- Author, Redação
- Role, BBC News Mundo
Muito antes dos outdoors de Beyoncé, das roupas escandalosas de Lady Gaga, do atrevimento cênico de Madonna, da sensualidade explícita de Marilyn Monroe e das excentricidades de Michael Jackson, uma mulher abriu o caminho para as celebridades que viriam no futuro.
Foi a lendária atriz francesa Sarah Bernhardt – “a Divina”, como era conhecida no seu tempo.
Bernhardt morreu em Paris, na França, em 1923. Ela foi uma das mulheres mais famosas do mundo no final do século 19 e começo do século 20, sendo considerada a “primeira celebridade” mundial.
A atriz protagonizou diversas das mais populares obras teatrais clássicas e francesas. Lotou teatros, transitou pelos círculos mais exclusivos e colecionou manchetes em todo o continente europeu, no Reino Unido, nos Estados Unidos e na América Latina.
Mas a sua fama não foi apenas consequência de seu talento no palco. Foi também fruto do seu formidável talento para promover sua imagem e usar a imprensa para criar uma marca distinta para si própria.
Para marcar o 100° aniversário da sua morte, o museu Petit Palais, em Paris, inaugurou uma exposição intitulada Sarah Bernhardt: e a mulher criou a estrela.
A exposição destaca seu talento visionário como atriz, diretora, empresária, escultora e ícone da moda, além do seu passado como cortesã e os desafios que enfrentou contra as barreiras masculinas, os papéis de gênero e a moralidade da época.
De cortesã a ‘mulher moderna’
Sarah Bernhardt nasceu em 1844. Era filha de uma cortesã holandesa de origem judia e do seu amante Edouard Bernard, cuja identidade ficou oculta por muito tempo.
De saúde frágil e temperamental, Bernhardt morou com uma tia durante a infância e frequentou uma escola católica em Versalhes, na França, até ingressar no Conservatório de Música e Teatro aos 16 anos de idade, custeada por um dos amantes da mãe.
Em 1862, Bernhardt passou a integrar a renomada instituição teatral Comédie Française, na qual permaneceu por apenas um ano devido a desentendimentos e críticas desfavoráveis que recebeu por sua atuação.
Ela abandonou abruptamente o teatro em troca de uma vida de cortesã, formando relações amorosas com diversos membros da aristocracia europeia. Com um deles, Bernhardt teve um filho ilegítimo aos 20 anos de idade.
Ela voltou ao palcos para sustentar o filho, encontrando um ambiente mais favorável para sua personalidade no Teatro Odéon, em Paris – uma companhia menos rígida, com produções modernas e ousadas.
Ali, ela começou a ser reconhecida pela sua “voz dourada” e pela intensidade da sua interpretação de papéis clássicos e românticos.
Seu último papel no Odéon foi o de rainha da Espanha na peça Ruy Blas, de Victor Hugo. O próprio autor assistiu à estreia e, depois da apresentação, pôs-se de joelhos e beijou a mão da atriz.
Depois que Bernhardt se estabeleceu como uma das principais atrizes dramáticas da França, a Comédie Française a recrutou novamente, com um contrato mais favorável. Ela regressou em 1872 e ficou na companhia por oito anos, até que decidiu assumir o controle dos seus assuntos profissionais.
O auge da carreira da atriz coincidiu com um novo movimento entre as mulheres do século 19. Elas começaram a exigir maior participação na esfera pública, afastando-se dos antigos estereótipos do “sexo frágil”.
O teatro oferecia o espaço necessário para interpretar papéis tradicionais de forma subversiva. Bernhardt teve grande sucesso interpretando personagens masculinos, como o trovador Zanetto em Le Passant, de François Coppée, Napoleão 2° em L’Aiglon (“A Águia”), de Edmond Rostand, e – o mais famoso – Hamlet, de William Shakespeare.
Ela colocou a crítica e o público francês a seus pés. Bernhardt produziu e promoveu com sucesso uma imagem de si própria como mulher excêntrica, independente, astuta nos negócios e sexualmente livre.
A atriz fez uso das suas origens misteriosas, sua etnicidade e criação incomum para construir a personalidade que se tornaria típica da “nova mulher” do final do século 19.
Seu lema pessoal – quand même, “apesar de tudo” – era tecido na sua roupa de cama, impresso nos seus cartões de visita e gravado elaboradamente em um revólver. Era uma demonstração do seu comportamento combativo frente a todos os aspectos da sua vida.
A primeira estrela global
Da mesma forma que fazem hoje as estrelas do pop moderno, Bernhardt moldou cuidadosamente sua imagem como uma figura mítica.
Em uma época sem redes sociais, ela procurava constantemente formas de aparecer na imprensa para se promover, seja com fotos dramáticas ou sem roupas, ou com seu comportamento considerado extravagante, como andando de bicicleta ou voando de balão.
Ela tinha gatos-do-mato e outros animais selvagens como bichos de estimação e contava que tinha o costume de se deitar em um caixão para relaxar e estudar seus textos.
Bernhardt levava uma vida suntuosa que, muitas vezes, deixou-a quase à beira da falência. Por isso, durante a baixa temporada teatral na França, ela decidiu fazer turnês internacionais pelo continente europeu, Reino Unido, Canadá, Estados Unidos e América Latina.
Seu sucesso em Londres, por exemplo, foi espetacular. Mesmo interpretando em francês, a audiência de fala inglesa ficou cativada pela sua voz e gesticulações.
Ela deu recitais privados nas mansões dos aristocratas, promoveu exposições públicas de suas esculturas e pinturas e reuniu-se com altos membros da realeza, da política e dos círculos artísticos e intelectuais.
Certa vez, o dramaturgo Oscar Wilde a recebeu com lírios, chamando-a de “a divina” e “a incomparável”. Ele também escreveu uma peça de teatro em francês, especificamente para Bernhardt: Salomé, que acabou sendo censurada pela sua temática indecorosa.
Mas foram suas turnês pelo continente americano a partir de 1880, particularmente nas vezes em que cruzou os Estados Unidos, que fizeram Sarah Bernhardt se firmar como primeira estrela global.
Milhares de pessoas abarrotaram o porto norte-americano de Nova York para a chegada do navio L’Amérique, que a diva havia fretado para transportar sua companhia de atores através do Atlântico. Uma embarcação de escolta hasteou a bandeira da França e uma banda executou o hino francês, a Marselhesa.
A multidão que ameaçava assediar a estrela era tão grande que ela precisou se refugiar em seu camarote.
Depois de instalada na sua suíte no luxuoso Hotel Albemarle, em Nova York, Bernhardt recebeu uma multidão de jornalistas vestida com um roupão branco e um cinto largo azul-turquesa e dourado. Naquele momento, as entradas para suas apresentações, a preços exorbitantes para a época, já estavam esgotadas – mesmo que faladas em francês.
Essa viagem para os Estados Unidos marcou a estreia de Bernhardt em A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas. Sua interpretação tornou-se uma das mais famosas do seu repertório, repetida mais de 3 mil vezes.
Conta-se que, assim que a atriz pronunciou suas primeiras palavras, a audiência ficou hipnotizada. “Na voz de Sarah Bernhardt, havia mais do que ouro”, comentou um crítico. “Havia trovões e relâmpagos, o céu e o inferno.”
Quando se apresentou em Boston, o jornal local declarou que “frente à presença de semelhante perfeição, é impossível fazer uma análise”.
A turnê de 1880-81 durou sete meses. Bernhardt fez 156 apresentações em 51 cidades.
Seis anos mais tarde, ela estaria de volta aos Estados Unidos, atravessando o país – como sempre o faria – em um trem especial com uma locomotiva e três carros ocupados pela companhia.
Bernhardt chegou a organizar a instalação de uma grande lona de circo para suas apresentações, em lugares onde não havia teatros disponíveis.
Tragédia no Brasil
A turnê de 1887 foi mais longa e incluiu a América Latina, que ela visitaria várias vezes. Ao longo da carreira, a estrela se apresentou em Cuba, no México, Panamá, Peru, Chile, Uruguai, Argentina e no Brasil.
Ela visitou o Brasil em três ocasiões e foi recebida com adoração pela comunidade de imigrantes da França e pela elite que falava francês. Mas seus biógrafos contam um evento trágico ocorrido na sua última turnê brasileira, em 1905.
Na apresentação final da ópera Tosca no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, a protagonista deveria saltar de um parapeito para a morte. Colchonetes ocultos deveriam amortizar a queda da atriz, mas, por alguma razão, eles não estavam colocados corretamente e Bernhardt sofreu uma grave lesão no joelho.
A diva já vinha sofrendo problemas há anos com seu joelho direito e usava frequentemente uma bengala para caminhar.
A lesão sofrida no Rio causou forte inchaço e ela não conseguiu sair para receber os aplausos. Mesmo assim, a atriz decidiu não postergar sua volta iminente de navio para Nova York. Por isso, ela acabou passando três semanas sem receber atendimento médico.
Apesar das dores crônicas e das limitações de mobilidade, Bernhardt manteve seu intenso itinerário de apresentações e organizou quatro “turnês de despedida”, como ela chamava.
Por fim, com o estado do joelho cada vez pior, Sarah Bernhardt precisou ter sua perna amputada quase à altura da pélvis, em 1915.
As despesas médicas, seus constantes gestos filantrópicos e altos gastos deixaram a estrela com muito pouco dinheiro. Por isso, com ou sem perna, ela precisava continuar atuando – mas sua vaidade não permitiu que ela usasse uma prótese ou muleta durante as apresentações.
Bernhardt projetou uma espécie de liteira, na qual entrava em cena carregada e recitava seus famosos monólogos, recostada em um divã ou apoiada em alguma peça do cenário.
Mesmo incapacitada e com o passar dos anos, os espectadores nunca deixaram de se encantar com sua mística e magia, aplaudindo-a apaixonadamente.
Sarah Bernhardt continuou trabalhando até o fim. Em março de 1923, foi contratada para atuar em um filme chamado La Voyante. Ela estava muito fraca e um dos quartos da sua casa foi transformado em estúdio, com cenografia, luzes e câmeras.
Mas ela sofreu um colapso e morreu de uremia – condição em que os rins param de filtrar a ureia e outros componentes, resultando no acúmulo dessas substâncias na corrente sanguínea e intoxicando o organismo -, no dia 26 de março de 1923.
Uma missa fúnebre foi celebrada em Paris e 30 mil pessoas seguiram seu cortejo até o cemitério de Père-Lachaise, onde estão enterradas algumas das mais notáveis figuras da arte mundial.
Fonte: BBC