- David Sillito
- Correspondente de Mídia e Artes
“Não era para ser um vídeo viral. Eu estava de pijama.”
Yasmine Bedward, gerente de redes sociais, comenta o momento em que sua opinião sobre a batalha judicial entre Johnny Depp e Amber Heard viralizou.
“Ninguém na minha vida real se importou com minhas ideias sobre esse assunto, então, como fazem os millenials, fui ao TikTok”, disse Bedward, de 30 anos.
Seu vídeo que compara os dois psicólogos que participaram do julgamento que envolve as celebridades já superou 4,3 milhões de visualizações — bem próximo dos índices de audiência do telejornal da noite na rede de televisão americana CBS.
Outra comparação: o número de pessoas que assistem todas as noites aos noticiários da TV nos Estados Unidos é de cerca de 18 milhões. O número de visualizações de vídeos no TikTok com a hashtag #justiceforjohnnydepp é de cerca de 18 bilhões no momento em que esse artigo é escrito.
O confronto nos tribunais entre as duas estrelas de Hollywood é um lembrete de que o conceito de “mídia de massa” ou de um meio dominado por poucas organizações de notícias está começando a ruir.
Na visão de alguns, isso pode ser profundamente problemático em alguns contextos.
Há dois processos em questão — um que é decidido pelo júri do tribunal e outro pelo público.
Desde os primeiros dias do julgamento, ficou claro que a internet estava amplamente ao lado de Johnny Depp e profundamente desconfiada de Amber Heard.
Enquetes online e buscas por comentários nas redes sociais apareciam em direta contradição com o resultado de um julgamento anterior ocorrido no Reino Unido, onde as alegações de que Heard sofreu abuso doméstico foram consideradas “substancialmente verdadeiras”.
A maneira como o caráter da atriz e o seu depoimento foram colocados em dúvida no julgamento dos EUA preocupa ativistas que defendem vítimas de violência doméstica.
A questão agora é: qual será o impacto desse veredicto? Depp salvou sua carreira e reputação, independentemente do que o júri decidiu?
Mas há também outra pergunta no “julgamento paralelo do TikTok”: quem está gerando todo esse tráfego online — e qual o efeito disso?
A Cyabra, uma empresa israelense que rastreia a desinformação online, acompanha o caso Depp x Heard há semanas. Ela verifica as contas que estão espalhando memes, vídeos e comentários e tenta avaliar se são contas genuínas.
Os resultados até agora são alarmantes, diz o porta-voz da empresa, Rafi Mendelsohn.
“Desde o início do julgamento, estávamos bastante interessados em ver o que as pessoas estão dizendo de verdade e quanto dessa conversa é movimentada por contas falsas.”
“Ficamos surpresos ao notar que quase 11% da discussão online em torno do julgamento foi conduzida por contas falsas, o que é um número muito alto”, afirmou Mendelsohn.
“Para se ter uma ideia, em discussões online, vemos em média cerca de 3% a 5% da conversa com participação de contas falsas”, acrescentou.
Só grandes eleições são parâmetro de comparação para uma discussão com essa proporção de robôs e contas falsas, disse ele.
Não é só a Cyabra que monitora esse avassalador apoio na internet em prol de Depp.
Amber Heard levantou a questão no início do julgamento. Ao longo dele, dois apoiadores de Heard, Cristina Taft e Daniel Brummit, foram diversas vezes ao tribunal da Virgínia para expressar preocupações sobre esse movimento online.
Eles escreveram um livro juntos chamado Amber Heard and Bots (Amber Heard e Robôs da Internet, em tradução livre).
“Vimos novas contas e novas postagens em janeiro e fevereiro”, disse Taft, observando que nesses dois meses, o jornal britânico Daily Mail publicou no YouTube duas gravações em áudio do ex-casal.
“Então percebemos que há novas contas no Twitter que postam esses áudios dois dias depois”, disse ela.
O problema é provar quem está por trás das contas falsas. Tudo o que se pode dizer é que esse padrão de contas falsas está se espalhando cada vez mais da política para outras partes da vida pública, de acordo com Mendelsohn, da Cyabra.
“Quando falamos de desinformação e contas falsas, muitas vezes as pessoas pensam em grandes campanhas geopolíticas, eleições, política em geral”, disse ele.
“Mas, na verdade, o que estamos vendo é que qualquer pessoa com reputação pública ou de alcance global é uma marca online”, diz. “Há um aumento no número de perfis inautênticos, mas é muito difícil saber quem está por trás das contas falsas.”
Mas 11% de contas falsas ainda significa que 89% são de verdade. O que está acontecendo com este caso?
A primeira resposta são os vídeos que saem do tribunal e fotos com a reação dos principais participantes.
Conseguimos observar as expressões faciais de uma maneira que é impossível até para as pessoas na sala da audiência e surgem momentos marcantes que não têm relação com a narrativa principal.
Houve o depoimento do porteiro, Alejandro Romero, que prestou seu testemunho via Zoom de dentro de seu carro, enquanto fumava um cigarro eletrônico e, ao final, simplesmente ia embora. É algo novo até para a justiça americana. A expressão no rosto da juíza Penney Azacarte ao final do depoimento de Romero foi prova suficiente do mundo novo de atrações online em torno de um assunto sério.
É também um quebra-cabeça. Duas pessoas apresentando uma visão completamente diferente de eventos que ocorreram a portas fechadas significa que milhões podem ver as provas por si mesmos e tomar suas próprias decisões. Todos nós podemos ser detetives e juízes.
Mas há algo talvez mais importante acontecendo. A violência doméstica é um tema que atinge a vida das pessoas em todo o planeta. Este caso tornou-se simbólico.
Para Haider Ali em Islamabad, Paquistão, é uma questão pessoal. O estilista de 27 anos, cujo comentário sobre o julgamento no YouTube atraiu milhões de visualizações, disse que sofreu violência e se identifica com o que Depp afirma ter enfrentado.
“Eu estava no Twitter e vi uma transmissão ao vivo. Assisti por alguns minutos e percebi que havia muitas coisas com as quais eu poderia me identificar quando ouvi Johnny Depp testemunhar no tribunal”, disse ele à BBC.
“Porque havia muitas semelhanças entre o caso de Johnny Depp e o meu. Decidi postar os vídeos do julgamento no meu canal do YouTube na esperança de criar uma comunidade de pessoas que também foram vítimas de abuso”, disse ele.
“Meu objetivo era trazer à luz pessoas que foram silenciadas.”
E Yasmine Bedward, que tem recebido milhões de visualizações por seus TikToks, também se sente pessoalmente conectada com o caso.
“Eu me identifiquei com ele [Depp]… certas pessoas são vistas de uma determinada maneira e automaticamente são consideradas culpadas ou simplesmente pessoas ruins”, disse ela.
“Como uma mulher negra na América, eu tive experiência com isso… algumas pessoas são vistas como culpadas sem que haja provas. Foi o que me trouxe para isso.”
E há outra questão que foi levantada repetidamente por mulheres que acompanharam o caso. Amber Heard foi embaixadora de um movimento. Na esteira do #MeToo, ela se tornou uma porta-voz da União Americana pelas Liberdades Civis, uma organização que também representa vítimas de abuso doméstico.
Para Bedward, isso é bastante problemático. “É alguém que se tornou a face de um movimento pelo qual as mulheres lutam há anos, e ter alguém que não é verdadeira é prejudicial não apenas para a organização, mas acho para as mulheres em geral”, disse.
Portanto, considerar o caso apenas como noticiário de celebridades é deixar de entender as diversas maneiras pelas quais as pessoas estão se conectando com o caso.
Mas o tamanho desse envolvimento e o tom também estão causando preocupação em algumas pessoas.
Deborah Vagins, responsável pela rede contra a violência doméstica União Americana pelas Liberdades Civis, acha que o tratamento dado a Amber Heard repercutirá amplamente – e não de uma boa maneira.
“As vítimas estão assistindo a isso e estão pensando em como serão tratadas caso façam uma denúncia”, afirmou.
Esse julgamento público sobre o caso de difamação de reputação terá consequências.
Mas há também outra maneira de ver as coisas.
Este é um caso em que todos tiveram o mesmo acesso ao conteúdo do processo. O jornalista que está no tribunal vê a mesma coisa que o público em casa. O campo foi nivelado. Esse acesso permitiu que milhões de pessoas se engajassem e discutissem o caso.
Também aboliu fronteiras do jornalismo tradicional, de sua linguagem e convenções estilísticas.
Existem robôs e contas falsas na internet, mas a grande maioria do tráfego é composta por pessoas reais que querem participar de uma barulhenta conversa global sobre justiça, verdade e conflito nos relacionamentos.
Tudo pode ter acontecido de uma forma ruidosa e brusca, mas o caso mobilizou pessoas que muitas vezes sentem que o noticiário é distante dos temas que realmente as afetam.
Esse artigo, por exemplo, só será lido por uma pequena fração do número de pessoas que acompanham Yasmine Bedward e Haider Ali.
E só para lembrar um número dito antes aqui: 18 bilhões de visualizações do TikTok.
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