• Mariana Alvim*
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

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Brasil teve quedas bruscas na vacinação infantil nos últimos anos, um dos pontos de maior preocupação na área da saúde, segundo especialistas entrevistados

Independentemente de quem for escolhido no segundo turno pelos brasileiros para subir a rampa do Palácio do Planalto em janeiro de 2023, o próximo presidente do país encontrará, diante da mesa, situações preocupantes a lidar no que diz respeito à saúde — como uma queda drástica na vacinação de crianças, um orçamento para a área bem mais baixo do recomendado e um ministério remexido por uma grande alternância no comando nos últimos quatro anos.

De acordo com uma pesquisa do instituto Datafolha divulgada no início de setembro, a saúde é a área mais importante para os brasileiros na hora de definir seu voto para presidente, seguida da educação.

Por isso, a BBC News Brasil buscou dados e especialistas na área para avaliar quais serão os principais desafios na saúde a serem enfrentados pelo próximo presidente em um país onde a maioria da população depende unicamente do Sistema Único de Saúde (SUS) — apenas 25,6% da população tem planos de saúde, segundo dados de julho da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

A queda brusca da cobertura vacinal contra várias doenças, alvo de alertas disparados neste ano por instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), foi um dos problemas mais urgentes apontados pelos entrevistados.

Por exemplo, a vacina BCG, que previne contra a tuberculose e tradicionalmente tem alta taxa de vacinação por ser aplicada no primeiro mês de vida do bebê, não tem 100% de cobertura desde 2015. Segundo números do DataSUS, a partir de 2020, a cobertura ficou abaixo de 80%: foi de 75,6% em 2020 e 70,7% em 2021 (entretanto, dados mais recentes, de 2021 e 2022, estão mais sujeitos a alterações, por isso são considerados parciais).

A tríplice viral D1, que previne contra o sarampo, caxumba e rubéola, também vem registrando constante diminuição, saindo da total cobertura em 2014 para 79,7% em 2020.

“A gente não atingiu meta (de cobertura) em todas as vacinas. Já havia uma queda que se iniciou em 2015 e agora, durante a pandemia, se acentuou. A gente não tem um plano claro do governo federal atual para recuperação disso”, aponta o infectologista Julio Croda, da Fiocruz Mato Grosso do Sul.

“A gente sempre teve um Programa Nacional de Imunizações (PNI) muito forte. O que está acontecendo é grave, porque vacina é a principal intervenção custo-efetiva, é a que mais salva vidas do ponto de vista de intervenções na área de saúde.”

A diminuição da vacinação infantil é um fenômeno global recente, segundo a Unicef. Entretanto, para Croda, o governo federal falhou nos últimos anos em garantir sistemas de informatização adequados e uma comunicação que combatesse notícias falsas contra vacinas.

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Luiz Henrique Mandetta foi o primeiro dos quatro ministros do governo Bolsonaro e deixou a pasta no início da pandemia

Essas falhas fazem parte de um quadro mais geral de desorganização do Ministério da Saúde durante o mandato de Jair Bolsonaro (PL), segundo Croda. Ele diz isso não apenas como especialista, mas também testemunha, já que foi, de 2019 a 2020, diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) da pasta.

Bolsonaro teve em seu mandato quatro ministros da Saúde: Luiz Henrique Mandetta (União-MS), Nelson Teich, Eduardo Pazuello (PL-RJ) e Marcelo Queiroga, o atual titular. Comparando com outros presidentes desde a redemocratização, essa rotatividade de ministros é menor apenas do que na gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que teve cinco, mas em dois mandatos.

O número de ministros de Bolsonaro é igual ao que teve em dois mandatos Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seu oponente na eleição, e Fernando Collor (PTB), em seu curto período na Presidência antes de renunciar.

“É muito preocupante, porque, quando você tem uma troca muito constante, você não consegue implementar nenhum programa. Cada ministro que entra tem uma ideia diferente sobre o SUS, tem propostas diferentes, e essas propostas nunca são concluídas. A gestão fica uma colcha de retalhos, não tem começo, meio e fim”, diz Croda, que é presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.

O infectologista critica ainda a falta de compromisso do governo atual com o conhecimento técnico em Saúde — apontando-a como o motivo para sua decisão de sair do ministério em 2020, primeiro ano da pandemia de coronavírus. A covid-19 matou mais de 685,9 mil brasileiros, oficialmente o segundo maior número absoluto no mundo, atrás dos Estados Unidos.

“Quando veio a pandemia, Bolsonaro não apoiou as medidas não farmacológicas de distanciamento, então, antes do Mandetta sair, eu saí. Entendi que não ia ter uma participação técnica, que o governo não ia seguir as recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde)”, lembra Croda, acrescentando que a chegada da covid-19 e da varíola dos macacos mostraram que o Brasil está pouco preparado para possíveis pandemias e epidemias no futuro, o que exige, entre outras medidas, que o país aumente sua própria produção de itens de saúde.

“A gente não teve testes, depois as vacinas e, agora, medicamentos. A gente não tem o paxlovid, que é um remédio que já está sendo utilizado no mundo todo. Nós só temos uma vacina brasileira, que é a da Fiocruz, mas não tem nenhuma vacina de RNA. Agora, com a monkeypox (varíola dos macacos), a gente não tinha estoque estratégico de vacina de varíola. Até hoje, não temos disponível a vacina para ofertar à população.”

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que “o enfrentamento à covid-19 no Brasil garantiu um dos resultados mais exitosos do mundo” e que o governo dedicou “R$ 106 bilhões em créditos extraordinários” exclusivamente para o combate à pandemia: “O governo federal garantiu a distribuição de mais de 518,8 milhões de doses de vacinas em uma das maiores campanhas de vacinação da história do país. O resultado da ampla campanha de imunização resulta hoje na cobertura vacinal de mais de 84,2% da população com ao menos a primeira dose da vacina. E 78% com duas doses”.

Quanto às outras vacinas destinadas às crianças e que estão com a cobertura reduzida, a pasta destacou ter o objetivo “de alcançar cobertura vacinal maior de 95%, além de reduzir o número de não vacinados” — afirmando que, para isso, tem divulgado sua campanha nacional de vacinação “nos principais meios de comunicação e em locais de grande circulação de pessoas” e reforçado a articulação com municípios e Estados.

Problemas básicos

A médica psicanalista Rosana Onocko Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), também critica fortemente a desorganização do Ministério da Saúde no mandato atual e dá exemplos da pandemia.

“Tenho insistido que o próximo governo vai ter que tomar medidas extraordinárias, porque não estamos vivendo uma situação ordinária. Por conta da pandemia, sim, mas também por esse descontrole do governo. Qualquer indicador que você pega, cobertura de vacinas, internações evitáveis pela atenção primária, filas de cirurgias… Há inúmeros trabalhos mostrando piora. Precisamente pela falta de competência técnica e pelo descaso com a coordenação do sistema de saúde. Tem algumas partes do Ministério da Saúde que ninguém coordena mais”, diz Campos, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“A gente acabou de aprovar vacinas (de covid-19) para as crianças menores e não sabemos quando (o governo) vai comprar, quem vai comprar. É uma falta de absurda de responsabilidade sanitária.”

Enquanto isso, diz Campos, faltam dados unificados e atualizados para saber qual é o tamanho das filas para exames, consultas e cirurgias no país. “É como dirigir o carro com os olhos vendados. É preciso restabelecer e melhorar os sistemas de informação, que nunca foram muito amigáveis, mas já foram melhores.”

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País não soube aproveitar leitos de UTI abertos durante a pandemia, diz a médica Rosana Onocko Campos

Na outra ponta de atendimentos complexos como uma cirurgia ou a internação em unidade de tratamento intensivo (UTI), está outra parte fundamental do SUS, lembrada por todos os entrevistados: a chamada atenção primária, considerada a porta de entrada do atendimento em saúde e que tem como representantes essenciais as equipes de saúde da família.

Essa área é movida pelos ideais de prevenção, vida comunitária e multidisciplinaridade — um retrato disso é o dos agentes comunitários de saúde circulando na vizinhança, conversando com moradores para averiguar se a vacinação está em dia ou se remédios de rotina estão sendo tomados corretamente, e talvez indicar atendimento com algum psicólogo em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) ou com um médico em uma Unidade Básica de Saúde (UBS).

O economista Arthur Aguillar, do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), diz que o programa Estratégia Saúde da Família (ESF) é a “espinha dorsal” da atenção primária e do próprio SUS. Para ele, a expansão desse programa de 1990 até 2017 foi “uma das histórias mais bem-sucedidas de política públicas” no Brasil, mas lamenta a desaceleração nos anos recentes.

Embora a atenção primária seja em boa parte responsabilidade dos municípios e Estados, o governo federal tem um papel importante no seu financiamento e no direcionamento de normas e metas.

“Desde 2017, o ESF parou de se expandir. Um pouco por razões orçamentárias, mas um pouco por questões de prioridade também”, explica Aguillar, que defende a retomada da expansão nos próximos anos.

Segundo um relatório do Ieps, em 1998, havia no Brasil 2.646 equipes de saúde da família cobrindo 5,6% da população; em 2008, 28.884 equipes e 48,7% da população; e em 2019, 42.307 equipes e 62,7%.

“Todo brasileiro deveria ter acesso a uma equipe de saúde da família, mas um terço da população não tem. Parte importante desse um terço tem acesso a plano de saúde, mas, mesmo para essas pessoas, o ESF é fundamental. É ele que vai olhar para questões como dengue, zika e doenças infecciosas”, exemplifica o economista.

Uma das atividades desempenhadas na atenção primária é o pré-natal, e, ao que tudo indica, este e outros cuidados relativos às gestantes precisarão de maior atenção, porque a mortalidade materna cresceu nacionalmente e em todas as regiões do país de 2019 para 2020, segundo documento do próprio Ministério da Saúde.

O Brasil registrou 57,9 óbitos para cada 100 mil nascimentos em 2019 e 74,7 em 2020. Segundo dados preliminares levantados pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), em 2021, o número chegou a 107 a cada 100 mil nascimentos. Um estudo recente do Ieps mostrou que as mulheres pretas estão ainda mais vulneráveis à mortalidade materna do que as brancas.

Também economista no Ieps, Rony Coelho explica que as causas do aumento ainda estão em estudo. “Temos um trabalho preliminar em curso, e é possível indicar que houve um aumento muito grande da por doenças virais em 2020 e 2021, o que é um indicativo que estão associadas mais diretamente à covid. Mas, provavelmente, o excesso de morte se deu também pelo colapso do sistema de saúde (na pandemia)”, diz Coelho.

“É sempre bom lembrar, mais de 90% das mortes maternas são por causas evitáveis, como apontam diversos estudos e especialistas, e boa parte dessas causas podem ser previamente diagnosticadas justamente na atenção primária, que estava com sobrecarga (nos primeiros anos da pandemia).”

O Ministério da Saúde defendeu, em nota, a criação da Rede de Atenção Materna e Infantil “para ampliar o cuidado da saúde de mães e bebês no SUS”.

Outro programa importante da atenção primária no Brasil é o Médicos pelo Brasil — lançado pelo governo Bolsonaro em 2019, mas cujo primeiro edital só foi publicado em dezembro de 2021. Esse programa substituiu o Mais Médicos, lançado em 2013 pelo governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). A contrariedade ao modelo dos Mais Médicos, principalmente pela participação de profissionais cubanos como bolsistas, foi uma das principais bandeiras da candidatura de Bolsonaro em 2018.

De acordo com o Ministério da Saúde, o modelo atual garante “melhores condições de trabalho, de salários e benefícios para os profissionais”. As contratações ainda estão em curso, por isso ainda é difícil comparar o alcance do novo programa, mas a pasta garante que, “até o fim de 2022, 4,6 mil (médicos) já estarão trabalhando”.

Entretanto, para Rosana Onocko Campos, essa lacuna já é um problema. “Enquanto essas vagas não são preenchidas, as prefeituras seguem com menos médicos em atendimento — um número menor do que o do corpo profissional do Mais Médicos”, diz a presidente da Abrasco.

Muitas demandas, verbas insuficientes

Em abril, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou um dado que, à primeira vista, poderia ser um bom sinal: em 2019, as despesas com saúde no Brasil corresponderam a 9,6% do Produto Interno Bruto (PIB), um percentual maior que a média (8,8%) de países selecionados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Também foi o maior percentual para o Brasil desde 2010.

Entretanto, a maior parte dos gastos (5,8%) saiu dos bolsos das famílias, com uma parcela menor (3,8%) de despesas do governo. Esse gasto público fica abaixo da média da OCDE (6,5%).

“Se você olhar só para o financiamento público, que é uma prerrogativa de um sistema universal como é o SUS e o NHS, que é o sistema inglês, você vai ver que o Brasil tem uma proporção de gastos públicos muito menor do que os países da OCDE e até mesmo do que dos Estados Unidos, que um sistema arquetípico privado”, aponta Arthur Aguillar, do Ieps.

“A primeira coisa que a gente tem que resolver é como aumentar o orçamento do SUS. O Brasil está envelhecendo, e o tipo de doença que as pessoas mais velhas têm, em geral, custam mais caro para o sistema, que são as doenças crônicas não transmissíveis, como câncer, diabetes, doenças cardiovasculares… Essas coisas fazem com que você precise de mais recursos.”

Com base no projeto enviado pelo governo ao Congresso, uma nota técnica do Congresso calculou que a proposta orçamentária para o Ministério da Saúde em 2023 terá a menor verba desde 2014 em valores reais — ou seja, já consideradas as variações da inflação. Em comparação com orçamento autorizado para 2022, a proposta orçamentária para o ministério tem queda real de cerca de R$ 16,6 bilhões.

Para cumprir o gasto mínimo em saúde determinado pela Constituição, o governo conta com R$ 9,9 bilhões de emendas do relator, que são criticadas pela falta de transparência e sustentam ações não planejadas diretamente pelo ministério. Segundo a nota técnica do Congresso, a destinação desse tipo emenda para cumprir o piso da saúde “não encontra previsão legal” e deverá ser alterada pelos parlamentares.

*Colaboraram André Biernath e Giulia Granchi, da BBC News Brasil em São Paulo

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