134 ligações não atendidas… “Preciso devolver esses meninos e meninas para as suas mães”, pensou Liliane.
Mais da metade dos mortos estavam nos banheiros — o único local da boate que permaneceu com uma luz acesa durante a tragédia. Muitos confundiram o alerta luminoso com “Saída de Emergência”.
‘Sabia que era ela, mas tinha esperança de que não fosse…’
Enquanto os sobreviventes eram levados para um dos sete hospitais de Santa Maria, as vítimas eram transportadas em caminhões para o Centro Desportivo Municipal, o Farrezão. Por falta de vagas no Instituto Médico Legal (IML), o ginásio foi transformado em necrotério.
Sob uma lona preta, os corpos dos rapazes foram colocados à direita da porta da entrada e os das mulheres, à esquerda. Com panos umedecidos, voluntários limpavam o rosto coberto de fuligem das vítimas para facilitar o reconhecimento das famílias. Sobre os corpos, objetos pessoais, como chaves, documentos e batons, foram guardados em sacos plásticos.
Algumas famílias, porém, se recusavam a admitir que seus filhos e filhas tinham morrido na tragédia. “Não é ela!”, insistia uma mãe, olhando pela terceira vez. Liliane perguntou se sua filha tinha alguma tatuagem. “Sim, um coração, com o nome dela”, respondeu. Quando a enfermeira puxou a lona que cobria a perna da jovem, a mulher teve uma crise de choro: “Eu sabia que era ela, mas tinha esperança de que não fosse…”.
Perto dali, um pai, inconsolável, conversava com a filha morta: “Te avisei tanto para tomar cuidado. Olha o que aconteceu. Você está aí agora”.
A prefeitura de Santa Maria liberou o Farrezão para a realização de um velório coletivo. Mas, por medida de segurança, os corpos deveriam ser velados em caixões lacrados. Motivo: a toxicidade da fumaça inalada pelas vítimas.
Ao lado de um caixão, uma mãe cantarolava para o filho sua música favorita: “Me desespero a procurar / Alguma forma de lhe falar / Como é grande o meu amor por você…”.
‘Não estava do lado do meu filho no momento em que ele mais precisou de mim’
Gustavo e Liliane foram duas das mais de 100 pessoas que Daniela Arbex entrevistou, entre sobreviventes da tragédia, familiares de vítimas, equipes de resgate e profissionais da saúde, para o livro Todo Dia A Mesma Noite — A História Não Contada da Boate Kiss (Editora Intrínseca). Desde as primeiras apurações até o ponto final, a jornalista levou cerca de dois anos e meio para concluir o trabalho. Neste período, emagreceu dez quilos, perdeu metade dos cabelos e começou a fazer terapia.
“Qualquer um de nós poderia estar dentro daquela boate naquela noite. Ou, então, poderia ter perdido alguém dentro daquela boate naquela noite”, admite. “Uma das frases que mais ouvi durante os depoimentos foi: ‘Não estava do lado do meu filho no momento em que ele mais precisou de mim’. Isso me impactou”.
O incêndio da Kiss entrou para a história como o segundo maior do Brasil em número de mortos. Só perde para o do Gran Circo Norte-Americano, no dia 17 de dezembro de 1961, em Niterói (RJ): 503 vítimas fatais.
‘Produzir memória para evitar o esquecimento’
No ano em que o incêndio da boate Kiss completa uma década, o livro de Daniela Arbex acaba de ganhar uma versão para o streaming, escrita por Gustavo Lipsztein e dirigida por Júlia Rezende. A minissérie ficcional Todo Dia A Mesma Noite tem cinco episódios e acaba de estrear no catálogo da Netflix.
O recorte escolhido pela cineasta é o de mostrar a luta das famílias que, além de perderem seus filhos e filhas no incêndio, ainda tiveram que enfrentar o Ministério Público. Quatro pais foram processados por calúnia e difamação. “A pergunta que me fiz ao receber o convite foi: por que contar essa história?”, explica a diretora. “Queremos produzir memória para evitar o esquecimento. Dar voz àqueles que viveram uma tragédia que, dez anos depois, segue sem resposta da Justiça brasileira”.
Na minissérie da Netflix, Gustavo virou Fernando (Nicolas Vargas) e Liliane, Idalina (Gabriela Munhoz).
‘Querem que a história de seus filhos não seja apagada’
O município de Santa Maria, que tem hoje cerca de 296 mil habitantes, fica a 290 quilômetros de Porto Alegre. A quinta maior cidade do Rio Grande do Sul é conhecida como “a cidade dos estudantes” por causa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), fundada em dezembro de 1960.
Gaúcho de Passo Fundo, Marcelo Canellas cresceu em Santa Maria e se formou em Jornalismo pela UFSM. Foi amigo de infância de Mauro Hoffmann, um dos sócios da boate e réu do processo. Os dois estudaram juntos da primeira à oitava série. Como repórter da TV Globo, Canellas viajou incontáveis vezes para Santa Maria e fez dezenas de reportagens sobre o caso.
“O que mais me surpreendeu foi a resiliência das famílias. Em geral, as pessoas desistem; eles, não. Não baixam a guarda, vão até o fim. Querem que seus filhos não sejam esquecidos, que a história deles não seja apagada”.
‘A impunidade é um convite para novas tragédias’
Diretor da série documental Boate Kiss — A Tragédia de Santa Maria, disponível no Globoplay a partir do dia 26, Canellas refaz toda a cronologia do incêndio, desde a inauguração da boate, em julho de 2009, até a anulação do julgamento, em agosto de 2022.
Ao todo, realizou cerca de 30 entrevistas e totalizou 1,3 mil horas de material. Entre outros entrevistados, ouviu os três ex-presidentes da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM): Adherbal Ferreira, o pai da Jeniffer, que teve a ideia de fundar a associação na missa de sétimo dia da filha; Sérgio Silva, o pai do Augusto, que se mudou de Santa Maria depois de sofrer um infarto e colocar duas pontes de safena, e Flávio José da Silva, o pai da Andrielle, um dos processados por representantes do MP.
Andrielle Righi da Silva comemorava seus 22 anos na Kiss. Outras 18 pessoas faziam aniversário naquele dia.
O atual presidente da AVTSM é o psicólogo Gabriel Barros, de 28 anos, que mora a poucos metros do local da tragédia. Por muito tempo, se culpou por ter sobrevivido e seus amigos, não. Levou mais de oito anos até conseguir falar sobre o que aconteceu.
“A dor que mais perdura é a dor da impunidade. A dor de saber que tudo aconteceu e não temos a responsabilização necessária para dar uma garantia mínima de que não vai acontecer de novo”, observa. “A palavra superação não existe em nosso dicionário enquanto movimento coletivo. Não temos como ‘superar’ nossas perdas e nossos lutos. Precisamos resgatar a memória para termos chances de construir um futuro digno, para que os crimes cometidos não aconteçam novamente em nenhum lugar”.
E alerta: “A impunidade é um convite para novas tragédias”.
‘Me senti como um prisioneiro do meu próprio corpo’
O técnico em prótese dentária Delvani Rosso, de 30 anos, também estava na Kiss há exatos dez anos. Foi salvo das chamas pelo irmão, Jovani. Detalhe: na hora do resgate, Jovani não reconheceu Delvani. Só veio a saber da coincidência quatro dias depois.
Com a camisa amarrada no rosto para impedir a inalação de fumaça, Jovani resgatou outros sobreviventes. Puxava os homens pelo cinto e as meninas pelo cabelo. Se puxasse pelo braço, arrancaria a pele deles. “Inalei tanta fumaça que perdi as forças. Antes de desmaiar, pedi perdão a Deus. Por milagre, acordei na calçada, minutos depois. Me olhavam com pavor. Como se estivessem vendo um monstro. Ou um fantasma”, lembra.
“No hospital, me senti como um prisioneiro do meu próprio corpo. Para me comunicar com as enfermeiras, precisava piscar os olhos”, relata.
Pelo menos outros cinco rapazes não tiveram a mesma sorte de Jovani Rosso. Eles também retornaram à boate para buscar sobreviventes, mas não conseguiram sair de lá com vida.
‘Só teremos descanso quando a Justiça for feita’
Em homenagem aos mortos, o coletivo Kiss: Que Não Se Repita, fundado em 2014, criou a exposição Tempo Perdido. Com recursos de Inteligência Artificial, o projeto simula como estariam hoje, uma década depois, oito vítimas da Boate Kiss. A iniciativa é do produtor editorial André Polga, o fundador do coletivo.
André não estava na Kiss na madrugada de 27 de janeiro de 2013, mas perdeu duas amigas no incêndio: as estudantes Allana Willers, de 18 anos, e Luana Facco Ferreira, de 19.
“242 não é só um número. São 242 famílias que precisam descansar. Ninguém conseguiu viver seu luto. Tanto pessoal quanto judicialmente, tivemos que nos defender. A sociedade marginaliza nossa luta. Merecemos descanso. E só teremos descanso quando a Justiça finalmente for feita”, afirma Polga.
Por enquanto, não há previsão de quando a tão desejada justiça mencionada por sobreviventes será feita. A investigação policial durou 55 dias e ouviu 800 testemunhas. Entre outras irregularidades, apontou excesso de lotação, extintores quebrados e falta de treinamento. Na confusão, os seguranças fecharam a única porta de acesso à boate e, sem saber do que estava acontecendo perto do palco, não deixavam os frequentadores saírem sem pagar a comanda.
Por fim, o inquérito policial responsabilizou 28 pessoas. Dessas, só quatro foram denunciadas pelo MP: os sócios da boate, Elissandro Spohr, de 39 anos, e Mauro Hoffmann, de 57; o músico Marcelo de Jesus, 42, e o produtor de palco Luciano Bonilha, 45, todos por homicídio doloso.
Os quatro réus foram levados a júri popular em dezembro de 2021. Depois de 10 dias de julgamento, foram condenados a penas que variavam de 18 a 22 anos de prisão. Em agosto de 2022, porém, os advogados de defesa recorreram e conseguiram anular a sentença. Não há data para novo julgamento.
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