- Author, Alessandra Corrêa
- Role, De Washington para a BBC News Brasil
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Nas manchetes sobre a epidemia de overdoses que devasta os Estados Unidos e deixa mais de 100 mil mortos por ano, o maior destaque costuma ser dado ao opioide sintético fentanil. Mas as mortes provocadas por drogas estimulantes, principalmente metanfetamina e cocaína, também vêm crescendo vertiginosamente no país.
Diferentemente do fentanil e outros opioides, para os quais existe a possibilidade de tratamento com metadona, buprenorfina ou naltrexona, não há nenhum medicamento aprovado pela FDA (Food and Drug Administration, agência do governo responsável pelo controle de medicamentos) para tratar da dependência de estimulantes.
Diante dessa crise de saúde pública, o Estado da Califórnia iniciou recentemente um projeto-piloto que tenta combater o problema de uma maneira inovadora: pagando usuários para que deixem de usar drogas.
Essa abordagem, conhecida como manejo de contingência, é considerada por muitos especialistas e agências de saúde a mais eficaz entre os tratamentos atualmente disponíveis para a dependência de estimulantes.
A estratégia já é usada há anos em alguns estudos, em projetos com financiamento privado e também pelo Departamento de Assuntos de Veteranos dos EUA, responsável por serviços de saúde para os veteranos de guerra americanos.
No entanto, até recentemente, não havia a possibilidade de o Medicaid, o programa de saúde social para pessoas de baixa renda nos Estados Unidos, financiar esse tipo de projeto, o que limitava o seu alcance.
Agora, as regras foram modificadas para permitir que o Medicaid cubra iniciativas de manejo de contingência no combate ao abuso de drogas, e a Califórnia é o primeiro Estado onde a estratégia está sendo implementada.
O projeto, chamado de Recovery Incentives Program (Programa de Incentivos à Recuperação, em tradução livre), está sendo adotado inicialmente em clínicas de 24 dos 58 condados da Califórnia.
Durante 24 semanas, os participantes são submetidos regularmente a testes de urina. Cada vez que o teste vem negativo para a presença de estimulantes, recebem como recompensa um incentivo financeiro, na forma de um vale-presente para ser usado em supermercados ou lojas.
O primeiro vale-presente é de 10 dólares (cerca de R$ 50), e o valor vai aumentando à medida que o paciente progride. Como nos primeiros três meses o paciente precisa ir ao menos duas vezes na semana para fazer o teste, na primeira semana, cumprido todos os requisitos, ele ganhará pelo menos 20 dólares (cerca de R$ 100).
Um participante que consiga chegar ao fim das 24 semanas sem nenhum teste positivo poderá receber um valor total máximo de 599 dólares (cerca de R$ 2.480), que é o limite para que o prêmio não seja considerado renda pela receita americana.
Ao fim desse período, os pacientes não receberão mais vales-presente, mas continuarão a ser acompanhados e ter acesso a terapia, aconselhamento, serviços comunitários e de prevenção de recaídas por pelo menos mais seis meses.
Enquanto nos três meses iniciais do tratamento, os participantes devem comparecer no mínimo duas vezes por semana à clínica para serem testados, após esse período a exigência é de uma vez por semana. Os que testarem positivo para a presença de drogas, não receberão vale-presente naquela ocasião, mas poderão continuar no programa e tentar novamente no teste seguinte.
“O projeto está aberto para outros Estados, mas a Califórnia foi o primeiro a participar, então há muito interesse em sobre como será a implementação aqui”, diz à BBC News Brasil o médico Brad Shapiro, diretor do Programa Ambulatorial de Tratamento de Opiáceos do Hospital Geral de São Francisco, uma das instituições participantes do projeto-piloto.
O médico ressalta que o projeto na Califórnia, além de ser o primeiro financiado pelo Medicaid, segue um formato rigoroso, “que se aproxima dos formatos de pesquisa que têm demonstrado muito sucesso”.
“Isso tudo é bastante novo e empolgante”, afirma Shapiro, que também é professor da Universidade da Califórnia em San Francisco (UCSF).
Impacto devastador
Das mais de 110 mil mortes por overdose registradas nos Estados Unidos no ano passado, o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde) estima que cerca 75 mil envolveram o opioide sintético fentanil.
Mas, em muitos desses óbitos, o fentanil não era a única droga presente, e estava misturado a estimulantes. Outras mortes são provocadas exclusivamente por estimulantes, especialmente metanfetamina e cocaína.
Dados do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (NIDA, na sigla em inglês), parte dos Institutos Nacionais de Saúde, a principal agência do governo americano dedicada à pesquisa médica, mostram que, desde 2015, houve um crescimento acelerado nas mortes por overdose de estimulantes.
O número de óbitos envolvendo estimulantes, tanto em combinação com opioides quanto usados isoladamente, passou de 12.122 em 2015 para 53.495 em 2021. Mortes envolvendo especificamente metanfetamina, que somavam 547 em 1999, chegaram a 32.537 em 2021.
O problema afeta todo o país, tanto grandes cidades quanto zonas rurais. Na Califórnia, a situação é agravada pela crise da falta de moradia, com mais de 170 mil moradores de rua, maior número entre os Estados americanos. Segundo especialistas, o uso de estimulantes, principalmente metanfetamina, é um problema grave entre essa parcela da população.
De acordo com o Departamento de Serviços de Saúde da Califórnia (DHCS, na sigla em inglês), 65% das mortes por overdose de drogas no Estado em 2021 envolveram estimulantes, um salto em relação aos 22% registrados dez anos antes.
“É muito grave. É uma emergência real. Estamos vendo (o número de mortos) dobrar, triplicar”, afirma Shapiro. “Na verdade, estamos falando de duas epidemias, acontecendo ao mesmo tempo e interligadas: a de fentanil e a de metanfetamina. E muitas pessoas estão usando ambas as substâncias.”
O médico ressalta que a metanfetamina tem um impacto devastador mesmo nos que sobrevivem. “Nós vemos sequelas terríveis, impactos no coração, pulmões, dentes, cérebro”, afirma.
“É trágico ser testemunha disso diariamente. Você vê pessoas relativamente jovens com problemas de saúde crônicos terríveis e que, mesmo quando eventualmente se recuperarem do transtorno por uso de metanfetaminas, enfrentarão isso pelo resto de suas vidas.”
Muitos usuários sofrem graves consequências de saúde mental. “Vemos pessoas com sintomas psicóticos que demoram muito para serem resolvidos ou nunca se resolvem totalmente”, observa Shapiro.
‘Estratégia apoiada por evidências científicas’
Como não há tratamento farmacológico, a dependência de estimulantes é considerada uma das mais difíceis de se combater. Segundo o CDC, nesses casos, “o manejo de contingência é a estratégia de tratamento mais amplamente apoiada por evidências científicas”.
O DHCS lembra que o manejo de contingência “demonstra resultados robustos, incluindo redução ou interrupção do uso de drogas e maior permanência em tratamento (do que em outras abordagens)”.
Esse tipo de intervenção está baseada nos princípios de reforço positivo. “Não é questão de pura equivalência econômica. As pessoas respondem a recompensas de maneiras específicas, e é disso que estamos fazendo uso. Isso tem a ver com o sistema de recompensa do nosso cérebro”, ressalta Shapiro.
De acordo com o DHCS, “receber incentivos, como um vale-presente, pode ajudar a ativar o sistema de recompensa do cérebro na ausência do uso de estimulantes. Com o tempo, a obtenção de incentivos pode ajudar a apoiar e reforçar a recuperação”.
Na definição do CDC, “embora possa assumir várias formas, o manejo de contingência consiste em fornecer recompensas significativas (muitas vezes financeiras) a indivíduos que recebem tratamento e que cumprem determinados objetivos: adesão ao tratamento, participação em reuniões e consultas ou exames de urina negativos para drogas”.
“Estratégias que combinam manejo de contingência com terapia cognitivo-comportamental ou uma abordagem de reforço comunitário produzem os melhores resultados em estudos clínicos”, salienta a agência.
A eficácia do manejo de contingência no tratamento de dependência de estimulantes é demonstrada em vários estudos reconhecidos pelo NIDA, entre eles uma meta-análise publicada em 2021 pela revista científica JAMA Psychiatry, editada pela Associação Médica Americana (AMA), segundo a qual 82% dos estudos clínicos randomizados sobre o tema relataram “aumentos significativos de abstinência”.
Além disso, desde 2011, o Departamento de Assuntos de Veteranos usa o manejo de contingência como principal tratamento para milhares de veteranos de guerra dependentes de estimulantes. O departamento já publicou diversos estudos demonstrando resultados positivos, entre eles uma análise na qual mais de 90% das amostras dos participantes foi negativa para a presença de estimulantes.
Shapiro lembra que estudos mostram a eficácia do manejo de contingência não apenas em relação ao abuso de metanfetamina e cocaína, mas também em várias outras situações, como ajudar pessoas a manter compromissos e consultas médicas ou tomar seus remédios regularmente.
“É uma intervenção muito robusta para todos os tipos de comportamento”, salienta.
No entanto, apesar desses sucessos, até recentemente uma lei federal “anti-propina” — que proíbe oferecer “remuneração para induzir ou recompensar” pacientes — impedia que o Medicaid incluísse entre seus benefícios tratamentos que usam manejo de contingência.
“Havia a preocupação de que seria considerado propina e uma violação da lei federal”, observa Shapiro. “Essa tem sido uma das principais barreiras para iniciar esse tipo de programa, embora tenhamos décadas de evidências que sugerem que é incrivelmente eficaz.”
Agora, porém, as regras foram mudadas para esclarecer que o manejo de contingência não se enquadra em “propina”, e os Estados poderão começar a implementar seus programas, com cobertura do Medicaid.
A Califórnia foi o primeiro Estado do país a receber aprovação federal para implementar um projeto-piloto e avaliar sua eficácia, mas os demais logo poderão fazer o mesmo.
Funcionamento e limitações
O custo do projeto-piloto na Califórnia é calculado em cerca de 50 milhões de dólares (cerca de R$ 250 milhões), que incluem contratação e treinamento de pessoal, material para os testes e vários outros gastos. A maior parte desse montante será paga com financiamento federal.
Para participar, os usuários devem ser beneficiários do Medicaid no Estado (Medi-Cal) e passar por uma avaliação para ver se se enquadram nos critérios médicos para o tratamento. Pessoas de todas as idades podem participar, mas menores de 12 anos precisam de consentimento dos pais.
O DHCS destaca que os vales-presente não poderão ser usados para comprar álcool, cigarros, maconha ou bilhetes de loteria. Além dos incentivos financeiros, os participantes receberão serviços complementares, como aconselhamento individual e em grupo e apoio de pares, “para apoiar seus caminhos de recuperação”.
Shapiro ressalta que, entre os pontos avaliados, estarão quantos participantes serão capazes de enviar um ou mais testes negativos para drogas, quanto tempo vai levar até que consigam isso, e se conseguirão continuar (sem usar drogas) durante os seis meses do programa.
Outro ponto importante é se aqueles que fracassarem no início e tiverem testes com resultado positivo seguirão no projeto e continuarão tentando. “Se permanecerem, a intervenção terá mais tempo para funcionar, e maior será a chance de eventualmente reduzirem seu consumo e apresentarem um teste negativo”, afirma o médico.
Após o fim do projeto-piloto, Shapiro espera que o Medicaid inclua o manejo de contingência como um dos benefícios cobertos de forma permanente.
Mas, apesar de ser considerado a melhor estratégia para combater o abuso de estimulantes, essa abordagem também tem limitações. Os efeitos positivos não duram para sempre em todos os pacientes, e alguns terão recaídas após deixarem de receber incentivos financeiros.
Há médicos que defendem seu uso por tempo indefinido para determinados pacientes, da mesma maneira que algumas pessoas recebem tratamento contínuo com um medicamento farmacêutico.
Shapiro ressalta que é importante continuar acompanhando esses pacientes e oferecendo aconselhamento e outros serviços. “Quando você chega ao final de uma intervenção como essa, é importante que não seja a última interação com a pessoa”, diz o médico. “Temos um relacionamento de longo prazo com os pacientes.”
Há ainda críticos que simplesmente rejeitam a ideia de pagar usuários de drogas para que fiquem sóbrios. “Não culpo as pessoas por terem esse tipo de sentimento. A dependência de drogas tende a ser bastante estigmatizada e muitas vezes incompreendida”, diz Shapiro.
“Acredito que algumas pessoas simplesmente não dariam nem um centavo para (ajudar) alguém que usa drogas. Não pagariam para comprar um remédio ou por outro tipo de tratamento. E, para essas pessoas, eu não tenho muito a dizer”, afirma.
Mas o médico ressalta que há outros que realmente estão dispostos a ajudar e aceitam que parte de seus impostos sejam usados para isso, mas simplesmente se sentem desconfortáveis com a ideia de pagar diretamente os usuários para que fiquem sóbrios.
“Para essas pessoas, o que eu costumo dizer é: ‘Que ótimo que vamos gastar parte do dinheiro dos seus impostos para ajudar (um usuário). Você não prefere que seja gasto em algo que realmente funciona?'”
Fonte: BBC
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