- Julia Braun
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Verónica Guillent, de 25 anos, conta que deixou o pequeno povoado onde morava na Venezuela em direção ao Brasil levando apenas uma garrafa de água, dois pães e um pacote de biscoitos para comer.
A venezuelana é mãe solteira de Jeyver, de 7 anos, Keyner, de 4, e Josely, de apenas 1 ano. Eles saíram de Barbacoa, no norte da Venezuela, no dia 12 de agosto de 2021, em direção ao Brasil.
A viagem até a fronteira durou cinco dias, durante os quais Verónica contou com a ajuda de outros migrantes que seguiam o mesmo caminho para alimentar as crianças.
“Saí da Venezuela sem nem meio bolívar no bolso. Quando as crianças começaram a reclamar de fome, pessoas muito boas que encontramos no caminho deram o que comer aos dois mais velhos e leite para a mais nova”, contou a venezuelana a BBC News Brasil. “O que mais eles me perguntavam era quanto faltava para chegar”, lembra, com lágrimas nos olhos.
A viagem começou a pé. Quando chegaram à estrada principal que os levaria ao Brasil, Verónica e os filhos continuaram o percurso pedindo carona para estranhos, segundo a imigrante.
“Enfrentamos chuva e horas de caminhada. Também foi bastante assustador pedir carona, especialmente estando sozinha”, relata. “Entre um trecho e outro tínhamos que dormir na calçada, ao lado das rodovias. Eu, na verdade, não conseguia pregar os olhos – ficava o tempo todo vigiando as crianças”.
“Não recomendaria que outras mulheres fizessem o mesmo que fiz, porque sei que pode ser muito perigoso”.
A família teve que entrar no Brasil por rotas clandestinas devido ao fechamento da fronteira – a divisa com a Venezuela ficou bloqueada por quase dois anos por conta da pandemia de covid-19 e só foi liberada em fevereiro deste ano.
“Tivemos que andar por uma trilha bastante instável e eu caí com minha filha no colo quando estávamos passando por algumas poças. Mas andávamos com outras pessoas e elas me ajudaram”, conta.
Assim que chegou a Pacaraima, a cidade mais próxima da fronteira venezuelana, Verónica foi internada em um hospital. Ela relata que ficou sem comer durante toda a viagem para poder alimentar os filhos com o pouco que receberam de doações.
“Fiquei internada por três dias tomando soro pois estava desidratada, com febre, vômito e muita tontura”, conta.
Assim que teve alta, Verónica foi encaminhada para uma organização que acolhe mulheres imigrantes. Ali ela afirma ter recebido apoio para se registrar oficialmente no Brasil e emitir sua Carteira de Registro Nacional Migratório – o documento mais importante de um imigrante no Brasil.
Algumas semanas depois a família se mudou para Boa Vista, onde ela relata ter contado com a ajuda de uma senhora que a abrigou com os filhos por quatro meses. Logo depois, a solidariedade sorriu para ela outra vez: uma venezuelana que estava indo para o Rio Grande do Sul doou geladeira, camas, liquidificador e ventiladores para sua nova casa.
Atualmente Verónica trabalha informalmente, como diarista, manicure e lavando e passando roupas para os vizinhos. Ela é auxiliada pelo projeto “Ven, Tú Puedes”, iniciativa de acolhimento de imigrantes venezuelanos da organização de direitos humanos Visão Mundial, por meio do qual faz cursos de capacitação profissional.
“Recebi ofertas para empregos fixos, mas não pude aceitar porque não tenho com quem deixar as crianças”, diz. “Mas meu maior sonho é abrir meu próprio negócio no Brasil”.
Na Venezuela, a mãe solteira afirma que morava com a mãe e trabalhava como empregada doméstica, mas os US$ 5 (cerca de R$ 25) que ganhava por faxina não eram suficientes para alimentar a família.
“Mal conseguia comprar um pacote de fralda, um litro de leite e um pouco de amido de milho com esse salário. A situação econômica estava cada dia pior e as crianças não estava crescendo bem”, conta.
“Eu sempre pedia a Deus que meus filhos tivessem no Brasil o que não tive na Venezuela, e tudo o que faço é por eles. Eles são tudo para mim. Quando saí da Venezuela pensei: o que adianta deixar meus filhos com minha mãe para procurar emprego no Brasil por três meses, se eles vão passar fome na Venezuela? Preferi trazê-los. Passamos dificuldades, mas conseguimos”.
Histórias como a de Verónica não são incomuns no contexto migratório. De acordo com pesquisa divulgada em dezembro pela ONU Mulheres, o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), as mulheres representam 54% da população venezuelana que permanece nos abrigos em Roraima.
O estudo mostra ainda que 91% das pessoas venezuelanas abrigadas têm filhos, mas a taxa de desemprego recai mais sobre as mulheres – enquanto quase 34% das venezuelanas abrigadas estão desempregadas, entre os homens este índice é de 28%.
Dados do projeto “Ven, Tú Puedes”, frequentado por Verónica, confirmam a realidade. Quase 60% das mães atendidas pela organização são chefes de família, ou seja, são responsáveis pela maior parte da renda do lar.
No último levantamento do governo federal, divulgado em dezembro de 2021, foram identificados 287 mil migrantes e refugiados venezuelanos regularizados vivendo no Brasil. A situação econômica e social da Venezuela é o principal motivo para a migração, segundo as Nações Unidas.
‘Podemos conquistar tudo sozinhas’
Quem também faz parte desse grupo de mães solteiras venezuelanas que decidiram se aventurar no Brasil é Jairobis Parras. Ela está no país desde novembro de 2021.
“Senti que precisava sair da Venezuela para dar melhores condições de vida para o meu filho, para que ele pudesse ter acesso a educação de qualidade e ter um futuro melhor que o meu”, disse a venezuelana de 31 anos à BBC News Brasil.
Jairobis deixou sua cidade natal de Bolívar, no estado de Monagas, acompanhada do filho Santiago, de 7 anos. Eles pegaram carona com um vizinho, que trabalha como caminhoneiro.
“Viajamos por dois dias e só paramos durante algumas horas para dormir, mas nem saímos do carro”, conta.
A venezuelana foi acolhida em Pacaraima por amigos e, logo depois de regularizar sua situação migratória, foi viver em Boa Vista com familiares. Sua mãe Noris, de 49 anos, chegou no Brasil há cerca de três anos com outros dois filhos para buscar tratamento para sua insuficiência renal.
“Um dos pontos altos de viver no Brasil até agora foi a qualidade das escolas daqui, que são muito melhores do que na Venezuela”, diz.
“Meu filho tem tido experiências incríveis e está até se consultando com um psicólogo. Sinto que ele não está mais com tantas dificuldades nos estudos ou tão rebelde”.
Jairobis também foi acolhida pela Visão Mundial, por meio da qual conseguiu emprego como caixa de supermercado em uma rede local.
A venezuelana tem deciência física e nasceu sem a mão esquerda. “Estava bastante insegura quando comecei a trabalhar, mas aos poucos fui conhecendo os colegas. Todos foram muito solícitos e me ajudaram com a adaptação”, conta.
Segundo Jairobis, as experiências que viveu em sua trajetória até o Brasil a ajudaram a se tornar mais confiante em relação à sua capacidade como mãe.
“Não esperava ter um filho e quando o Santiago nasceu estava sozinha, sem nenhuma ajuda do pai. Mas assim que ele chegou ao mundo me ensinou a ser mãe, a ser carinhosa, amorosa e atenta, coisas que não era antes”, diz.
“Vê-lo crescer dentro de mim trouxe experiências novas que nunca tinha vivido. Tenho lutado por ele”.
A venezuelana conta que agora ajuda outras imigrantes que também são mães solteiras a se adaptarem no Brasil, dando conselhos e acolhendo aquelas que precisam.
“Quero que outras mães que estejam se sentindo sobrecarregadas como eu já me senti saibam que não precisam de um marido para continuar. Podemos conquistar tudo sozinhas”.
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