Silvio Caldas foi um dos maiores cantores do Brasil. Num tempo (anos 1940 e 1950) em que dividia o palco com Francisco Alves, Orlando Silva e Carlos Galhardo. Assinou contrato milionário (para os padrões da época) com a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Antes da estrear, veio visitar amigos no Recife. Encantado com a cidade, foi ficando.
Na véspera do programa, os diretores da rádio, desesperados, ligaram para Esmaragdo Marroquim (editor do Jornal do Comercio). E pediram ajuda para localizar o cantor. Deu certo. Ele foi, enfim, encontrado pelo jornalista Rui Cabral. No bar Maxime (Pina). Informado de que deveria voltar ao Rio, Silvio Caldas pegou um guardanapo de papel, escreveu mensagem, e pediu a Rui que passasse um telegrama que dizia: “Impossível partir. Safra cajus começando”.
Uma equipe foi mobilizada para embarcar o cantor. Dia seguinte estreou o programa com grande sucesso. Mas com saudades dos cajus daqui.
Bom lembrar que cajueiro é planta nativa do Nordeste brasileiro. E, também, do Norte. Seu nome científico (Anacardium occidentalis L.) refere o aspecto físico do fruto – Ana (como) Kardia (coração). O caju, aka’iu (noz que produz), já fazia muito sucesso entre os índios.
Há notícias de “Guerra dos Cajus” entre aldeias, nas safras, pelo controle de suas matas. Usavam também as castanhas para contar anos. Uma para cada safra. Tantas castanhas, tantos os anos de vida. O sentido permanece até hoje: “de caju em caju” (de ano em ano); “chupou mais um caju do balaio de sua existência”, “mais um caju na árvore da sua vida”.
Sem esquecer que o fruto do cajueiro é a própria castanha – com casca dura e amêndoa protegida por líquido viscoso, cáustico e inflamável. “Sua casca é mais amargosa que o fel. Se tocarem com ela nos beiços, dura muito aquele amargor e faz empolar toda a boca; pelo contrário, este caroço, assado, é muito gostoso”, assim a descreveu Pero de Magalhaes de Gândavo (em Tratado da Terra do Brasil, 1576).
Com os índios, aprendemos a assar essas castanhas em processo que se usa até hoje. Aos poucos, acabaram transformadas em iguaria. Valorizada no mundo todo. Há também quem aprecie a castanha verde – o maturi (do tupi matu’ri, “o que está por vir”), imortalizada por Jorge Amado em Tieta do Agreste, com a famosa receita de Frigideira de Maturi.
Alimentando a castanha, temos o próprio caju – parte carnosa amarela, vermelha ou numa mistura variada dessas cores. Com sua polpa se faz sorvete, suco e doces (em calda, de corte, passas) – um dos primeiros preparados, nas casas-grandes, por portugueses, que não conheciam a fruta antes de chegar por aqui. Sem contar bebidas – licor de caju (suco da fruta mais álcool à 400, água e açúcar), mocororó (espécie de vinho, mais leve e menos encorpado), cajuína (suco filtrado, engarrafado e cozido em banho-maria – inventado, segundo Rachel de Queiroz, pelo farmacêutico cearense Rodolpho Teófilo) e jeropiga (cajuína com aguardente) – “cajuína cristalina em Teresina”, como nos versos de Caetano Veloso.
Tanto sucesso fez entre o colonizador, que viraram produto de exportação, levados para Ásia e África, em naus portuguesas. Segundo a FAO, maior produtor de castanha hoje é o Vietnam. Seguido de Índia, Costa do Marfim, Filipinas, Tanzânia, Guiné-Bissau, Benin, Moçambique.
O Brasil aparece apenas em nono lugar. Provavelmente porque muitos de nossos cajueiros foram substituídos por cana-de açúcar, coqueiro e concreto. “Os homens construíram suas moradas sobre um cemitério de plantas, assim escreveu Mauro Mota em Cajueiro Nordestino.
Guilherme Piso, que veio para o Brasil com Nassau, considerava essa fruta “uma graça divina concedida aos habitantes destas regiões”. O padre Simão de Vasconcelos, um dos primeiros historiadores da América portuguesa, dizia fazer “parte da felicidade dessa gente”. Para Mauro Mota, “não há fruto de tanta importância, na vida social e econômica do nordestino”.
Já o poeta Edmir Domingues fala “do antigo amor sempre aos domingos, num campo de cajus e de mangabas” (em Memória do Amor). Na pintura está em quadros importantes como A Mulher Mameluca, de Albert Eckhout, no Museu Nacional da Dinamarca. São comuns, entre nós, expressões como “caju é que nasce de cabeça pra baixo”; “homem é que nem caju: por doce que seja, sempre tem ranço”; “quando você ia aos cajus, eu já voltava com as castanhas assadas”; “cajueiro doce é que leva pedrada”; “caju de beira de estrada tem ranço ou bicho”.
Sem esquecer a chuva de caju, no finzinho do período seco, referida em poema, com este mesmo nome, por Joaquim Cardozo. Certo estava então o cantor Silvio Caldas, que deve ter guardado para sempre o doce sabor dos cajus.
RECEITA: Frigideira de Maturi
Azeite, 2 dentes de alho (socado com sal), 1 cebola picada, 1 tomate picado, 500 g de maturi picado, 150 g de camarão seco (descascado, lavado e demolhado), ¾ de xícara de água, 4 colheres de sopa de coentro picado, sal e pimenta, 100 ml de leite de coco, 3 ovos, rodelas de cebola roxa, tomate e pimentões
· Refogue em azeite, alho, cebola, tomate e maturi. Junte camarão e água. Cozinhe em fogo brando até o maturi amaciar. Junte coentro e leite de coco. Tempere com sal e pimenta
· Bata as claras em neve. Junte as gemas. Misture uma parte ao refogado de matui. Ponha o refogado em um refratário. Despeje o restante de ovos batidos. Decore com rodelas de cebola, tomate, pimentões. Leve ao forno até dourar
*É pesquisadora de Gastronomia e escreve quinzenalmente neste espaço
Fonte: Folha PE
Autor: Letícia Cavalcante