- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Um lençol de linho tecido em padrão de espinha de peixe, com 4,41 metros de comprimento e 1,13 metro de altura, fica exposto na lateral à esquerda do principal altar da Catedral de Turim, no norte da Itália.
Trata-se do Santo Sudário, como é conhecida essa relíquia católica. Em negativo, é possível ver uma imagem gravada no pano. Uma figura humana. Muitos acreditam que se trata do próprio Jesus e que, portanto, este teria sido o tecido que seus seguidores utilizaram para envolvê-lo após a morte, por crucificação, ocorrida por volta do ano 30.
Para a Ciência e muitos pesquisadores ligados à História da Religião, contudo, tudo indica que o Santo Sudário seja uma fraude medieval.
Quando visitei a catedral, em abril de 2018, chamou-me a atenção um texto exposto em painel afixado um pouco antes da exposição do tecido. Não exatamente pelas informações nele contidas, nem pelo teor. Mas pelo fato de ser um atestado de que a própria Igreja Católica não reconhece o Sudário como uma peça legítima.
Depois da descrição daquilo que pode ser visto logo à frente, o texto prossegue enfatizando que “de acordo com a tradição, este seria o lençol mencionado nos evangelhos que foi usado para envolver o corpo de Jesus”. Tudo isso acompanhado por um aviso de que tal história “não pode ser considerada definitivamente comprovada”.
Vale ressaltar que, em todos os textos oficiais dedicados a descrever a imagem do Santo Sudário, é possível observar o cuidado em afirmar que a peça estampa “o cadáver de um homem que morreu após ser torturado e crucificado”, sem nunca fazer a ligação direta a Jesus.
Enfim, se a própria Igreja não reconhece o Sudário como uma verdade absoluta, qual o sentido de a peça estar exposta em uma catedral? Em se tratando de fé, há razões que transcendem a própria razão.
Relíquias, uma categoria
“É uma fraude? Sim e não. É uma fraude histórica porque crucificados não eram enterrados, então o corpo de Jesus jamais conheceu uma mortalha que o envolvesse para ser posteriormente sepultado”, afirma à BBC News Brasil o historiador André Leonardo Chevitarese
Ele é professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autor do livro ‘Jesus de Nazaré: o que a história tem a dizer sobre ele’, entre outros.
“Mas o Santo Sudário se insere numa categoria que são as chamadas relíquias de santos ou relacionadas ao próprio Jesus. Se formos associar relíquias como sendo prioritariamente sinônimo de fraudes, ou seja, se retirarmos o elemento fé dessas peças, correríamos o risco de dizer que fé é sinônimo de fraude. Então a linha me parece muito tênue”, explica ele.
Desta forma, ele entende que o Sudário “é fraude porque crucificados não são enterrados” e “porque essa mortalha de Turim não tem qualquer relação com o século 1º”. “Mas, ao mesmo tempo, é uma relíquia, e relíquia envolve o elemento fé”, define.
Em outras palavras, as crenças das pessoas precisam ser respeitadas. E é isso que faz sentido em uma religião.
Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes tem uma leitura parecida. “Quando se trata de fé e de crença, há muito pouco do elemento ciência”, diz ele, à BBC News Brasil. “Se a pessoa está disposta a crer em algo, aquilo se impõe de tal maneira que, para ela, é difícil acreditar em algo diferente.”
Mas Moraes enfatiza que “a própria Igreja reconhece que o Sudário não é legítimo” — a instituição “respeita a tradição popular”.
Na Bíblia
Os quatro evangelhos canônicos — Mateus, Marcos, Lucas e João — descrevem o sepultamento de Jesus. Os três primeiros mencionam que o corpo foi envolvido em um lençol limpo; João diz que “o envolveram em faixas, com aromas, segundo a maneira de sepultar dos judeus”.
São essas narrativas que, no entendimento de muitos cristãos, justificariam a legitimidade do Sudário.
Para Chevitarese, contudo, esses relatos bíblicos não correspondem à história real. Os crucificados eram deixados na cruz até que seus corpos fossem devorados por animais carniceiros. Não havia sepultamento, nem túmulo. A ideia era não deixar memória.
Ponderações podem ser feitas, é verdade. “No século 1º, faz sentido uma mortalha envolvendo um corpo no sepultamento de judeus”, diz Chevitarese, lembrando que sobre essa prática há documentação textual.
Mas isso não ocorria com os pobres. “Esses indivíduos não eram enterrados em cemitérios, não havia uma sepultura aberta em rocha para eles. Simplesmente eram jogados em uma vala comum e o tempo se encarregava de fazer seus corpos desaparecerem”, afirma. “Era preciso ser suficientemente abastado para ter uma sepultura.”
E o segundo ponto é justamente o fato histórico de que crucificados não eram enterrados. “O propósito [de tais execuções] era não deixar memória sobre aqueles indivíduos”, salienta o historiador.
“Ou seja: o uso da mortalha era uma prática naquele contexto, mas o Jesus histórico não foi enterrado porque era pobre e porque foi crucificado”, enfatiza.
Mas isto ainda deixa uma lacuna na história. Se os quatro evangelhos da Bíblia, escritos por seguidores de Jesus algumas décadas depois da morte dele, mencionam um sepultamento, significa que esses autores acreditavam que Jesus havia sido enterrado? Ou esses trechos foram adulterados posteriormente?
Chevitarese defende a primeira hipótese. E tem a explicação para essa crença. Uma questão importante, aliás, porque reside justamente na transição entre o movimento de Jesus com ele vivo e o movimento posterior à sua morte, quando começa a se fazer teologia a partir de sua história.
Ocorre que, a partir da segunda metade dos anos 30, os primeiros cristãos passaram a percorrer diferentes grupos em diversos territórios da região com o objetivo de propagar as ideias e as palavras de Jesus.
É quando eles precisaram responder a algumas perguntas. “Alguém quer saber se esse Jesus ainda está vivo. Não, não, ele morreu, é a resposta. E então perguntam como ele morreu e onde ele foi sepultado”, reconstitui o historiador Chevitarese.
O “morreu na cruz” desencadeia um raciocínio naturalmente desfavorável. “Porque era de se estranhar: se a morte por crucificação era uma pena capital, reservada para pessoas más, estupradores, indivíduos que atentam contra o Estado, escravos revoltosos que assassinavam seus senhores, como eles iam defender um homem que havia sido morto na cruz?”, argumenta.
Então, segundo o historiador, começou a ser criada uma tradição oral que buscava contar o pós-morte de Jesus. Enfatizar que ele era “um homem tão bom” que configuraria exceção em todo esse processo. “É a narrativa de que Deus acabou ressuscitando-o”, aponta. “E se há ressurreição, é preciso incorporar à narrativa um corpo, um processo de sepultamento.”
Corrobora essa versão o fato de que em diversos evangelhos que não estão na Bíblia, como o chamado Evangelho Q, que é considerado a fonte para textos depois canonizados, Jesus é tratado como um profeta. “E os caras nem dizem como ele morreu, nem falam sobre sua morte, muito menos ressurreição”, afirma Chevitarese.
Um pano cheio de histórias
Outro ponto que merece ser revisitado é a história sabida do tecido exposto em Turim. Neste quesito, vale recorrer a outro especialista, o pesquisador de arte Jack Brandão, diretor do Centro de Estudos Logo-imagéticos Condes-Fotós e editor da revista acadêmica Lumen et Virtus. Brandão lança no próximo dia 5 de agosto, no Museu de Arte Sacra de São Paulo, o livro ‘A Saga Desconhecida do Santo Sudário de Cristo e de sua Igreja’.
Na verdade, trata-se do segundo volume. No primeiro, Brandão buscou explicar como uma mortalha era confeccionada, desde a produção do linho até se transformar no lençol mortuário.
No livro que ele lança agora, cria uma cronologia histórica do paradeiro do tecido ao longo do tempo. E o pulo do gato de sua teoria é unir dois registros históricos: as primeiras menções do que se sabe ser o hoje chamado Santo Sudário de Turim, com as primeiras menções àquilo que acabou conhecido como Mandílio ou Imagem de Edessa.
Trata-se de uma relíquia que, para o imaginário, guarda semelhanças muito grandes com o Santo Sudário. Mas, ao contrário deste, trazia apenas o retrato facial de Jesus.
Há relatos que indicam a existência dessa imagem já a partir do ano de 384., na cidade de Edessa, hoje na Turquia. O historiador Evágrio Escolástico (536-594) menciona o retrato em sua obra História Eclesiástica, de 593.
Ao longo dos séculos, contudo, o Mandílio teria sumido e desaparecido diversas vezes. Acredita-se que no século 10 a imagem tenha sido levada para Constantinopla, onde teria ficado protegida de ataques dos muçulmanos. Embora não haja comprovação documental, muitos defendem que em 1204, quando a cidade foi saqueada durante a Quarta Cruzada, a Imagem de Edessa tenha sido levada para a Europa.
Participante dessa cruzada, o cavaleiro francês Roberto de Clari escreveu uma crônica em que é claro sobre esse tecido ser o mesmo que envolveu Jesus morto. “Lá estava o Sudário em que nosso Senhor foi envolto e que, a cada quinta-feira, é exposto de modo que todos possam ver a imagem de nosso Senhor nele”, pontuou Clari, que esteve em Constantinopla em 1203.
Brandão defende que aí ambas as coisas se cruzam. Ou seja: o Madrílio e o Sudário seriam a mesma coisa.
Ele acredita que Jesus tenha sido envolto em um linho, como dizem as narrativas bíblicas e que um de seus apóstolos tomou o pano e o escondeu. “Provavelmente João, o mais novo dentre eles. E o fato de ser jovem muitas vezes leva o próprio rompimento de alguns preceitos. Não podemos esquecer que, segundo a doutrina judaica, não se podia pegar em algo que tocou um morto”, diz o pesquisador, à BBC News Brasil.
A ideia de que ele teria levado o tecido até Edessa bate com uma lenda corrente na região, segundo a qual um rei local havia escrito uma carta para o próprio Jesus, com ele vivo, convidando para uma visita porque ele precisava ser curado de uma doença. Segundo essa história, Jesus teria negado, mas dito que um dia haveria de enviar um de seus seguidores.
De acordo com o pesquisador, as características estéticas do Mandílio são muito semelhantes a do Sudário. E o fato de ser apenas o rosto e não o corpo inteiro encontraria explicação para os costumes da época.
“Muitos não acreditavam que Jesus houvesse sido homem. Acreditavam que a divindade dominava o homem Jesus. Por isso, muitos [cristãos] ortodoxos não mostravam o próprio corpo inteiro do Sudário. Isso só vai ser revelado posteriormente”, argumenta Brandão.
Há relatos antigos que corroboram essa ideia, ao menos situando o Mandílio como uma peça semelhante ao Sudário — e não um quadrado de pano onde caberia apenas o retrato.
Em texto sobre imagens sagradas escrito pelo monge João Damasceno (675-749), ele descreveu o tecido de Edessa como sendo uma faixa comprida de tecido.
Os que defendem o Sudário como sendo o Mandílio então acreditam que a peça tenha ficado em posse dos templários por pelo menos um século. Fato é que o Sudário foi registrado como posse de um nobre de Troyes, a 160 quilômetros de Paris, em 1349.
Foi quando começou-se a desconfiar de sua veracidade. Um arcebispo proibiu sua veneração, acusando o tecido de ser fraude. O tecido tido como sagrado acabou sendo guardado como preciosidade por alguns nobres, até que, em 1453 chegou às mão do duque de Savóia, Luís (1413-1465).
A relíquia só chegaria a Turim em 1562, quando o ducado de Savóia foi para lá transferido, de Chambéry, hoje França. A posse da preciosidade só passou para a Igreja Católica em 1983 — ex-rei da Itália, Humberto 2º (1904-1983) legou o Sudário em testamento para a Santa Sé.
História da Arte
Mais do que na possível cronologia, Brandão apoia-se na História da arte para acreditar que o Sudário de Turim seja legítimo.
“A Igreja não pode afirmar, como nunca afirmou, se é verdadeiro ou não [o Sudário]”, pondera ele. “Ela se exime de fazer isso por não haver provas textuais, dizendo simplesmente que é um objeto para ser venerado e por meio do qual podemos rememorar a Paixão de Cristo.”
“A Igreja não vai contra [a devoção]. Ela simplesmente não pode afirmar aquilo que não tem condições de afirmar”, explica ele. “Há uma possibilidade, nunca uma certeza.”
O ponto mais intrigante é a questão artística. “Pela História da Arte podemos provar a autenticidade do Sudário de Turim”, defende Brandão.
Ele recorda que quando foi feito o teste de carbono 14, em 1988, estabeleceu-se que o lençol era de algum momento entre os séculos 13 e 14, contrariando a história de que teria tocado Jesus.
“Mas partindo desse lapso temporal preciso, temos a História da Arte, que mostra que aquela imagem estampada naquele pano não seria feita por artista algum daquele período”, diz Brandão. “Em hipótese alguma.”
Em primeiro lugar, defende ele, porque na Idade Média o divino jamais seria representado de modo cru. “Jesus nunca seria inserido [em uma obra] como um homem nu, aquilo não passaria pelo momento daquele homem medieval, dada a sacralidade de Cristo”, contextualiza.
“O homem do Sudário, e a gente nunca pode afirmar ser Jesus, por isso digo o homem do Sudário, está completamente nu. É possível ver os testículos, as nádegas…”, enumera o pesquisador.
Ele ressalta que os artistas daquele período não “estavam preocupados com a precisão anatômica”, o que ele argumenta que poderia ser comprovado na análise de trabalhos artísticos contemporâneos a esses séculos.
Algumas características presentes no Sudário também não são compatíveis com a maneira como o mundo medieval retratava Jesus. Por exemplo, os pregos aparecem nos pulsos, e não nas palmas das mãos. “A arte sacra religiosa sempre representou Jesus com pregos nas palmas”, afirma Brandão. Mas pesquisas históricas posteriores confirmam que as crucificações eram feitas com cravos nos pulsos.
Segundo o pesquisador, a presença de uma coroa de espinhos, utilizada como objeto de tortura, também seria uma novidade trazida pelo Sudário.
Testes científicos
Em 1973, o Sudário de Turim foi submetido a uma junta de cientistas e, nas primeiras análises, eles afirmaram que a imagem era formada por gotículas de tinta ocre. Cinco anos mais tarde, um grupo de 40 pesquisadores — dentre os quais apenas um deles não era religioso — tiveram acesso ao tecido por 120 horas, e fizeram diversos tipos de fotografia, radiografia e outros exames de imagem.
Apenas em 1988 foi feita a datação por carbono-14, chegando a esse período entre os séculos 13 e 14. Para evitar erros, o mesmo teste foi feito por três laboratórios diferentes — e os resultados foram semelhantes.
A partir de então, algumas teorias foram apresentadas para tentar desacreditar essa datação. A mais comum é que o tecido tenha sofrido uma biocontaminação, por conta de tantas idas e vindas sem uma proteção adequada.
Outra hipótese aventada por aqueles que defendem a autenticidade do Sudário é que os testes teriam sido realizados a partir de fragmentos de consertos a que o tecido foi submetido ao longo dos séculos — sabe-se que o Sudário já sobreviveu a enchentes e pelo menos um grande incêndio, cujas marcas dos remendos são visíveis.
Outro argumento é de que o mundo medieval não contava com tecnologia para produzir uma fraude dessas.
Isto porque a imagem impressa no Sudário é de difícil explicação. Cientificamente, se for uma relíquia verdadeira ou, mesmo que não tenha sido de Jesus, tenha sido uma mortalha que envolveu um cadáver, a mais provável justificativa é que a imagem tenha sido formada pela chamada reação química de Maillard, quando gases libertados por um corpo em decomposição reagem com a celulose presente nas fibras de um tecido.
Argumentos históricos costumam refutar a ligação desse tecido com Jesus. Além de todas as explicações já apresentadas neste texto, há um outro ponto: o Santo Sudário traz impressões de um corpo que foi flagelado, ou seja, teria envolvido um cadáver sujo de sangue.
Como naquele contexto as práticas funerárias incluíam o ato de limpar e perfumar os mortos, se realmente os relatos bíblicos estiverem certos e Jesus teve direito a um sepultamento digno, era de se esperar que seus seguidores tenham preparado o corpo.
“Cientificamente, não temos como afirmar que aquilo é legítimo ou não, mas isso pouco importa para aquele que crê”, frisa o teólogo Moraes. “Para estes, é uma peça revestida de sacralidade.”
Fonte: BBC
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