- Author, Mariana Alvim
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @marianaalvim
A pandemia de covid-19 parece ter sido um ponto de virada na relação entre os brasileiros e a vitamina D — o que se reflete no salto em vendas de suplementos a partir de 2020 e na profusão de conteúdo na internet apontando tanto os possíveis benefícios quando as limitações dela no combate à nova doença.
Aliás, devemos dizer logo que o papel da vitamina D na covid-19 ainda está em investigação por cientistas e não há consenso.
Mas esse hormônio com nome de vitamina já era fonte de fascínio e controvérsia antes da pandemia e tem tudo para continuar sendo depois dela.
Quem deve tomar suplementos de vitamina D, quais doenças que este hormônio pode prevenir e qual seria o nível ideal no sangue são perguntas que têm movido muitas pesquisas ao redor do mundo — e que, com a ajuda de especialistas e artigos científicos, buscamos explicar nesse texto, mesmo que ainda não haja respostas definitivas para algumas perguntas.
Vamos primeiro ao que já se sabe sobre a vitamina D.
O básico da vitamina D
No ano passado, a descoberta da vitamina D fez 100 anos. No início do século 20, vários médicos e cientistas de instituições diferentes estavam buscando a causa do raquitismo e passaram a observar que a ingestão de óleo de fígado de bacalhau prevenia e tratava essa doença óssea. Mas, além disso, a exposição ao sol também parecia ter um papel.
Uma equipe liderada pelo bioquímico americano Elmer McCollum foi quem deu o nome “vitamina D”, em 1922.
Era uma época em que muitas vitaminas estavam sendo descobertas — as letras A, B e C já estavam em uso —, e o novo composto foi assim identificado. Décadas depois, com mais pesquisas e o detalhamento da estrutura molecular, chegou-se ao consenso de que a vitamina D é, na verdade, um hormônio.
Atualmente, há cientistas tentando emplacar o nome “hormônio vitamina D”, mas a “vitamina D” segue muito popular — e nessa reportagem, vamos continuar usando o termo à moda antiga.
Hoje, é mais do que comprovado que a vitamina D regula a quantidade de cálcio e fósforo no nosso corpo — e esses, por sua vez, são essenciais para o crescimento e a manutenção de ossos, dentes e músculos. Ou seja, a vitamina D é importantíssima para a saúde óssea e muscular.
Já sabemos também que podemos obter a vitamina D de três formas: com a produção do nosso corpo, a partir da exposição ao sol; pela alimentação e pela suplementação.
A médica endocrinologista Marise Lazaretti-Castro, professora livre-docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que é um equívoco comum entre os pacientes pensar que os efeitos da alimentação e da suplementação só vão ser ativados se houver exposição ao sol.
“É uma ideia errada a de que você precisa tomar sol mesmo ingerindo a vitamina. O que o sol faz é produzir na nossa pele a vitamina D. Se você está ingerindo pelo alimento ou pelo suplemento, não precisa tomar sol”, explica Lazaretti-Castro.
Outro alerta feito por Castro e pela nutricionista Marcela Mendes, também entrevistada pela BBC News Brasil, é que, na prática, não podemos contar muito com a alimentação para obter a vitamina D. Sociedades médicas brasileiras consultadas pela reportagem endossaram essa afirmação.
O salmão, por exemplo, que costuma ser apontado como uma rica fonte, só nos dá o hormônio se for selvagem — e não de criação, como é mais comum encontrar no Brasil.
“Ainda falta educação nutricional pra entender que a alimentação dificilmente vai ser suficiente para suprir a necessidade. Os principais alimentos com vitamina D são o salmão selvagem, cogumelos e peixes gordurosos. Qual é a real aplicação disso na nossa população? A ingestão [desses alimentos] precisaria ser diária para a gente ter realmente uma fonte”, aponta Mendes, doutora em ciências nutricionais pela Universidade de Surrey (Inglaterra) e membro do grupo de pesquisa em Vitamina D da Universities Global Partnership Network (UGPN).
Em alguns países que têm invernos severos e menor exposição ao sol, é obrigatória a fortificação de alimentos com vitamina D. Não é o caso do Brasil. Mas, nas prateleiras, também temos alguns produtos com dizeres como “fortificado” e “enriquecido com vitamina D” na embalagem.
“Quando você olha no rótulo, é uma quantidade que não está fazendo diferença. Não é enganoso, mas pode gerar uma confusão de se achar que está sendo suficiente ingerir aquele alimento. A pessoa acha que está tendo uma fonte garantida de vitamina D”, alerta a nutricionista, sugerindo uma regulamentação mais rigorosa para o uso dessas chamadas.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ordena que alimentos enriquecidos devem trazer alegações como “fortificado com vitamina D” quando trouxerem no mínimo 30 UI (unidades internacionais) em líquidos e 60 UI em sólidos. Segundo a agência, os limites mínimos garantem que os produtos “forneçam uma quantidade significativa das substâncias adicionadas e sejam eficazes para os efeitos alegados”.
Mendes é cautelosa ao falar de uma recomendação diária de ingestão da vitamina D, pois há variáveis individuais e locais, mas aponta como referência a orientação da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) de 600 a 800 UI diárias para adultos saudáveis (via alimentação e/ou suplementação). Para grupos de risco, a necessidade costuma ser ainda maior.
Ou seja, o mínimo exigido para que um produto se diga fortificado com vitamina D fica abaixo desta referência.
Suplementar ou não suplementar?
Além da alimentação, temos ainda a exposição ao sol e a suplementação como formas de obter a vitamina D.
Por muito tempo, pensou-se que o clima brasileiro fosse suficiente para garantir à população vitamina D — inclusive por isso, o raquitismo nunca foi uma preocupação grande por aqui.
Mas estudos recentes têm mostrado que o país tem um percentual relevante de pessoas com deficiência desse hormônio.
Os resultados mostraram deficiência de vitamina D em 12,1% das pessoas em Salvador; 20,5% em São Paulo e 12,7% em Curitiba.
Dados mundiais reunidos em um artigo da Nature mostram que o percentual de deficiência em outras populações é maior, como nos Estados Unidos (24%), Canadá (37%) e Europa (40%).
No doutorado, Marcela Mendes fez um ensaio clínico com mulheres brasileiras no seu país natal e com brasileiras vivendo na Inglaterra.
“Realmente tinha uma média de níveis de vitamina D bem maiores no Brasil do que na Inglaterra. Mas nem por isso a gente deixou de ter mulheres deficientes morando no Brasil ou mulheres suficientes morando na Inglaterra. Então, outros fatores influenciam além do sol”, diz a nutricionista, citando fatores como a pigmentação da pele — quanto mais melanina, que protege contra a luz solar, menos vitamina D produzida — e a genética.
“Já foram identificados diversos genes que têm uma influência da vitamina D na expressão gênica. Há também o polimorfismo genético: as pessoas podem ter alguma mutação que favorece ou atrapalha os níveis de vitamina D.”
O estilo de vida atual também pode diminuir nossa exposição ao sol, conforme ficamos mais em ambientes fechados e usamos protetores solares. E aí entra outro dilema: para evitar o envelhecimento e o câncer de pele, usamos filtros que bloqueiam a luz ultravioleta B (UVB) — crucial para nosso corpo sintetizar a vitamina D.
Entidades médicas consultadas pela reportagem deram diferentes recomendações para lidar com o dilema dos riscos e benefícios da exposição ao sol.
- A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) recomenda que a situação seja resolvida caso a caso na consulta com um médico. “Fazer uma recomendação para toda a população em termos de como se expor ao sol é complexo, porque o tanto que cada pessoa vai fabricar de vitamina D é variável. Essa variação acontece de acordo com o tom pele, com a região do Brasil em que a pessoa está [quanto mais perto da linha do Equador, maior é o índice UVB] e com a estação do ano [no inverno o índice UVB é mais é mais baixo do que no verão]”, aponta Bárbara Campolina, endocrinologista e diretora do Departamento de Metabolismo Ósseo e Mineral da SBEM.
- Já a Associação Brasileira de Avaliação Óssea e Osteometabolismo (Abrasso) sugere a limitação do tempo e áreas de exposição. “Em geral o câncer de pele ocorre no rosto, pescoço e testa, e essas áreas sempre devem estar protegidas pelo protetor solar. Pode-se expor braços e pernas sem proteção por 5 a 7 minutos em pessoas de pele mais clara e até 15 minutos naqueles com a pele mais pigmentada e após isso aplicar o protetor. Deve-se evitar a vermelhidão da pele pois isto já é um sinal da lesão solar”, explicou Sergio Maeda, presidente da Abrasso.
- A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) sugerem ainda que a exposição ao sol ocorra antes das 10h da manhã e depois das 16h.
Já em relação à suplementação, nenhuma sociedade médica brasileira consultada pela reportagem recomenda o uso indiscriminado de suplementos pela população geral.
Primeiro, é preciso verificar os níveis de 25(OH)D (ou 25 hidroxivitamina D) no sangue para depois um médico ou nutricionista decidir se a suplementação é necessária ou não.
A 25(OH)D é a forma circulante da vitamina D no sangue depois de ter passado pelo fígado.
A única recomendação fixa para um grupo, independente de exames, é para bebês: a SBP orienta suplementação de vitamina D na dose de 400 UI da primeira semana até 12 meses e de 600 UI de 12 a 24 meses.
Entretanto, há grupos de risco que devem ficar mais atentos ao nível de 25(OH)D:
- Idosos (acima de 60 anos)
- Obesos e pessoas que passaram por cirurgia bariátrica
- Grávidas ou lactantes
- Pessoas com osteoporose, outras doenças ósseas (raquitismo, osteomalácia e hiperparatireoidismo), que têm fraturas ou quedas recorrentes
- Pessoas com doenças renais crônicas ou com síndromes de má absorção intestinal
- Pessoas que usam medicações que interferem no metabolismo da vitamina D, como a terapia antirretroviral do HIV, corticoides e anticonvulsivantes
- Pessoas que não se expõem ao sol por alguma contraindicação, como histórico de melanoma ou outro câncer de pele.
Segundo Mendes, o exame tem ficado cada vez mais acessível em laboratórios particulares.
Na rede pública, um médico deve avaliar caso a caso a necessidade de solicitar o exame de vitamina D, segundo o Ministério da Saúde: “O exame de vitamina D pode ser solicitado pelo médico da APS [atenção primária] caso a pessoa necessite fazê-lo, cabendo a avaliação e definição da conduta pelo profissional diante de cada caso. Em atenção à saúde da criança e saúde do idoso, em alguns casos é feita essa solicitação de forma preventiva.”
Mercado brasileiro chegou a novo patamar na pandemia
A nutricionista diz perceber, por parte da população e de alguns profissionais de saúde, a colocação da vitamina D como algo “milagroso” — o que leva, às vezes, à ingestão de doses altíssimas de suplementos, inclusive indicadas por profissionais de saúde.
“É importante colocar que a suplementação é uma estratégia importantíssima: existem muitas situações que você precisa do suplemento e é ele que vai resolver”, diz a nutricionista.
“Mas hoje, a gente está vendo pessoas tomando 5.000, 10.000 UI por dia esperando que a molécula faça alguma ação específica”, acrescenta, citando doses consideradas altas.
A médica Marise Lazaretti-Castro afirma que a hiperdosagem traz riscos.
“No longo prazo, isso vai levar a um quadro de intoxicação com vitamina D, que é grave. O cálcio sobe muito no sangue e isso dá um monte de efeitos adversos, como náuseas, vômitos, diarreia. Também pode dar inapetência, emagrecimento, poliúria, desidratação, insuficiência renal, perda da função renal… Pode até ocorrer morte.”
“A deficiência da vitamina D é ruim, mas o excesso também.”
Ambas entrevistadas consideram que a pressão do mercado tem abastecido essa busca desenfreada pela vitamina D.
“Eu sinto às vezes que a publicidade tem mais acesso à população do que a gente que está tentando divulgar ciência”, desabafa Mendes.
A nutricionista aponta também que há farmácias de manipulação vendendo doses muito altas sem prescrições de médicos ou nutricionistas.
A BBC News Brasil pediu posicionamento por e-mail e telefone da Associação Nacional dos Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag), que representa o setor, mas não teve retorno.
Dados desde 2015 mostram que o mercado de vitamina D teve um salto no Brasil a partir de 2020, primeiro ano da pandemia de covid-19.
A partir de fevereiro de 2021, o valor de faturamento referente ao acumulado dos 12 meses anteriores ficou acima de R$ 1 bilhão, de acordo com números da Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais (Alanac).
Eles incluem vendas de suplementos e medicamentos à base de vitamina D nas farmácias do país.
Considerando o consumo em unidades, os dados também mostram que a partir de fevereiro de 2021 o país chegou a um novo patamar, ficando acima de 30 milhões unidades vendidas anualmente desde então.
“Esse aumento foi por conta de estudos que mostraram um efeito imunológico no consumo da vitamina D. Isso fez com que tivesse um aumento muito grande [de demanda] na pandemia. Agora, a tendência é desacelerar”, analisa Henrique Tada, presidente executivo da Alanac.
De acordo com a Anvisa, os suplementos de vitamina D não exigem prescrição médica, enquanto há alguns medicamentos à base de vitamina D que demandam prescrição — no caso, com receituário simples (receita branca). Esses remédios normalmente são voltados para doenças ósseas.
No mercado, há opções de suplementação com a vitamina D2, de origem vegetal, e D3, de origem animal.
Falta saber: o papel da vitamina D na prevenção e tratamento de doenças
Enquanto os benefícios da vitamina D para a saúde óssea já são conhecidos, os chamados “efeitos extraesqueléticos” do hormônio estão em estudo — e a todo vapor.
Somente no primeiro trimestre deste ano, foram publicados artigos científicos que investigaram o papel da vitamina D na esclerose múltipla, demência, asma, no câncer de pele melanoma, entre muitas outras doenças.
A hipótese de que o hormônio pode ter um papel na prevenção ou no tratamento de doenças se deve, em parte, pelo fato de que já foram encontrados genes receptores da vitamina D em vários tipos de células do corpo humano, dos neurônios aos linfócitos. Ou seja, se há receptores, é provável que a vitamina D cumpra alguma função naquela célula.
Além disso, estudos com cobaias em que esses receptores foram excluídos mostraram que as glândulas mamárias ficaram mais propensas ao câncer de mama; o músculo cardíaco à hipertrofia; a próstata à hiperplasia; e o fígado ficou mais gorduroso.
Existe a dúvida se a ligação entre vitamina D e efeitos na saúde é de causalidade, correlação ou até de “causalidade reversa”, segundo explica a endocrinologista Marise Lazaretti-Castro
“Como a vitamina D depende da exposição solar, se você é doente, você não vai se expor tanto ao sol. É o que a gente chama de causalidade reversa: a doença que está produzindo a vitamina D mais baixa, e não o contrário”, diz.
Considerados “padrão ouro” nos estudos de saúde, os ensaios clínicos randomizados controlados, que consistem em testes com voluntários, são a príncípio aqueles que melhor poderiam mostrar a causalidade entre a vitamina D e algum efeito na saúde. Mas estudos desse tipo têm encontrado obstáculos.
Segundo Lazaretti-Castro, o maior estudo do tipo já feito foi o VITAL, realizado nos Estados Unidos. Ele investigou a ligação entre vitamina D, o câncer e doenças cardiovasculares.
Foram acompanhados 25.817 voluntários por, em média, cinco anos. Eles foram divididos em um grupo que foi suplementado com uma alta dose de vitamina D (2.000 IU) e outro que recebeu placebo.
O estudo concluiu que a vitamina D não levou a uma redução significativa no risco de câncer e nem de doenças cardiovasculares. Tampouco houve redução nas mortes por doenças cardiovasculares — mas para o câncer, houve sim redução na mortalidade, de 17%.
Mas Lazaretti-Castro explica que o estudo VITAL enfrentou um obstáculo que ensaios clínicos com a vitamina D costumam enfrentar: não é ético deixar o grupo de voluntários que recebe placebo deficiente do hormônio.
Por isso, o experimento americano permitiu que todos os voluntários, estando no grupo controle ou não, tomassem 800 UI de suplementos diariamente, o que é uma boa quantidade.
A diferença do grupo que recebeu as altas doses é que essas pessoas receberam ainda mais vitamina D.
“Esse estudo tem várias limitações. Por exemplo, os níveis plasmáticos [da vitamina D] já eram altos no grupo como um todo. Então se você sai de um nível bom de vitamina, adianta aumentar mais? Provavelmente não”, aponta a médica.
A endocrinologista já participou de quatro edições de um evento dedicado às disputas em torno do hormônio, a Conferência Internacional sobre as Controvérsias da Vitamina D, que já teve seis edições.
A necessidade de achar alternativas ao recrutamento de voluntários com bons níveis do hormônio e de acompanhar os participantes por ao menos cinco anos nos estudos sobre câncer e doenças cardiovasculares foi defendida em edições passadas.
Outro desafio para os estudos é avaliar os efeitos para a saúde da exposição ao sol — não se pode deixar as pessoas expostas por muito tempo.
E, como se não faltassem incógnitas sobre a vitamina D, os cientistas têm debatido bastante também os valores de referência da 25 hidroxivitamina D no sangue.
“Há consenso em dois pontos: níveis de 25(OH)D abaixo de 12 ng/mL são claramente deficientes em todas idades e níveis acima de 30 ng/mL são claramente suficientes. Em contraste, há discordâncias sobre como classificar os níveis entre 12 e 30 ng/mL”, diz um texto com as conclusões da 3ª Conferência Internacional sobre as Controvérsias da Vitamina D, realizada em 2019.
Outro número em debate é a partir de qual quantidade uma alta dose de vitamina D apresenta riscos à saúde.
Marcela Mendes levanta ainda mais uma questão: segundo a nutricionista, no Brasil ainda importamos muitas das recomendações de instituições estrangeiras, deixando de considerar as particularidades do nosso país.
Mas ela aponta para uma certeza.
“A gente sabe que o caminho futuro da vitamina D é descobrir muita coisa da importância dela”, diz.
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