- Author, Leandro Machado e Sam Cowie
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Na periferia de São Paulo, Venezuela é Veneza City.
A ocupação no bairro Fazenda da Juta, Zona Leste da capital paulista, virou abrigo para 40 famílias de imigrantes venezuelanos que fugiram do país vizinho em busca de uma vida melhor no Brasil.
Com trajetórias de enfrentamento da fome e passagens por outros países, os imigrantes encontraram nesse terreno uma oportunidade de recomeço longe da crise política, econômica e social pela qual passa a Venezuela.
Eles estão entre os 7,7 milhões de venezuelanos que deixaram o país nos últimos anos, segundo estimativa da Agência da ONU para Refugiados (Acnur).
Segundo o governo federal, 510 mil venezuelanos vivem atualmente no Brasil, sendo 5,2 mil na cidade de São Paulo. O Brasil foi o terceiro país que mais recebeu migrantes venezuelanos na América Latina, atrás apenas da Colômbia e do Peru.
A ocupação foi construída em 2021 em uma área de preservação ambiental que pertence à Prefeitura, e deve passar por uma reintegração de posse em breve, segundo a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB).
Candidato à reeleição, Nunes (MDB) prometeu transformar o terreno em um parque. Para isso, os imigrantes venezuelanos, que hoje vivem em situação de vulnerabilidade social, terão de deixar suas casas.
Eles se sustentam de benefícios sociais e pequenos bicos, como costura, faxina ou mesmo da venda de produtos nos semáforos. Também recebem doações de alimentos dos moradores do bairro. Água e energia elétrica só chegam aos barracos por meio de gambiarras.
Porém, mesmo em situação precária, o assentamento se tornou um ponto de estabilidade para os imigrantes após uma jornada pela América do Sul.
É o caso de Maria Jose Pabón, de 33 anos. Nascida e criada em Maracay, cidade no norte da Venezuela, ela conta ter decidido deixar o país há sete anos, quando passou um dia inteiro na fila para comprar farinha — e não conseguiu.
“Um dia você comia. Outro dia, não. Eu via a cara da minha família, de tristeza e com fome. Fome é uma dor que não tem preço”, diz.
Ela deixou seu filho na Venezuela com parentes e tenta enviar dinheiro para a família mensalmente — valor que arrecada com pequenos bicos e benefícios sociais. Ela não vê o filho há sete anos.
“O que mais queria era tê-lo aqui comigo. E dar tudo: estudo, comida, educação, tudo que não tem lá. Sinto meu coração apertadinho, um sentimento que toda mãe deve sentir, que é não ter o seu filho ao seu lado por muito tempo”, diz.
Depois de sair da Venezuela, Maria passou pela Colômbia e pelo Peru antes de entrar no Brasil pelo Acre, de carona.
“Na Colômbia eu vendia balinhas no semáforo, porque lá na Colômbia não havia um trabalho digno. Havia trabalho sim, mas o salário não era o que pagavam a um colombiano”, diz.
Ela soube da ocupação em uma conversa com amigos venezuelanos no Peru. “[Eles falaram] ‘Vamos ao Brasil que lá tem uma invasão, e há uma chance para a gente, de viver bem lá’. Viemos pedindo carona para o Brasil. Não entendíamos português. E assim começou a trajetória onde estamos aqui, em Veneza City.”
‘Ficou tudo uma bagunça’
Nos últimos anos, o Brasil recebeu cerca de 510 mil imigrantes da Venezuela, segundo o governo federal.
Atualmente, os venezuelanos formam o maior contingente de estrangeiros no Brasil.
Desde 2019, o Brasil reconhece que a Venezuela enfrenta uma situação de “grave e generalizada violação de direitos humanos”, o que pode facilitar e acelerar a análise para emissão de refúgio e visto humanitário.
No dia 28 de julho, uma eleição presidencial intensificou ainda mais o conflito no país.
Por um lado, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) apontou que o vencedor é o atual presidente, Nicolás Maduro, no cargo desde 2013. Por outro, o opositor Edmundo González diz ter vencido o pleito, acusando o atual governo de fraude eleitoral.
González tem apoio da União Europeia e dos Estados Unidos, que reconheceram sua vitória. Já Brasil, Colômbia e México estão pressionando Maduro a divulgar as atas eleitorais que apontariam o verdadeiro ganhador da eleição.
Na quinta-feira (15/8), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que não reconhece a vitória de Maduro, e sugeriu a possibilidade de novas eleições.
Em Veneza City, a costureira Yoraima Herrera, de 59 anos, se emociona ao lembrar da Venezuela antes do governo Maduro.
“Morávamos bem. Era como estar aqui. Não faltava nada. Quem trabalhava tinha suas coisas. Trabalho, alimentação, remédios, médicos, hospital. Tudo estava ‘de boa’. Mas depois desses anos do mandato dele [Maduro], tudo ficou uma bagunça”, conta ela, que hoje vive de pequenos bicos como costureira.
“Não havia remédios, hospital, comida. Não havia nada. Eu estava passando fome, fiquei desnutrida, muito doente. E decidi vir, sair do meu país”, diz Yoraima, que trabalhava como faxineira na Prefeitura de Caracas, capital da Venezuela. Antes de Veneza City, ela morou na Colômbia, Peru e Equador.
Já Carmen Noriega, de 72 anos, conta que perdeu seu emprego em uma escola no interior da Venezuela, envia parte do valor que recebe do BPC (Benefício de Prestação Continuada) para alguns familiares que ficaram no país. “Às vezes, quando posso, mando U$ 15 (R$ 81) para um dos meus netos”, diz.
O BPC, cujo valor é um salário mínimo, também pode ser concedido a estrangeiros caso eles tenham mais de 65 anos e vivam em situação de vulnerabilidade social.
Em Veneza City, ela vive com três familiares que também decidiram emigrar. “Já estamos há três anos vivendo aqui no Brasil. Para a glória de Deus, nós aqui recebemos muitos benefícios. Meu filho está trabalhando. E meus netos estão estudando”, diz.
‘Uma ordem do Criador’
Embora quase a totalidade dos moradores de Veneza City seja de estrangeiros, a ocupação é liderada pela Débora dos Santos, de 42 anos, que nasceu e cresceu em Fazenda da Juta. Ela é a responsável por dialogar com o poder público, e ajudar os imigrantes a angariar doações.
“Quando eu entrei aqui foi para ajudar uma família de brasileiros a fazer um quarto. Foi quando umas pessoas mandaram venezuelanos me procurar”, conta.
“Devagarinho, começou a vir venezuelanos, e fizemos esta arca com 40 famílias. Fizemos essas casas todos unidos com a misericórdia do Senhor”, diz Débora, que é evangélica e sempre cita Veneza City como uma missão divina dada a ela.
“Como foi uma ordem do Criador que eu recebi para ajudar essas famílias, estou disposta a enfrentar qualquer tipo de situação para ajudá-los”, afirma.
Débora nega que a ocupação tenha desmatado o terreno. “Quando entrei aqui, o que tinha era mato e muito lixo. Isso tinha bastante. Não derrubamos nenhuma árvore grossa”, afirma.
Para ela, a solução do impasse seria melhorar as moradias dos venezuelanos na comunidade, fazendo com que eles ajudem na preservação da mata.
“Eu acredito que poderíamos unir o meio ambiente e a ajuda a essas pessoas. Elas poderiam cuidar dessa área, para que ela não fique vazia, largada”, diz.
Mutirão na Fazenda da Juta
O nome Veneza City vem da forma como alguns brasileiros da periferia de São Paulo se referem aos venezuelanos: “os veneza”.
Ela é uma das 371 ocupações de sem-teto monitoradas pela prefeitura de São Paulo — 63 mil pessoas vivem em áreas como essa em toda a cidade.
Em fevereiro de 2020, antes da pandemia de covid-19, havia 218 ocupações irregulares no município, por exemplo. Ou seja, em pouco mais de quatro anos, houve um crescimento de 70%, segundo a Prefeitura. Especialistas creditam esse fenômeno ao aumento da pobreza e dos despejos durante a pandemia.
Já a fila da moradia social tem 276 mil pessoas cadastradas, segundo a Secretaria de Habitação.
Em uma cidade com alto déficit habitacional e escassez de terrenos vazios, a área de Veneza City acabou ficando no centro de um conflito por território.
E ele envolve os imigrantes, moradores do bairro e a prefeitura.
Erguida em 2021, a ocupação está localizada em um terreno do município de 55 mil metros quadrados, encravado entre prédios da Cohab (Companhia de Habitação Popular) e um projeto de moradia social chamado Mutirão 26 de Julho.
No início da década de 1990, a gestão da então prefeita Luiza Erundina (na época no PT, hoje no PSOL) cedeu o material de construção e um grande lote de terreno a um movimento de moradia da Zona Leste.
E a mão-de-obra ficou a cargo dos futuros moradores — as 560 casas foram entregues em 26 de julho de 1997, data que acabou dando nome ao local.
Porém, o terreno em frente ao mutirão também é um pequeno fragmento de Mata Atlântica, classificado pela Prefeitura como área de preservação ambiental.
Segundo a gestão do prefeito Ricardo Nunes, ele está destinado a se tornar um anexo de um parque municipal que está sendo construído em outra área verde a poucos metros dali.
Uma das moradoras do mutirão é Deocleciana Ferreira, de 62 anos, doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora de um livro sobre a história da Fazenda da Juta. Conhecida como Crécia, ela vive no bairro desde julho de 1997.
Crécia conta que, quando as chaves de seu sobrado foram entregues, técnicos da prefeitura pediram que cada morador cuidasse da área verde na frente de casa. Foi assim que o terreno, antes degradado, voltou a ter árvores, frutas e animais — ali também há uma nascente e um pequeno riacho, mas a água já aparenta estar poluída em alguns pontos.
“Nesse período de cuidado, nós todos plantamos. Então, assim, cada árvore que tem aqui tem a presença de um morador”, conta.
“O desencanto veio a partir de 2021. Durante a pandemia, houve um movimento de ocupação por pessoas que vieram de fora e passaram a ocupar a área da mata”, diz Crécia.
Embora os moradores do mutirão sejam contra a ocupação, a relação deles com os venezuelanos é pacífica — a ocupação chega a receber doações de quem vive no bairro.
“São pessoas que necessitam de apoio, de proteção, de acolhida. Eles têm direito à moradia digna, então assim, não pode ficar ocupando dentro da mata, dentro de manancial, ou seja, a gente é a favor que eles sejam acolhidos, mas a mata precisa ser preservada”, afirma Crécia.
Moradia e preservação
O pesquisador britânico Matthew Aaron Richmond, professor de Geografia na Universidade de Newcastle, na Inglaterra, acompanha a história de Veneza City desde 2021, quando fazia uma pesquisa sobre moradia popular em São Paulo.
Para ele, a ocupação é “uma continuação da dinâmica de urbanização na capital paulista ao longo de décadas.”
“Grupos muito pobres, que não conseguem acessar moradias populares pelo mercado privado nem por programas de habitação social, acabam ocupando terras urbanas subutilizadas”, diz o pesquisador, afiliado ao Alameda Institute.
Mas algumas coisas mudaram nos últimos anos, aponta.
“Houve algum sucesso na criação de zonas de conservação em São Paulo, mas a implementação dessas áreas é frequentemente fraca. Isso significa que populações vulneráveis são empurradas para ocupar áreas ambientalmente sensíveis.”
Para Richmond, a solução para o problema “precisa levar em conta ambos os lados desta equação: fornecer moradia acessível para as pessoas que precisam proteger adequadamente áreas ambientalmente importantes.”
‘Vai ficar pior’
Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou que um decreto municipal de 2007 determina que “qualquer construção” não autorizada em áreas de posse do município “deve ser removida”.
Segundo a gestão Ricardo Nunes, “todas as tratativas que envolvem a ocupação Veneza City são norteadas por diversas políticas habitacionais e sociais que visam o atendimento pleno das famílias residentes no território.”
Embora ainda não exista uma data para a remoção dos moradores, em Veneza City, o clima é novamente de incerteza e insegurança sobre o futuro.
“Se sair daqui, eu não tenho lugar para ir. Nem condições para voltar à Venezuela. Maduro ganhou a eleição. Vai ficar pior”, diz Maria Pabón.
Já Yoraima Herrera se emociona ao falar de sua casa na periferia de São Paulo. “Dizem que aqui vai virar um parque… Eu tenho minha casinha. Eu vivo sozinha, com minha cachorra. Eu quero morar aqui, todos queremos morar aqui.”
Colaboraram Felix Lima e Shin Suzuki
Fonte: BBC
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