No passado, os indígenas Xokleng, de Santa Catarina, foram duramente combatidos e quase dizimados por “bugreiros”, como eram conhecidos no Sul do Brasil milicianos contratados para atacar indígenas (ou “bugres”, termo racista que vigorava na região naquela época).
Décadas depois, o caso dos Xokleng é o cerne de um dos julgamentos mais importantes da história recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que definirá o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil e será retomado nesta quarta-feira (7/6),
A ação é alvo de protestos nos últimos anos por representar o marco temporal das terras indígenas no Brasil. Essa tese aponta que a demarcação de terras indígenas só pode ocorrer em comunidades que já ocupavam esses locais quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988.
Em 30 de maio, o legislativo avançou sobre o tema e a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que estabelece a tese antes de o STF concluir a sua análise do caso, que já estava prevista para essa quarta.
No Congresso, o estabelecimento do marco temporal é uma antiga demanda da bancada ruralista e do Centrão, bloco informal de partidos sem linha ideológica clara, mas que compartilha valores conservadores.
Foram 283 votos favoráveis ao projeto e 155 contrários. Posteriormente, o caso foi encaminhado para o Senado.
A análise pelo plenário do Supremo foi iniciada em 2021. Até agora votaram os ministros Nunes Marques, que foi favorável ao marco temporal; e Edson Fachin, contrário. A pauta foi interrompida por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
No STF, a pauta tem repercussão geral, o que significa que a decisão para este caso específico — relativo à disputa por terras em Santa Catarina — valeria para outros parecidos.
Apesar de o processo ter voltado à pauta de julgamento, ainda é possível que novos pedidos de vista posterguem uma decisão.
O caso mobiliza as atenções de grupos ruralistas e terá repercussão para dezenas de outros povos no país.
O marco temporal é considerado uma ameaça pelo movimento indígena sob o argumento de que pode paralisar novas demarcações e colocar em xeque a segurança jurídica daquelas que já foram homologadas.
Mas afinal, quem são os povos indígenas que estão no cerne desse caso?
Os Xokleng
Um relato do livro Os Índios Xokleng – Memória Visual, publicado em 1997 pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos, ilustra os perigos enfrentados pelos Xokleng décadas atrás.
As tropas de “bugreiros”, narra a obra, se deslocavam pelas trilhas à noite, em silêncio. Os homens, entre 8 e 15, evitavam até fumar para não chamar a atenção.
Ao localizar um acampamento, atacavam de surpresa.
“Primeiro, disparavam-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão”, relatou Ireno Pinheiro, que era um “bugreiro”, sobre as expedições que realizava no interior de Santa Catarina até os anos 1930 para exterminar indígenas a mando de autoridades locais.
“O corpo é que nem bananeira, corta macio”, prossegue o bugreiro na descrição dos ataques. “Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança”, completou.
Poucas etnias foram tão combatidas pelos “bugreiros” quanto os Xokleng, de Santa Catarina.
Em entrevista à BBC News Brasil em 2021, Brasílio Pripra, de 63 anos e uma das principais lideranças Xokleng, chorou ao falar de um massacre ocorrido em 1904 contra seus antepassados.
“As crianças foram jogadas para cima e espetadas com punhal. Naquele dia, 244 indígenas foram covardemente mortos pelo Estado”, afirmou.
O episódio foi descrito no jornal já extinto Novidades, de Blumenau, citado em artigo do jurista Flamariom Santos Schieffelbein na revista eletrônica argentina Persona, em 2009.
“Os inimigos não pouparam vida nenhuma; depois de terem iniciado a sua obra com balas, a finalizaram com facas. Nem se comoveram com os gemidos e gritos das crianças que estavam agarradas ao corpo prostrado das mães. Foi tudo massacrado”, relata o jornal.
A presença dos Xokleng era vista como um entrave à colonização europeia da região. Eram comuns relatos de furtos ou ataques de indígenas a trabalhadores que avançavam sobre seu território tradicional.
Os Xokleng perderam dois terços de seus membros no século passado. Posteriormente, essa população voltou a crescer e a etnia atualmente soma cerca de 2,3 mil integrantes.
O marco temporal
Agora, o STF avalia se a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ — habitada pelos Xokleng e por outros dois povos, os Kaingang e os Guarani — deve incorporar ou não áreas pleiteadas pelo governo de Santa Catarina e pelos ocupantes de propriedades rurais. Em jogo está a tese do marco temporal.
O governo passou a encampar formalmente essa tese em 2017, quando Michel Temer era presidente, o que na prática paralisou as demarcações no país.
O princípio faz parte do léxico ruralista desde pelo menos 2009, quando o então ministro do STF Ayres Britto propôs sua adoção ao julgar um caso sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Naquela ocasião, o tribunal estabeleceu 1988 (ano da promulgação da Constituição) como marco temporal para as demarcações.
Os indígenas, por outro lado, são contrários à aplicação do marco temporal, pois dizem que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988.
É esse o argumento usado pelos Xokleng no julgamento no STF: eles afirmam que décadas de perseguições e matanças forçaram o grupo a sair do território que hoje tentam retomar.
“Não tínhamos fronteiras, andávamos por todo aquele espaço. Mas éramos tutelados, não tínhamos como responder por nós. Mal sabíamos falar português, imagine nos defender”, disse à BBC News Brasil Ana Patté, jovem liderança Xokleng integrante da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em junho de 2021.
Patté afirmou que o território em disputa era usado pelos Xokleng para a caça, pesca e coleta de frutos, especialmente o pinhão. A Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ foi demarcada em 1996 e, em 2003, mais que triplicou de tamanho, passando de 15 mil para 37 mil hectares.
A área hoje em disputa integra a parte incorporada em 2003 e está parcialmente ocupada por plantações de fumo — atividade que, segundo Patté, fez o solo e os rios da região se contaminarem com agrotóxicos.
Ela disse que, se o STF julgar que o pleito da comunidade procede, a área em disputa será reflorestada, o que trará benefícios não só para os Xokleng mas para todos que dependem dos rios que cruzam aquelas terras.
Já o governo de Santa Catarina afirma que essa área era pública e foi vendida a proprietários rurais no fim do século 19.
Políticos ruralistas catarinenses apoiam a posição do governo estadual. Em 2008, os então deputados federais Valdir Colatto e João Matos, ambos do MDB, elaboraram um decreto legislativo anulando a ampliação da terra indígena.
Eles afirmaram que, na área englobada pela ampliação, havia 457 pequenas propriedades agrícolas, com média de 15 hectares cada.
“Nunca houve, e nem há, critérios seguros para se demarcar áreas indígenas, ficando a sociedade à mercê do entendimento pessoal do antropólogo que se encontra fazendo o trabalho num determinado momento”, argumentaram os deputados ao justificar o decreto.
O Estado de Santa Catarina também disputa com os Xokleng 3.800 hectares onde há sobreposição entre a terra indígena e reservas biológicas estaduais.
Em 2019, o STF decidiu que o julgamento sobre a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ tem repercussão geral.
Se a corte se opuser à tese do marco temporal, o governo federal em tese será obrigado a retomar os processos de demarcação que foram travados com base nesse princípio.
Essa possibilidade tira o sono de associações ruralistas. Em maio de 2020, um advogado da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) disse no STF que a rejeição do princípio do marco temporal traria “um enorme potencial de conflagração do país e retorno a uma situação muito grave que se vivia no Brasil antes de 2009 (ano da decisão do STF sobre o caso Raposa Serra do Sol)”.
Já uma decisão favorável ao estabelecimento de um marco temporal tende a dificultar novas demarcações.
Dados da Funai (Fundação Nacional do Índio) em 2021 apontavam que havia 245 processos de demarcação de terras ainda não concluídos.
Em muitos desses casos, os indígenas reclamam territórios de onde dizem ter sido expulsos antes de 1988.
Há ainda muitas demandas por demarcação que nem sequer foram analisadas pelo governo — o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), braço da Igreja Católica que atua em prol dos povos indígenas, contava com 537 casos desse tipo em junho de 2021.
Em entrevista à BBC News Brasil na semana passada, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou que se o marco temporal for aprovado, trará prejuízo a terras demarcadas, porque elas poderão ser questionadas e processos já concluídos poderão ser revistos.
“Além de um retrocesso, é uma insegurança total para os povos indígenas. […] Isso é realmente muito perigoso, porque a gente já tem um passivo muito grande de terras indígenas a demarcar no Brasil e o marco temporal ainda pode desestabilizar muito mais esse processo”, declarou Guajajara à BBC News Brasil. Agora, ela espera que o texto não avance no Senado.
Votação no Congresso.
A aprovação na Câmara na semana passada causou revolta entre representantes de povos indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil, que protestaram na praça dos Três Poderes e no Salão Verde da Câmara.
Antes da votação, o relator do projeto, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), defendeu que o texto trará mais segurança jurídica para proprietários rurais e pediu que o STF deixe de julgar o tema, uma vez que ele já está sendo deliberado no Legislativo.
A deputada Silvia Waiãpi (PL-AP), indígena, afirmou que o projeto de lei não ataca os direitos dos povos originários.
“Estamos discutindo o futuro da nação. Querem criar guerras de narrativas para subjugar um povo para viver eternamente em 1500”, disse.
Além da questão do marco temporal, o texto aprovado na Câmara prevê a permissão para cultivo de transgênicos por indígenas e a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas.
O projeto de lei votado na Câmara é originalmente de 2007. Inicialmente, ele tinha o objetivo de transferir do Executivo para o Legislativo o poder de demarcar terras indígenas — mas, desde então, ele recebeu várias modificações, por meio de mais de 10 apensados e de um texto substitutivo do deputado Arthur Oliveira Maia, relator da matéria.
O texto na Câmara teve um requerimento de urgência aprovado e avançou rapidamente. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que a rapidez ocorreu em razão do julgamento no STF.
“Tentamos um acordo para que a gente não chegasse a este momento, mas o fato é que o Supremo vai julgar no dia 7 e este Congresso precisa demonstrar que está tratando a matéria com responsabilidade em cima dos marcos temporais que foram acertados na Raposa Serra do Sol. Qualquer coisa diferente daquilo vai causar insegurança jurídica”, disse Lira, defendendo o projeto de lei e a possibilidade de que os indígenas cultivem bens agrícolas em suas terras.
“Nós não temos nada contra povos originários, nem o Congresso tem e não pode ser acusado disso. Agora, nós estamos falando de 0,2% da população brasileira em cima de 14% da área do país”, completou, segundo informações da Agência Câmara de Notícias.
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